Há duas décadas, deparei-me com o filósofo australiano David C. Stove (1927 – 1994). A princípio, interessava-me a crítica iconoclasta que fazia à concepção de ciência tal como elaborada por Karl Popper (1902 – 1994) e amplamente acolhida pela pós-modernidade [1]. Porém, seu pensamento claro e sua prosa direta começaram a me cativar, e lentamente fui sendo conduzido a outros tópicos alheios aos meus interesses imediatos. Poderia citar, à guisa de exemplo, a reflexão sobre a benevolência e seus efeitos paradoxais.
Embora a palavra esteja quase em desuso, imagino que seu significado ainda permaneça no inconsciente coletivo. Mas, para evitar ambiguidades, o dicionário a define como: boa vontade em relação a outra pessoa. Bondade. Assim, uma pessoa benevolente almeja a felicidade de seus semelhantes, sempre bem-intencionada. Qual foi minha surpresa ao descobrir que Stove acrescentava às causas de infelicidade citadas por Thomas Malthus (1766 – 1834), a saber, guerras, fome e pestilências, a benevolência [2]. Não obstante o óbvio exagero retórico, tal asserção arrebatou minha atenção. Bons escritores são assim: pode-se concordar com suas ideias ou delas discordar; porém, é impossível ficar-lhes indiferente.
A interrogação no cerne desse aparente paradoxo é: seria possível causar o mal a alguém só lhe fazendo o bem? Não é necessário um grande esforço reflexivo para responder afirmativamente. Talvez o exemplo prosaico dos pais, que, para proporcionar o maior grau de felicidade ao filho, fazem-lhe todas as vontades, criando assim um adulto mimado, incapaz de lidar com frustações e escravo de seus desejos, seja o bastante para efeito de persuasão. Jamais passaria pela cabeça de nenhum dos pais, como diriam os antigos, “estragar a criança”. Porém, o resultado prejudicial independe da (boa) intenção dos genitores. Li, não me recordo onde, outro exemplo inusitado. Tratava-se de um relato sobre como uma pessoa prejudicou outra apenas elogiando-a. Inacreditável, não? Resumo da ópera: um executivo, assaz vaidoso e narcisista, tinha dois assessores. Um deles, percebendo as fraquezas morais do superior, começou a enaltecer o colega a ponto de irritar o chefe que, não suportando quaisquer louvores a terceiros, demitiu a “vítima” dos elogios. Este caso só difere do primeiro porque a finalidade maléfica era intencional.
Foi Aristóteles, no famoso “Ética a Nicômaco” [3], quem ensinou: “o excesso e a falta são características do vício, e a mediana, da virtude. Pois os homens são bons de um modo só, e maus de muitos modos”. Por algum motivo, pensamos sempre em pares de opostos: amor-ódio, bondade-maldade etc. Mas esse maniqueísmo é ingênuo. O filósofo traz à tona a verdadeira complexidade do problema, pois, ao invés de dois, há sempre três pontos: dois extremos e um meio-termo. Para cada virtude, que é o equilíbrio, existem matizes de falta e de excesso, sendo que os dois extremos são vícios. Entre a covardia e a temeridade, há a coragem. Entre a avareza e a prodigalidade, há a generosidade. E assim por diante. Existem, entretanto, situações menos óbvias. Por exemplo, é intuitivo que a ausência de amor seja lesiva, porém, é contraintuitivo que o excesso de amor também o seja. Todavia, é disto que versa o primeiro exemplo do parágrafo anterior. Em se tratando de virtudes, não só se deve aspirar à mediana, mas diversas virtudes precisam ser cultivadas, porque elas se complementam e se limitam mutuamente. Por exemplo, a responsabilidade parental de educar os filhos para o convívio social, necessariamente, implica a repressão dos caprichos infantis.
A segunda parte da lição aristotélica, “os homens são bons de um modo só, e maus de muitos modos”, é tão verdadeira quanto assustadora. É possível “ser mau” até mesmo fazendo o bem. Ela nos recorda que “ser bom” é um desafio, e mesmo o estagirita, ponderando sobre uma virtude, reconhecia que a forma mais fácil [4] de se atingir o meio-termo é: “às vezes, devemos inclinar-nos para o excesso; e outras, para a deficiência”. Nesse movimento pendular, o meio-termo é alcançado efemeramente seguidas vezes. São Tomás de Aquino (1225 – 1274), no livro “Comentário à Ética a Nicômaco de Aristóteles”, respondendo à pergunta “se é possível possuir alguma virtude moral sem as demais?”, afirma que a virtude da prudência [5] é conditio sine qua non a todas as demais. E vai além: “Isto porque nenhuma das virtudes morais pode ser possuída sem a prudência, e assim, quando a prudência, que é uma [só] virtude, existe em alguém simultaneamente existirão com ela todas [as virtudes morais], das quais nenhuma [existiria] se a prudência não [existisse]”.
Stove reconhecia que a benevolência, em si, não é perniciosa, e que há dois tipos de benevolência que diferem nos resultados [6]. Uma produz o bem esperado; a outra, o oposto. Para evitar esta última, o Doctor Angelicus ensina a ser benevolente com prudência. Portanto, assistir o próximo em suas necessidades é um ato de caridade, todavia ajudá-lo além do necessário é imprudente. Se essa lição é válida no particular, também o é no geral. E foi justamente a observação das consequências deletérias na sociedade que levou Stove a se perguntar: o que há de errado com a benevolência?
[1] Para os leitores interessados, recomendo o livro: Stove, D. C., Against the Idols of the Age. Transaction Publishers, New Brunswick (1999)
[2] Stove, D. C., What’s wrong with Benevolence: Happiness, Private Property, and the Limits of Enlightenment, Encounter Books, New York (1989)
[3] Nicômaco era filho de Aristóteles. Há pouco tempo, os pais ensinavam ética a seus filhos.
[4] Observe que “a forma mais fácil” é diferente de “a melhor forma”.
[5] “Quem é o prudente e o que é a prudência. Parece pertencer ao prudente que ele possa, por faculdade [deste] hábito, bem aconselhar-se acerca do próprio bem [e do que lhe é] útil, não em algum negócio particular, como por exemplo, no que diz respeito à saúde ou à força corporal, mas acerca das coisas que são boas e úteis para que toda a vida humana seja boa. Como a prudência não é ciência, que é hábito demonstrativo, acerca do necessário, e não é arte, que é hábito factivo com razão, resta que a prudência seja hábito ativo com verdadeira razão, não acerca do factível, que são exteriores ao homem, mas acerca dos bens e dos males do próprio homem.” (São Tomás de Aquino) [destaques nossos]
[6] “Since benevolence is sometimes, yet obviously not always, productive of misery, what is it that makes the difference between the two outcomes? How is one to tell in advance the dangerous kind of benevolence from the other?” (David C. Stove)