Nos últimos anos tenho refletido sobre o papel que exerce o Arquivo Edgard Leuenroth (AEL) na comunidade acadêmica e na sociedade brasileira nesses tempos difíceis, de crise sanitária, financiamento escasso, descaso com o patrimônio documental e falta de políticas públicas para arquivos e centros de documentação, principalmente nas ciências humanas. Este momento ímpar na história do Brasil propicia inúmeras possibilidades de recolhimento de acervos históricos, uma vez que várias instituições criadas para preservar e dar acesso a registros históricos estão em situação precária. Em muitos casos, não há alternativa senão doar o acervo a centros de documentação em melhores condições para salvaguardar e propiciar o acesso a esses materiais.
As instituições mantenedoras e de fomento também enfrentam problemas financeiros e, por isso, têm conseguido fornecer apenas o mínimo necessário para manter arquivos e centros de documentação em funcionamento. Em muitos casos, a situação faz com que arquivos que antes acolhiam acervos de instituições irmãs não tenham outra alternativa a não ser “fechar as portas” para novas doações. Na contramão do que ocorre em diversas instituições de memória do país, e mesmo enfrentando problemas, o AEL assume a postura de manter suas portas abertas.
O AEL foi fundado em 1974 a partir da aquisição do acervo documental de Edgard Leuenroth (1881-1968), jornalista e militante anarquista do início do século XX. Inicialmente, propunha-se a preservar a memória operária do Brasil Republicano; com o passar dos anos e a crescente incorporação de fundos e coleções documentais, ampliou sua temática. Hoje, guarda extensa documentação em temas como Movimento Operário e Sindicalismo, História do Trabalho e da Industrialização, História da Saúde, História da Esquerda, Justiça e Direitos Humanos, História Política, História da Cultura, Questão Agrária, História Intelectual, História da Antropologia, Movimentos Sociais, Movimentos Negros, LGBTQI+, Feministas e Indígenas, Colonização na América Latina, África e Ásia. Também mantém vastas coleções de periódicos do século XIX, em microfilmes. O AEL é o maior laboratório-arquivo na área de Ciências Humanas da América Latina. Sua importância tem alcance nacional e internacional, disponibilizando gratuitamente a docentes, discentes, pesquisadores e comunidade em geral uma notável base para pesquisa.
A atuação do AEL faz jus à sua missão: acolher, preservar e dar acesso a documentos históricos. Mais do que isso, ele reflete os valores de seus fundadores, pessoas que acreditavam na importância de salvaguardar a qualquer custo acervos que contam a história da sociedade. Em diversos momentos eles se lançaram a este desafio sem financiamento e estrutura físico-técnica adequada. Com esta postura, eles nos ensinaram que a ausência de condições ideais não pode ser empecilho para receber acervos de instituições irmãs. “O céu é o limite”, repetia o professor Marco Aurélio Garcia.
A partir desses valores e mantendo as portas abertas, nos últimos seis anos o AEL incorporou acervos de pequeno, médio e grande portes, dobrando o volume de documentos preservados pelo Arquivo. Nesse período, foram recolhidos mais de 1.300 metros lineares de documentos convencionais (papel, fitas, microfilmes, fotografias etc.) e o equivalente a 750 metros lineares de documentos convencionais em formato digital. Isso garantiu a salvaguarda de acervos nacionais e internacionais de grande importância para a sociedade.
Um dos principais exemplos é o acervo do Centro de Documentação e Pesquisa Vergueiro (CPV), que desde o início dos anos 2010 vinha passando por crises financeiras que acabaram por inviabilizar suas atividades, encerradas definitivamente em 27 de novembro deste ano. Ao receber o conjunto documental do CPV, o AEL incorporou o segundo maior acervo de documentação de História Social do Brasil (já éramos o primeiro nessa temática). Com aproximadamente 433 metros lineares de documentos, o material do CPV é composto principalmente por documentos nacionais e internacionais produzidos e acumulados nas décadas de 1970 a 1990. Há também quantidade significativa de documentos produzidos após os anos 2000, e, em algumas temáticas, há documentos anteriores à década de 1970. São documentos textuais, bibliográficos, filmográficos, iconográficos, sonoros e tridimensionais.
Ao priorizar o recolhimento, a salvaguarda e o acesso a novos acervos, o AEL assume um papel de protagonista entre as instituições de memória, permitindo a formação de um grande “estoque” de documentos e de conhecimento, que poderão ser explorados ao seu tempo a partir das demandas da sociedade, ainda que não seja possível garantir as melhores ferramentas de pesquisa. Para isso, toda a equipe está realizando um grande esforço de prospecção com vistas a obter, em um futuro próximo, os recursos financeiros e técnicos necessários para que tais fundos recebam o tratamento e o destaque que merecem. De todo modo, a preservação e o acesso já estão garantidos.
Ao compartilhar estas reflexões, entendo que, mais do que nunca, é fundamental um olhar estratégico e de longo prazo para instituições de memória, guardiãs da história. Também vejo como fundamental a união entre os arquivos e centros de documentação para enfrentar a atual conjuntura, a escassez de recursos e as políticas de esquecimento da memória. Arquivos e centros de documentação têm um papel fundamental no cenário atual impregnado de fake news. Elas devem ser desmentidas com fatos e com documentos!
* Humberto Celeste Innarelli é doutor em Ciência da Informação pela Escola de Comunicação e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP); coordenador de Serviços do Arquivo Edgard Leuenroth (AEL) do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH da Unicamp e professor do Curso de Gestão de Tecnologia da Informação da Fatec-Campinas (GTI-Fatec-CPS)
Observação: Os artigos publicados não traduzem a opinião do Jornal da Unicamp. Sua publicação tem como objetivo estimular o debate de ideias no âmbito científico, cultural e social.