Em outubro de 2015, a Editora da Unicamp lançou a primeira edição de Capitalismo e colapso ambiental. O objetivo do livro, como então escrevi, era levar a termo “a ingrata empresa de perscrutar o colapso socioambiental que se desenha em nosso horizonte”. No dia 25 próximo, às 15h., a terceira edição desse livro será lançada no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, por ocasião de um debate sobre o desastre criminoso da Vale em Brumadinho.
O que mudou desde outubro de 2015? Essencialmente, a percepção de que o colapso socioambiental não é mais algo que se desenha em nosso horizonte. Ele já está ocorrendo, aqui e agora. Os radares cotidianos captam seus sinais ainda apenas na sucessão de fatos do noticiário, aparentemente isolados e desconexos, como a prevalência de anomalias climáticas, as ondas de calor extremo, as secas, os incêndios florestais, os furacões, as inundações marítimas e/ou por trombas d’água, a migração e proliferação de pragas agrícolas e de vetores de epidemias, o declínio das populações de vertebrados e invertebrados, o aumento da fome global desde 2014, a explosão de refugiados climáticos e das crises humanitárias. Evidentemente, nenhum desses sinais traz a etiqueta: “colapso ambiental”. Ainda percebemos, por exemplo, a tempestade Idai, que acaba de destroçar o sudeste da África, como mais um desastre “natural”. Mas sua violência inaudita seria mais improvável se esse evento meteorológico extremo, o maior dos registros históricos em todo o hemisfério sul, não fosse impulsionado pelas mudanças climáticas.
Ocorre que a ciência é justamente a descoberta coletiva das tendências, causalidades e probabilidades que agem e conferem orientação e sentido à proliferação desses fenômenos. E o que a ciência tem feito é justamente conectá-los e compreender esses sinais como uma tendência global em crescendo, em escala, frequência e aceleração. A ciência começa a demonstrar que os crescentes desequilíbrios de alguns elementos críticos [I] do sistema Terra, profundamente interdependentes – o clima, a criosfera, o nível dos oceanos, os ecossistemas costeiros e a biodiversidade no meio aquático, em especial os corais –, já ultrapassaram pontos críticos, isto é, já entraram em fase de irreversibilidade. Ela permite, em suma, entender que o futuro de algum modo já chegou ou não é mais evitável, o que significa que já estamos presenciando o estágio inicial, e doravante irreversível, de um colapso ambiental. Entramos, como sublinha o relatório de 2019 do Institute for Public Policy Research (IPPR), de Londres, na “idade do colapso ambiental” (the age of environmental breakdown) [II]. Custamos ainda, os adultos que somos, a entender a gravidade extrema disso. Mas os movimentos juvenis que eclodiram em 2018 e 2019, conscientes da massa falida planetária que lhes está sendo legada, já começaram a compreender e instam seus governos a “declarar estado de urgência ecológica e social” [III] Nada menos que 1,4 milhão de adolescentes e jovens entraram em greve pelo clima na última sexta-feira no mundo todo e esse movimento só poderá crescer se formos capazes de rever nossos paradigmas e acordar de nossas ilusões. Porque, se não é mais possível evitar um colapso socioambiental, ainda é possível atenuá-lo significativamente, aumentando nossas chances de adaptação. Nossa capacidade de reagir a esse colapso ao longo do próximo decênio (é o tempo que nos resta) nos definirá como sociedade e como espécie.
Em 2015, à vista do conjunto das evidências então disponíveis, era já sempre maior o número dos que compreendiam que estávamos acelerando em uma trajetória de colapso ambiental. Mas, mesmo entre esses, são ainda hoje legião os que tendem a perceber esse colapso apenas como uma possibilidade inscrita no futuro, com sua intrínseca carga de incerteza. Até há pouco, de fato, essa incerteza era incontornável e frisá-la era politicamente prudente, dada a necessidade de se evitar alarmismos. Assim, na primeira edição, lançada às vésperas do Acordo de Paris de dezembro de 2015, não tratei o colapso como um dado, mas apenas como um desdobramento provável da atual engrenagem econômica. Intitulei, por exemplo, uma seção do capítulo sobre mudanças climáticas com a interrogação: “Tarde demais para 2oC?”. Em sua segunda edição, em 2016, sob o impacto do mais forte El Niño dos registros históricos, o ponto de interrogação desapareceu, porque essa possibilidade passou a ser ínfima. De fato, um trabalho publicado em 2017 na Nature Climate Change calculava que havia então apenas 5% de chance de que o aquecimento global se manteria abaixo de 2oC e 1% de chance de que se manteria abaixo de 1,5oC. [IV] Na presente terceira edição, revisada em 2018, o subcapítulo em questão passou a ser “Tarde demais para 3oC?”. As chances de que o aquecimento global não atinja 3oC ao longo do próximo meio século aproximam-se agora rapidamente de zero porque esse nível de aquecimento será atingido neste século, mesmo se os compromissos assinados no Acordo de Paris fossem honrados.
Sim, tragicamente, o Acordo de Paris está seguindo o mesmo destino do Protocolo de Quioto, isto é, não está sendo honrado por seus signatários. Cerca de 33% da produção de petróleo no mundo pertence a países que sequer o ratificaram e aos EUA que decidiram abandoná-lo. Além disso, mesmo entre os países que o ratificaram, a grande maioria não está adotando políticas consistentes com seus compromissos de redução de emissões de GEE. Segundo diversas projeções mais ou menos coincidentes, as políticas atuais nos mantêm aprisionados a uma trajetória de aquecimento médio global de 3,1oC a 4,8oC até 2100 em relação ao período pré-industrial. Para Yangyang Xu e Veerabhadran Ramanathan, há uma pequena chance de que esse aquecimento supere 3oC, nível que eles categorizam como “catastrófico”, já antes de 2050. [V] Feita essa contextualização, segue o Prefácio à terceira edição.
“O leitor desta terceira edição tem em suas mãos um livro bastante diferente do que foi publicado em 2015 e mesmo do da sua segunda edição, de 2016. É claro que, no que se refere à tese central do livro – a da irreconciliável incompatibilidade entre o capitalismo de nossos dias e qualquer sociedade ambientalmente viável –, esta edição é idêntica às anteriores. Mas para justamente testar mais uma vez essa tese e tornar suas demonstrações mais convincentes, pareceu-me necessário atualizar e por vezes reelaborar a maioria de seus capítulos. Assim, com exceção dos capítulos 7 e 13, todos os demais foram parcialmente reescritos e enriquecidos com novos dados, não raro comparados com dados constantes nas edições anteriores.
Já a segunda edição alterava significativamente alguns dados propostos pela primeira. Em 2016, preocupei-me em fazer notar que o que antes se supunha pudesse ocorrer apenas ao final do século – um aquecimento médio global de 1,5oC a 2oC acima do período pré-industrial, uma transição irreversível da floresta amazônica para uma vegetação de savana, um Ártico sem gelo durante o verão, um degelo acelerado da Groenlândia e da Antártida – era agora esperado para meados do século. Esta terceira edição mostra que a possibilidade de tais ocorrências foi antecipada pela literatura científica para o quarto ou mesmo para o próximo decênio. É claro que, por mais que me tenha esforçado, a tarefa de atualização a que me propus não pode se considerar nem de perto completa. É praticamente impossível inteirar-se da enxurrada de dados e projeções científicas recentes, cada vez mais chocantes, a evidenciar a aceleração de nossa trajetória em direção a um colapso ambiental.
O quadro resultante é em todo o caso este: à medida que avançamos no século, acumulam-se os indícios de que o ciclo histórico de relativo sucesso material e ideológico do capitalismo do século XX pertence a um mundo que definitivamente se foi. O crescimento econômico movido pelo mecanismo de acumulação de capital, até há pouco gerador de prosperidade e de esperança de um futuro melhor para setores crescentes da humanidade, gera doravante, sobretudo após 2008, riqueza apenas para segmentos decrescentes dela. Os levantamentos da Oxfam, as pirâmides anuais da riqueza global do Crédit Suisse, além de numerosos outros trabalhos, mostram esse recente empobrecimento, inclusive em termos absolutos, da grande maioria da humanidade. Mais grave ainda que isso, mesmo o aumento da riqueza, a que a maioria esmagadora da humanidade não terá mais acesso, não se traduz mais em uma melhora da qualidade de vida. Não é possível tal melhora num meio ambiente em rápida degradação e o meio ambiente tem sido a principal vítima colateral da luta desesperada do capitalismo contra o declínio de suas taxas de crescimento, cada vez mais distantes das taxas típicas do segundo pós-guerra. Basta pensar, por exemplo, nos custos econômicos e ambientais muito maiores da extração de petróleo por métodos não convencionais (hidrofracionamento, areias betuminosas, águas profundas). A consequência inevitável desse processo de degradação intensificada do meio ambiente é a divergência cada vez maior entre o crescimento do PIB e outros índices que mensuram o aumento do bem-estar humano, tal como o Indicador de Progresso Genuíno (GPI = Genuine progress indicator), discutido no capítulo 14 [VI].
Os países ditos economicamente “emergentes”, Índia e China em primeiro lugar, com suas tão invejadas taxas de crescimento do PIB, são típicas presas de uma engrenagem devastadora que os está, na realidade, imergindo mais profundamente, e antes dos outros, em níveis extremos de poluição, em crises gravíssimas de saúde pública, em anomalias climáticas letais e em escassez hídrica aguda. Suas maiores taxas de crescimento os têm colocado, em suma, na vanguarda do pesadelo ambiental em que se debate o planeta. A Índia já não tem como superar, mantido o seu modelo econômico, a maior crise hídrica de sua história, com metade de sua população sofrendo escassez hídrica alta ou extrema. Sua capital, Nova Deli, arde agora em temperaturas recordes acima de 45oC, ao mesmo tempo em que se asfixia numa poluição atmosférica em partículas inaláveis de diâmetro inferior a 10 micrômetros (PM10) que oscilam entre 600 e 1300 por m3, níveis que as escalas convencionais de monitoramento da qualidade do ar nem sequer contemplam, já que o teto de segurança admitido pela OMS é 20 por m3 em média anual e 50 por m3 em média por 24 horas. Segundo Arvind Kumar, se tais níveis de poluição atingissem a Europa, as cidades seriam evacuadas. Em novembro de 2017, a intoxicação por poluição atmosférica atingiu picos equivalentes a fumar 50 cigarros por dia. Cerca de metade das crianças em Nova Deli sofre agora de desenvolvimento pulmonar irrecuperavelmente atrofiado [VII].
Quanto à China, malgrado a “guerra à poluição” declarada em 2013 e o esforço recente do governo para fazer de Pequim uma vitrine de tal campanha, em maio de 2018 o ar da capital continuava qualificado como um dos mais poluídos do país. A poluição por ozônio durante o verão nas cidades chinesas tem causado um aumento constante das mortes por acidente vascular cerebral e infarto do miocárdio [VIII]. Em março de 2018, decorridos cinco anos de guerra à poluição, o ministro do Meio Ambiente do país admitiu que o número de fontes de poluição em escala nacional aumentou em mais de 50% em menos de uma década, atingindo o número de 9 milhões de fontes, contra 5,9 milhões em 2010 [IX]. Os dados dão razão à advertência do Greenpeace de que “os governantes da China terão realmente que escolher entre o crescimento econômico e o ar puro” [X].
Apesar disso, não faltarão, no Brasil e alhures, os que argumentam que a destruição da biodiversidade, a poluição dos rios e dos solos, o desmatamento, o deslocamento de imensos contingentes populacionais pela construção de represas ambientalmente catastróficas e o massacre da saúde pública, especialmente do desenvolvimento neuronal e do aparelho cardiorrespiratório das crianças, são o preço a pagar pelo crescimento econômico, como se este ainda pudesse gerar prosperidade para setores crescentes da sociedade. A verdade é que a curva da relação custo ambiental / beneficio econômico do capitalismo entrou irreversivelmente em fase negativa porque a conta ambiental do crescimento econômico vai-se tornando impagável não já para a próxima geração, mas para a geração de crianças e jovens de nossos dias.
Novos dados expostos ao longo do livro reforçam ainda mais a percepção de que o modo inerentemente expansivo de funcionamento do capitalismo está agora destruindo a uma velocidade alucinante o mundo, seu clima estável dos últimos doze milênios, sua biosfera fecunda e suas águas puras e abundantes que tornaram possível a aventura material e espiritual da humanidade. Assistimos atônitos e angustiados à substituição desse mundo do Holoceno de que nossos pais e avós foram ainda beneficiários, pelo mundo pior em que terão que viver nossos filhos, o Antropoceno, um mundo provavelmente muito pior para eles, para a humanidade em geral e para as demais formas de vida. Nesse novo mundo criado por nossa civilização termofóssil, mais precisamente pela voracidade dos mecanismos autorreplicantes de acumulação e concentração de capital, primarão temperaturas sempre mais letais, secas mais prolongadas e incêndios arrasadores dos remanescentes florestais, extinções maciças de espécies de vertebrados e invertebrados, solos menos fecundos, quebras de colheita mais frequentes, insegurança alimentar novamente crescente, poluição generalizada, intoxicação e perturbação hormonal dos organismos, pandemias, ciclones tropicais com maior poder de causar inundações diluvianas e cidades invadidas por mares plastificados, acidificados e desertados de vida. Esse novo mundo desenha-se com crescente precisão não apenas no âmbito da florescente ficção distópica dos últimos decênios, mas também, e com cores ainda mais sombrias, numa suma de dados e projeções científicas convergentes: uma imensa biblioteca de há muito divulgada aos quatro ventos pelos cientistas e pelos grandes coletivos científicos e institucionais da ONU, tais como o IPCC, o IPBES, a OMS, a FAO e o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR).
Com pouco fruto, infelizmente, pois essas advertências e alertas estão ainda longe de suscitar reações consentâneas com a condição gravíssima de nossa civilização. A grande maioria, mesmo entre os descontentes do capitalismo, persiste na crença de que os Estados nacionais e a rede corporativa que os gere ainda podem ser trazidos de volta às experiências socialdemocratas e redistributivas das sociedades do século passado. Persiste, sobretudo, na crença de que os Estados-Corporações podem ser “educados” para um comportamento ambiental mais sustentável. L’éducation fait tout, reza o imorredouro catecismo iluminista, e se há para esse catecismo uma razão universal que a tudo preside, então ela também prevalecerá sobre os interesses particulares e sobre os planos de negócios das corporações. Estas, finalmente, acabarão por ceder à razão e à pressão da diplomacia e das campanhas ambientalistas. E, quem sabe, unindo o útil ao agradável, acabarão ganhando ainda mais dinheiro com o “negócio da sustentabilidade”, de modo que tudo acabará num grande suspiro de alívio e de gratidão ao capitalismo por sua indefectível capacidade de gerar tecnologias salvíficas.
A grande maioria ilude-se, quer se iludir, também com as palavras ao vento do Protocolo de Kyoto, do Acordo de Paris, dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável e das Metas de Aichi (Aichi Biodiversity Targets), entre outros textos que fazem a alegria dos diplomatas, peritos em negociar novas metas de redução da devastação, desde que estas não prejudiquem os planos de crescimento das corporações e de seus governos. Continue ingerindo mais e mais calorias e volte a caber em suas roupas, graças às miraculosas pílulas do Dr. X. Continue crescendo seu PIB e volte a caber na biosfera graças às miraculosas fórmulas do capitalismo sustentável: aumento de eficiência energética e tecnológica, fim do subsídio aos combustíveis fósseis, taxa de carbono, desacoplamento, circularidade e desmaterialização da economia, carros elétricos, plásticos biodegradáveis e aumento das energias eólica e fotovoltaica. Como se, numa economia fundada na lógica e no imperativo do crescimento, retórica diplomática, incentivos ou desincentivos ao mercado e novas tecnologias tivessem algum dia implicado, ou possam algum dia implicar, redução do consumo de combustíveis fósseis e menor pressão antrópica sobre o clima, sobre a biosfera e sobre os recursos naturais.
Desse mirífico pacote de pensamento mágico que permite desviar os olhos do aumento atual e das projeções de aumento nos próximos decênios do consumo de combustíveis fósseis, do desmatamento crescente, da aniquilação da biodiversidade, em suma, da espantosa realidade, quantos escapam? Não muitos. Mas esses poucos sabem que qualquer grandeza que cresce 2% ao ano dobra a cada 35 anos, e a cada 23 anos se cescer 3% ao ano. Ocorre que não há tecnologia disponível capaz de permitir crescimentos econômicos de tal ordem sem impactar ainda mais uma biosfera já em queda livre e um clima em vias de transitar já nos dois próximos decênios para ainda mais 1oC acima das médias atuais. Sabem que o crescimento bateu no teto do meio ambiente, chegou ao limite histórico em que pode ainda gerar benefícios para a humanidade. Sabem esses poucos, em suma, que não há mais chance de escapar de desastres socioambientais em cascata se não se redefinir radicalmente o sentido e a causa final da atividade econômica: diminuição das desigualdades sociais e controle democrático dos investimentos estratégicos. Isso significa arrebatar das mãos dos corporate boards of directors o poder de alocar recursos imensos e vitais para a sociedade em função das expectativas de maximização dos lucros; significa desglobalizar a economia e colocá-la a serviço da diminuição dos impactos ambientais. Mais especificamente, isso significa abandonar em regime de economia de guerra tudo o que faça aumentar as concentrações atmosféricas de gases de efeito estufa: a queima de combustíveis fósseis, o desmatamento, o complexo industrial-militar, a cadeia corporativa da petroquímica, da agroquímica e do sistema alimentar baseado em rebanhos gigantescos e no consumo crescente de agrotóxicos e fertilizantes nitrogenados. Significa investir, portanto, em políticas proativas de decrescimento demoeconômico, a começar pelo direito humano fundamental de ter acesso gratuito e assistido pelo Estado a todas as formas de anticoncepcionais e de interrupção da gravidez. Significa investir em transporte coletivo de qualidade de pessoas e mercadorias, em generalização da infraestrutura sanitária, em uma agricultura local e orgânica, produtora de alimentos saudáveis e não de commodities, que só enriquecem o agronegócio em detrimento das florestas, de seus povos e da saúde da sociedade em geral. Significa renunciar de uma vez por todas ao sonho hollywoodiano de matrizes energéticas poderosas, baratas e ilimitadas e resignar-se a níveis muito menores de consumo de energia e de bens, o que é obviamente impossível, mantida a engrenagem econômica concebida para o benefício dos 10% mais ricos da humanidade.
Não há registro na história da humanidade de qualquer ruptura do paradigma do crescimento e de mudanças dessa magnitude e em tal velocidade. Não há registro porque tal ruptura e tais mudanças nunca foram necessárias. Agora elas são. Não se trata de subestimar a extrema dificuldade de colocar em prática esse programa. Mas nada pode ser considerado impossível quando o que está em curso é a inviabilização da sociedade neste século e talvez ainda em sua primeira metade. O verdadeiro otimismo não nasce dos elogios às façanhas tecnológicas e ao “negócio da sustentabilidade”, mas da avaliação realista da iminência da catástrofe e do tamanho imenso do desafio de confrontá-la. É preciso atacar a causa da doença, antes que essa se torne terminal. Como afirma um eminente cientista como Michael E. Mann, “não se pode resolver um problema quando não se está disposto a aceitar sua causa subjacente” [XI]. Os poucos que percebem a relação causal, no fundo bastante simples, entre expansão corporativa e colapso ambiental num mundo finito estão crescendo em número e em capacidade de persuasão. E começam a pesar na balança. Não ainda, é verdade, na balança do poder político. Mas ao menos na balança das ideias e notadamente na nascente convicção de que as saídas para os impasses e desafios colocados pelo Antropoceno não serão fornecidas pelo receituário econômico e político, exuberante, mas obsoleto, do Holoceno.
Uma nova radicalidade do pensamento filosófico e da ação política é requerida por nossos dias. Uma confiança, renascida das cinzas, de que ainda somos capazes, como sociedade e como espécie, de superar o capitalismo em direção a um novo contrato social, fundado, desta feita, num contrato natural, como pensado e proposto por Michel Serres (vide capítulo 14 e a Conclusão). Uma reinvenção, em suma, da política no sentido mais generoso e democrático do termo, uma política que volte a acolher o imperativo de mudança exigido pelo senso de justiça de nossa grande tradição democrática, mas que se renove na percepção de que não há projeto possível de justiça social numa trajetória de terra arrasada e de colapso socioambiental.
Sabemos todos, para redizê-lo nos termos de quatro jovens cientistas – Damon Matthews, Kirsten Zickfeld, Reto Knutti e Myles R. Allen – que “a civilização global jamais enfrentou um desafio ambiental com tamanho potencial para consequências catastróficas como o desafio colocado pelo aquecimento global” [XII]. Como insistem esses autores, “a questão de saber se seremos capazes de enfrentar esse desafio não é uma questão científica. É uma questão que envolve nossa crença sobre o que as sociedades humanas são capazes de realizar”. Contribuir de algum modo para que essa crença não esmoreça entre seus leitores é a esperança última deste livro.”
[I] Cf. Timothy M. Lenton, Hermann Held, Elmar Kriegler, Jim W. Hall, Wolfgang Lucht, Stefan Rahmstorf & Hans Joachim Schellnhuber, “Tipping elements in the Earth's climate system”. PNAS, 12/II/2008, 105, pp. 1786-1793: “Here we introduce the term “tipping element” to describe large-scale components of the Earth system that may pass a tipping point”.
[II] Cf. Laurie Laybourn-Langton, Lesley Rankin, Darren Baxter, “This is crisis. Facing up to the age of environmental breakdown”. IPPR, Londres, fevereiro de 2019.
[III] Cf. Audrey Garric & Marine Miller, “Climat: les jeunes montent au front”. Le Monde, 15/II/2019.
[IV] Cf. Adrian E. Raftery et al., “Less than 2oC warming by 2100 unlikely”. Nature Climate Change, 7, 31/VII/2017.
[V] Cf. Yangyang Xu e Veerabhadran Ramanathan, “Well below 2 °C: Mitigation strategies for avoiding dangerous to catastrophic climate changes”. PNAS, 14/IX/2017: “>1.5 °C as dangerous; >3 °C as catastrophic; and >5 °C as unknown, implying beyond catastrophic, including existential threats. With unchecked emissions, the central warming can reach the dangerous level within three decades, with the LPHI [low probability (5%) of high impact] warming becoming catastrophic by 2050”.
[VI] Para esse índice, veja-se Talberth, Cobb, Slattery (2007).
[VII] Cf. Michael Safi, “Delhi’s air pollution is now so bad it is literally off the chart”. TG, 15/VI/2018; “Touffeur et pollution extrêmes à New Delhi », Le Monde, 17/VI/2018; Aniruddha Ghosal, Pritha Chatterjee, “Landmark study lies buried. How Delhi’s poisonous air is damaging its children for life”. The Indian Express, 2/IV/2015.
[VIII] Cf. “Beijing one of China's worst offenders in air pollution in May”. Reuters, 13/VI/2018.
[IX] Cf. Lily Kuo, “China 'environment census' reveals 50% rise in pollution sources”. TG, 31/III/2018.
[X] Cf. Echo Wang, “Worth it? Pollution data from 2017 show China wavering between GDP growth and clean air”. Quartz, 12/I/2018.
[XI] Cf. Michael E. Mann <https://www.youtube.com/watch?v=jtv1WZs-8iI>.
[XII] “Focus on cumulative emissions, global carbon budgets and the implications for climate mitigation targets”. Environmental Research Letters, 13, 1, 12/I/2018.