“Portando armas de grosso calibre, um grupo de até 15 invasores da Terra Indígena Waiãpi, no oeste do Amapá, tomou uma aldeia e tem feito incursões para intimidar índios que habitam uma região remota no estado”. Eis o que noticiou a Folha de São Paulo em 28 de Julho de 2019. O ex-senador João Capiberibe, líder político do Amapá, traz mais detalhes, num vídeo postado no youtube:
“É com extrema preocupação e indignação que tomamos conhecimento da invasão da terra indígena Wajãpi a 260 kms de Macapá. Garimpeiros fortemente armados, com cachorros pitbull e metralhadoras, invadiram a terra indígena e assassinaram indígenas com requintes de crueldade. (...) A aldeia atacada foi a aldeia Mariry (...) Vejam, há mais de 20 anos que o povo indígena Wajãpi não sofria qualquer tipo de agressão. O povo do Amapá respeita e tem enorme carinho pelo povo Wajãpi. Peço que se divulgue esse vídeo para que todo o Brasil tome conhecimento dessa tragédia que está vivendo o povo Wajãpi, incentivada por representantes políticos que não são do Amapá e também por autoridades nacionais”.
O relato do vereador Jawarawa Waiãpi complementa o de João Capiberibe, segundo o que reporta a deputada federal Marcivânia Flexa, também do Amapá [I]: “Os garimpeiros invadiram e se instalaram na aldeia Mariry, espalhando o medo, obrigando os indígenas a fugir e se abrigarem na aldeia vizinha de Aramirã”.
Outro artigo da Folha de São Paulo, datado do dia 27 de julho, [II] confirma o assassinato do cacique Emyra Wajãpi, de 68 anos, e reporta que, segundo uma fonte da Funai, “o corpo do indígena estava com marcas de violência”, conforme já relatado pelo ex-senador João Capiberibe, que se refere a um assassinato “com requintes de crueldade”. Vários artistas e jornalistas, como Caetano Veloso e André Trigueiro lançaram apelos à defesa dos Wajãpi. Caetano Veloso gravou o seguinte apelo:
“O grupo 342 recebeu um grito, um pedido de socorro, dos índios Wajãpi que estão sendo agredidos e ameaçados por garimpeiros neste momento no norte do Brasil. Eu peço às autoridades brasileiras que em nome da dignidade do Brasil no mundo ouçam esse grito”.
Entre os relatos mais pungentes, está o de um indígena Wajãpi, neste link: https://www.youtube.com/watch?v=KuKHSLNGw_Y
Fora do Brasil
A atrocidade choca e ressoa imediatamente também mundo afora. A relatora da ONU para os Povos Indígenas, Victória Tauli-Orpuz, declarou em entrevista à UOL, que responsabiliza as declarações e a postura de Bolsonaro pelo sucedido: [III] "Um dos elementos é o fato de que o presidente tem feito anúncios de que terras indígenas podem ser usadas para atividades produtivas. Essa é uma das razões que explica a situação, além dos interesses econômicos sobre essas terras”. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos, organismo da OEA com sede em Washington, “manifesta preocupação” com a invasão e cobra providências do Estado brasileiro para a defesa dos índios e a punição dos assassinos. [IV] A BBC (28/VII2019) traz em manchete: “Brazil’s indigenous people: Miners kill one in invasion of protected reserve”, e comenta: “As tensões na região amazônica estão aumentando, pois o presidente de extrema-direita Jair Bolsonaro, contrário às reservas indígenas, promete abri-las para a mineração”. [V] O The New York Times (27/VII/2019) noticia: “Miners Kill Indigenous Leader in Brazil During Invasion of Protected Land”. O comentário é semelhante: “O assassinato ocorre enquanto garimpeiros e madeireiros fazem incursões sempre mais audaciosas e desafiadoras em áreas protegidas, com o explícito encorajamento do presidente de extrema-direita do Brasil, Jair Bolsonaro”. [VI] O The Guardian, The Telegraph, El Pais e outros jornais internacionais e agências de notícias trazem mais notícias a respeito.
O extermínio jurídico (e físico) dos indígenas como plano de governo
Todos os governos brasileiros, sem exceção, foram omissos e complacentes com as invasões de terras indígenas, com as agressões e assassinatos de indígenas e ribeirinhos perpetrados por fazendeiros, grileiros, garimpeiros e pelos “seguranças” das empreiteiras, mineradoras, pelos bancos e demais corporações que entendem a floresta amazônica, seu subsolo, seus rios, sua biodiversidade única e a diversidade cultural igualmente única de seus povos como um estorvo aos seus planos de negócios.
Mas Bolsonaro não é apenas complacente com esses crimes. Não seria preciso o depoimento do ex-senador João Capiberibe para sabermos que “as autoridades nacionais” a que o ex-senador alude incentivam atos dessa natureza. Por sua retórica e por suas ações (não apenas omissões), Bolsonaro avaliza explicitamente esses crimes. Como bem percebe o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), a ousadia dos garimpeiros indica "claramente que há um incentivo à atividade garimpeira em terras indígenas pelo próprio governo".
O extermínio jurídico, mesmo que à custa do extermínio físico, dos indígenas está entre as prioridades de Bolsonaro. No dia 27 de julho último, quando o cadáver do cacique Emyra Wajãpi acabava de ser descoberto com marcas de facadas, com o pênis amputado e sem um olho, o jornal O Globo noticiou: “Bolsonaro diz querer Eduardo na embaixada nos EUA para conseguir parcerias e explorar minerais em terras indígenas”. Em seu discurso de formatura da turma de novos paraquedistas das Forças Armadas, no Rio de Janeiro, Bolsonaro defendeu a nomeação de seu filho para a Embaixada do Brasil em Washington com o seguinte propósito:
“Estou procurando o ‘primeiro mundo’ para explorar essas áreas [indígenas] em parceria e agregando valor. Por isso, eu quero uma pessoa de confiança minha na embaixada dos EUA.”
O ouro de Bolsonaro
O garimpo é uma atividade geralmente ilegal, uma das mais ambientalmente deletérias, e não apenas pela catastrófica poluição dos rios por mercúrio. Ele está destruindo não apenas o território Wajãpi, mas muitos outros territórios indígenas, entre os quais os dos Kayapó, dos Munduruku (ambas no Pará) e dos Yanomami (em Roraima e no Amazonas). A fotografia de satélite abaixo, tirada em julho de 2019, mostra o território dos Kaiapó. As partes mais claras indicam destruição recente da floresta por garimpeiros.
Nada ocorrerá com os criminosos, pois eles contam com apoio entusiástico de Bolsonaro. Há dez dias, ele declarou: “Vamos entrar com um projeto para legalizar. O garimpeiro é um cidadão, merece respeito”. [VII] Não há quem possa discordar disso. Todo criminoso, mesmo o assassino, merece respeito, isto é, merece ser tratado na mais estrita observância dos direitos humanos. Mas precisa ser reprimido e punido pelo Estado na forma e no rigor da lei. Não pode ser incentivado a delinquir ou reincidir na delinquência, e tanto menos pelo presidente da República.
Novamente a Renca
Também o território Wajãpi (6 mil km2), demarcado em 1996, é rico em ouro e vem sendo cada vez mais cobiçado por garimpeiros e mineradoras. Parte dele se encontra dentro da Reserva Nacional de Cobre e Associados (Renca), que Michel Temer tentou extinguir em 2017 e que se estende por mais de 46 mil km2 de floresta amazônica.
Relembro o que publiquei nesta coluna em 28 de agosto de 2017: https://www.unicamp.br/unicamp/ju/artigos/luiz-marques/em-defesa-da-amazonia-e-do-cerrado#11
“Em 22 de agosto último [2017], Michel Temer deu mais um passo para a inviabilização da vida na Terra, ao extinguir por decreto a Reserva Nacional de Cobre e seus Associados (Renca) na Amazônia, com uma área de 46.450 km², maior que a do estado do Rio de Janeiro [VIII]. Situada na divisa entre Pará e Amapá, a região abrange o Parque Nacional Montanhas do Tumucumaque, o maior parque de florestas tropicais do mundo, além de outras florestas, quatro reservas ecológicas e duas reservas indígenas, uma delas a da comunidade Wajãpi, contatada apenas em 1973.
O escândalo e a imediata oposição suscitada por esse decreto obrigaram Temer a revogá-lo. Mas isso é o passado. Bolsonaro se vale de outros expedientes. Ele sinaliza por todos os meios que nada acontecerá aos criminosos que destroem a floresta e atacam os índios, colocando as raposas para tomar conta do galinheiro, em outras palavras, os ruralistas e demais predadores para tomar conta de suas vítimas.
Funai
O caso da Funai é exemplar. Bolsonaro tentou colocá-la sob a guarda do Ministério da Agricultura. Foi barrado pelo Congresso em maio, o que não o impediu de destruir a Fundação por dentro. Sua primeira nomeação para a presidência da Funai, o general da reserva do Exército, Franklimberg Ribeiro de Freitas, de origem indígena, não se mostrou à altura da tarefa. Foi exonerado em 12 de junho e em seu discurso de despedida declarou que a Funai está sob constantes ataques movidos por interesses de terceiros, com orçamento limitado e déficit de pessoal. Destacou, além disso, a influência negativa de Nabhan Garcia, secretário especial de assuntos fundiários do Ministério da Agricultura que tenta acabar com o Departamento de Proteção territorial da Funai (DPT): [IX]
"Quem assessora o senhor presidente não tem conhecimento de como funciona o arcabouço jurídico que envolve a Funai (...). E quem assessora o senhor presidente é o senhor Nabhan. Que, quando fala sobre indígena, saliva ódio aos indígenas."
Em seu lugar, Bolsonaro nomeou o delegado da Polícia Federal, Marcelo Augusto Xavier da Silva, um homem de confiança da bancada ruralista. Segundo André Shalders, “quando delegado, sua atuação foi investigada em duas apurações internas da PF, e ele chegou a ser afastado de uma operação em terra indígena. Xavier também foi rejeitado numa primeira avaliação psicológica para o cargo de delegado da PF, embora tenha passado em outra, depois”. Não por acaso, a nota da Funai trata as clamorosas atrocidades cometidas contra os Wajãpi, apenas como um “possível ataque”, [X] da mesma maneira que o procurador-chefe da Procuradoria da República no Amapá, Rodolfo Soares Ribeiro Lopes, disse ser “prematuro afirmar que os assassinos do cacique da aldeia Waseity, da Terra Indígena Waiãpi, sejam garimpeiros”. [XI]
Ricardo Salles
Outro caso exemplar de afronta à moralidade pública e à Constituição é a nomeação de Ricardo Salles como Ministro do Meio Ambiente, réu condenado em “sentença proferida nos autos nº 1023452-67.2017.8.26.0053, 3ª vara de fazenda pública de São Paulo/SP, por IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA, com SUSPENSÃO DOS DIREITOS POLÍTICOS POR TRÊS ANOS”. [XII] A nomeação é alvo de ação no TRF1, pois o artigo 87 da Constituição determina que “os Ministros de Estado serão escolhidos dentre brasileiros maiores de 21 anos e no exercício dos direitos políticos”. [XIII] Salles é alvo das seguintes acusações:
“Despachos fraudulentos; crime de falsidade ideológica; adulteração de mapas de zoneamento da unidade de conservação; pressões administrativas sobre funcionários para retaliações das mudanças ilegais; (...) atender interesses econômicos patrocinados” (Tribunal de Justiça de São Paulo; Agravo de Instrumento 2110336-47.2017.8.26.0000. (...) Agravante: MPE-SP, Agravado: Ricardo de Aquino Salles).
Depoimentos dos funcionários da Fundação Florestal, reportados por Giovana Girardi, do jornal O Estado de São Paulo, mostram que Salles manobrou para que a atividade de mineração de areia e cascalho fosse autorizada em boa parte da APA do Rio Tietê, “inclusive em uma das zonas mais restritivas: [XIV]
“O aval à mineração havia sido rejeitado por técnicos da Fundação Florestal em razão da ‘interferência no regime hidrodinâmico no Rio Tietê, em sua várzea e na paisagem’, como explicou, em depoimento, Rodrigo Victor, assessor do diretor-executivo da Fundação Florestal. Ele disse ao MP que ‘a mineração tem potencial de causar significativa degradação ambiental, dependendo da extensão da atividade’.”
Assassinatos e toda a gama de agressões a indígenas indefesos, incentivados por Bolsonaro e seu time, são e continuarão a ser a tônica de seu governo. Bolsonaro é um indivíduo que não representa, como indivíduo, nada de novo no inventário das baixezas humanas. Mas ele é capaz de dizer e fazer o que diz e faz tão somente porque se sente ruidosamente apoiado por uma fração decrescente, certamente não mais majoritária, mais ainda assim significativa, do eleitorado brasileiro. A maioria da sociedade brasileira, contudo, não apoia uma política de Estado baseada na ferocidade, na destruição da natureza e no ódio e desprezo pelos índios. Cabe a essa maioria ainda “silenciosa”, organizada nas instituições da sociedade civil, aí incluídas evidentemente as Universidades, sair de seu silêncio, de sua relativa apatia. Cabe a nós todos manifestar nosso descontentamento, mostrar a força da civilização contra a truculência. A agressão aos direitos indígenas, consagrados pela Constituição, não pode ser tolerada, pois a omissão é uma das formas, uma das piores, da cumplicidade. Se a história ainda ensina algo, a lição recebida do século XX é a advertência sobre aonde leva o caminho da apatia e da indiferença diante do crime de Estado contra minorias indefesas.
[I] "Deputada diz que Bolsonaro é avalista da invasão de terras indígenas”. Vermelho, 28/VII/2019.
[II] Cf. Fabiano Maisonnave, “Índio é assassinado durante invasão de garimpeiros no Amapá, dizem moradores”. FSP, 27/VII/2019.
[III] Cf. Jamil Chade, “Relatora da ONU diz que Bolsonaro é responsável por invasão de garimpeiros”. UOL, 29/VII/2019.
[IV] “Comissão internacional cobra providências sobre invasão de terra indígena”, Congresso em foco, 28/VII/2019.
[VII] Cf. Renata Vieira, “Bolsonaro afirma que vai propor projeto para legalizar garimpos”. O Globo, 21/VII/2019.
[VIII] Veja-se Decreto no 9.142, de 22/VIII/2017: Extingue a Reserva Nacional de Cobre e seus associados, constituída pelo Decreto nº 89.404, de 24 de fevereiro de 1984, localizada nos Estados do Pará e do Amapá. Diário Oficial (em rede).
[IX] "Presidente da Funai, general Franklimberg Ribeiro de Freitas, é exonerado”. Envolverde, 12/VI/2019; André Shalders, “Falhou no psicotécnico, investigou desafeto e atacou procurador: a trajetória do novo presidente da Funai”. BBC Brasil, 25/VII/2019.
[X] Nota da Funai, atualizada em 28 de Julho.
[XI] "Procurador diz ser prematuro atribuir morte a garimpeiros”. Terra, 28/VII/2019.
[XIII] Cf. Cida De Oliveira, “Bolsonaro descumpre Constituição ao nomear ministro sem direitos políticos”. Rede Brasil Atual, 3/I/2019.
[XIV] Cf. Giovana Girardi, “Secretário alterou manejo no entorno do Tietê para favorecer indústria, aponta investigação”. Estado de São Paulo, 14/III/2017.