audiodescrição: imagem colorida, de meio corpo, Michel veste camisa gola polo preta, usa óculos,

Michel E. Beleza Yamagishi é autor do livro Mathematical Grammar of Biology. É doutor em Matemática Aplicada pela Unicamp. Atualmente é pesquisador da Embrapa Agricultura Digital e atua na área de Bioinformática.

michel.yamagishi@embrapa.br

Febre da Razão

No livro Ortodoxia, G. K. Chesterton descreve o louco como aquele que perdeu tudo, exceto a Razão [1]. A mesma cultuada como deusa pela Revolução Francesa, momentos antes de cabeças rolarem do cadafalso. A despeito de alguns se escandalizarem com a brutal insanidade dos discípulos de “la Raison”, quem leu (e entendeu) Pascal não se surpreendeu, pois sabe que o Homem não é nem besta nem Anjo, mas que, quando quer ser este, torna-se aquela [2].

A visível, porém infinita distância entre os dedos de Deus e de Adão, imortalizada no teto da Capela Sistina, recorda-nos de que, entre o Céu e a Terra, há um abismo humanamente intransponível. Não obstante o fracasso narrado no capítulo 11 do Gênesis, já há alguns séculos, o Homem vem tentando reerguer uma nova torre de Babel para alcançar o Céu. Desta vez, não empilhando tijolos, mas através do acúmulo de Conhecimento. Contudo, ao invés da almejada elevação, produziu-se um efeito paradoxal, pois fomos rebaixados a uma única questão, assim expressada por Alberto Camus na linha inicial de seu livro “O mito de Sísifo”: “Só há um problema filosófico verdadeiramente sério: é o suicídio”.

Chesterton observou que as Virtudes também adoecem. Com efeito, está doente o amor do pai que, na presença de um grave erro do filho, em vez de corrigi-lo, acoberta-o. Em sua autobiografia, Erwin Chargaff, ao perscrutar o pensamento contemporâneo, diagnosticou o ressurgimento da “febre da Razão” [3]. Este sintoma não lhe passou desapercebido devido a sua formação cultural na Viena do início do século XX. Segundo Chargaff, o Homem foi possuído pelo aforismo “o que pode ser feito, deve ser feito”, que ele apelidou de “doutrina do demônio”. Se fôssemos sábios como nossos ancestrais, humildemente reconheceríamos que há ações irreversíveis, e estas só deveriam ser levadas a termo após profunda reflexão e condicionadas à absoluta necessidade. Sobretudo, não deveríamos nunca brincar com assuntos de vida ou morte.

Ademais, relembra-nos José Ortega y Gasset, a Razão é relativamente recente em termos evolucionários, ou seja, é uma finíssima camada a recobrir nossa natureza bestial, semelhante a um verniz sobre a madeira. É tão translúcida que permite ver, através dela, a fera debater-se contra os grilhões enferrujados que a aprisionam. Qualquer um que já perdeu por alguns minutos a cabeça (metaforicamente) compreende perfeitamente Ortega y Gasset. Portanto, confiar cegamente na Razão, como se nela não houvesse imperfeição, prescindindo da Sabedoria [4], é uma temeridade. O estulto que assim procede não só expõe sua existência ao risco, mas, lançando mão dos inauditos avanços tecnológicos e científicos, pode imprudentemente ameaçar toda a biosfera.

Não devemos jamais olvidar quão rara [5] e frágil é a vida. Tendo surgido após uma grande explosão [6], ela, provavelmente, se extinguirá com a colisão de nosso planeta com algum corpo celeste, ou como consequência do “Big Freeze” que congelará [7] o Universo, conforme as recentes evidências cosmológicas. A atemorizante novidade é que, pela primeira vez em mais de 4.2 bilhões de anos, um único ser é capaz de abrir as portas ao Armagedon. Seja pelo barulho ensurdecedor de uma bomba atômica que destruiria o mundo, seja pelo silencioso efeito colateral de “gene drives[8] que varreriam a vida da face da Terra [9]. Ninguém pode impedir as leis da física de seguirem seu curso natural. Porém, o homo Sapiens [10] pode evitar, ao menos, as duas últimas catástrofes mencionadas. Na escala de tempo geológico, nossa espécie está no estágio embrionário. Seria uma pena voltarmos ao pó, sem antes descobrirmos a resposta para a pergunta: o que é a Vida?   

“Senhor, perdoai-os, pois eles sabem o que fazem!” (Karl Krauss)

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.

[1] “The madman is the man who has lost everything except his reason.” (G. K. Chesterton)

[2] “L’homme n’est ni ange ni bête, et le malheur veut que qui veut faire l’ange fait la bête.” (Blaise Pascal)

[3] “Einstein is somewhere quoted as having said: ‘The ununderstandable about nature is that it is understandable.’ I think he should have said: ‘that it is explainable.’ These are two very different things, for we understand very little about nature. Even the most exact of our exact sciences float above axiomatic abysses that cannot be explored. It is true, when one's reason runs a fever, one believes, as in a dream, that this understanding can be grasped; but when one wakes up and the fever is gone, all one is left with are litanies of shallowness.” [destaque meu] (Erwin Chargaff)

[4] “But we live in a world in which rhymes have become impossible, and reason is a convert to despair. (Is it really an accident that it was in our time, and almost simultaneously, when rhyme and verse disappeared from poetry, melody from music, and the recognizable object from painting and sculpture?)” (Erwin Chargaff)

[5] Até o momento, só encontrada no “pálido ponto azul”, também conhecido como planeta Terra.

[6] A famosa teoria do “Big Bang” da origem do universo que foi proposta pelo padre Católico Georges Lamaître.

[7] Um pouco acima do zero absoluto (-273.15ºC).

[8] “Gene drives are selfish genetic elements that are transmitted to progeny at super-Mendelian (>50%) frequencies.” (Bier, E. Gene drives gaining speed. Nat Rev Genet 23, 5–22 (2022). https://doi.org/10.1038/s41576-021-00386-0)

[9] A energia atômica vem do núcleo do átomo, e o “gene drive” é uma das aplicações das tecnologias de edição do genoma contido no núcleo das células. Dois núcleos, ambos invisíveis ao olho nu e com poderes colossais (como diria a raposa de Saint-Exupéry, o essencial é invisível aos olhos)! A energia atômica ilumina cidades inteiras e, no futuro, poderá ser o combustível das naves colonizadoras de outros planetas. Por sua vez, a edição de genomas já é utilizada pela medicina na cura de doenças genéticas e deve ser aplicada na agricultura para desenvolver plantas resistentes aos estresses causados pelas mudanças climáticas e, quem sabe, salvar a humanidade (e outros seres) da fome ou extinção. O bom uso tanto do núcleo atômico quanto do celular depende da escolha moral do homo Sapiens [10].

[10] A grafia correta é “Homo sapiens”. Porém, optei por uma licença poética a fim de ressaltar uma ideia. A palavra latina “sapiens” significa “sábio”. Conhecimento e Sabedoria são palavras muito diferentes, porém não antagônicas. 

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