O artista e o grumete

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Lasar Segall nasceu em Vilna, capital da Lituânia, em 21 de julho de 1891, faleceu em 2 de agosto de 1957, na casa da Vila Mariana, em São Paulo, Brasil. Seu pai era escritor do Talmud. Aos 14 anos vai estudar na Academia de Belas Artes de Berlim, mas logo se desencanta com os ensinamentos acadêmicos e une-se aos jovens expressionistas alemães em torno do Cavalo Azul. O seu desenho põe em movimento figuras de ressonância cubista, com rostos triangulares e corpos angulosos. Muda-se para Dresden, onde integra a segunda geração de expressionistas alemães da tendência da Nova Objetividade. No desenho predomina a linha, a qual percorre o motivo, não apenas o delineando, mas exprimindo a ironia e a crítica. “A intenção descritiva aliada ao poder de síntese é visível nos retratos que faz dos companheiros, e nas litografias do álbum Bubu, de 1923.”[1]

Em 1913 viaja para o Brasil e realiza uma exposição individual em São Paulo. Os críticos afirmam que o momento mais curioso da arte de Lasar Segall foi sua permanência no Brasil. A atmosfera da vida brasileira, sua gente, sua geografia, sua flora e fundamentalmente suas cores, marcaram a obra do artista. Em 1927-1928 faz exposições individuais no Rio e em São Paulo. Nesse meio tempo casa-se e constitui família, naturaliza-se brasileiro, e vai residir em Paris com a família de 1928 a 1931.

A estada em Paris é o que mais interessa a este estudo, pois, como nos ensina Vera D’Horta, no seu texto “Lasar Segall: construção e a poética de uma obra”, o artista revive o Brasil de memória e folheando seus caderninhos de anotações, produz a série do “Mangue” e anuncia os desenhos da série do “Navio dos Imigrantes”. Ele retoma o desenho linear da litografia de Dresden, mas agora despido da acidez crítica com predomínio dos contornos harmoniosos na ponta seca. O artista também retoma a xilogravura dos primeiros tempos do expressionismo alemão, com sulcos de luz e sombra, mas com o traçado menos áspero. As duas séries iniciadas em Paris se completam em obra nas décadas de 1930-40 "O Navio dos Imigrantes” e o álbum “Mangue” que foi editado em 1944, com prefácios de Jorge de Lima, Mário de Andrade e Manuel Bandeira. A estada em Paris no isolamento da família é fundamental, portanto, para o processo de produção artística da obra acabada de Lasar Segall, que frequenta o ateliê de gravura da Rua Froid de Veau, localizado em Montparnasse. As anotações e os ensaios estéticos culminam na edificação de uma grande obra, já de volta ao Brasil, a partir do começo dos anos 30-40.

A obra que o Museu de Artes Visuais (MAV)  da Unicamp, adquiriu trata-se de uma xilogravura intitulada “Marinheiro e Chaminé”, datada de 1929-1930, portanto, do período parisiense. Tem as dimensões de 24x18 cm e tiragem póstuma de 1984 pelo Gabinete de Gravura do Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro e Museu Lasar Segall de São Paulo, com cem exemplares não numerados. A obra tematiza o grumete e seu entorno, o respiradouro, a chaminé e a representação do mar.

Reprodução de uma litografia. No centro da imagem há uma chaminé e na parte inferior um homem que aparece do pescoço para cima.
"Marinheiro e Chaminé" tematiza o grumete e seu entorno, o respiradouro, a chaminé e a representação do mar (Reprodução Acervo MAV Unicamp e Museu Lasar Segall - MLS)

Como podemos observar, examinando as litografias e as xilogravuras produzidas em Paris, o grumete europeu é personagem recorrente da narrativa da navegação das migrações. O marinheiro europeu embarcado aparece na gravura de ponta seca ocupando o espaço do convés entre as chaminés ou junto à terceira classe dos imigrantes. O marinheiro preto, desembarcado, aparece no solo do porto junto às polacas e eventualmente próximo às janelas do Mangue na xilogravura.

O grumete europeu aparece entre as torres do convés como num palco, expressão de alegria do artista, ele não é triste, não há traço de amargura na aventura da viagem. O grumete da gravura do MAV, como em algumas litografias, está quase caindo fora do quadro, um tanto inclinado sob o peso das altas torres, mas não está subjugado por elas, seu rosto é desanuviado e seu olhar, franco. Mas observa-se uma tensão na construção da imagem entre a linha de força que parte, um tanto inclinada para a direita do quadro a partir da cabeça do marinheiro, cortada na altura dos olhos, e mergulha para a profundidade do quadro e para cima das altas torres, as quais se alteiam às suas costas, uma espécie de ponto de fuga para cima. A tensão observada na composição da imagem talvez sugira alguma ponta de melancolia no lirismo da metáfora da viagem, protagonizada pelo grumete, suporte do artista.

Mário de Andrade ressalta a humanidade de Lasar Segall, sua capacidade de perceber o sofrimento da representação das personagens que compõem as séries do “Navio dos Imigrantes” e do “Mangue” e nas obras acabadas no começo da década de 40. A obra de grandes dimensões, “Navio dos Imigrantes”, é composta por grandes planos cortados em duas grandes linhas transversais pelo mastro do navio e pela trave na parte de baixo do quadro. Os passageiros da terceira classe são dispersados por todo o convés e a proa não tem horizonte, estão como enclausurados nesse espaço interior do navio, entrecortados pelas formas verticais das chaminés e dos respiradouros. A visão é aérea, vista da ponte do navio, há “triangulação ascendente”, observada por Vera D’Horta. A materialidade da pintura impõe-se, a tinta é misturada à areia, criando um corpo tátil tal como o da escultura que Lasar Segall começou a produzir na época. A obra, acabada em 29-30, é uma obra-prima do artista.

A respeito do álbum “Mangue”[2], Jorge de Lima afirma no prefácio, “gostar de seus ritmos, da harmonia de suas composições, do equilíbrio da expressão formal”[3]. O poeta exalta o desenho de Lasar Segall, seu procedimento econômico, o qual constitui a essência da imagem, o traçado o qual movimenta o cerne da figuração.

O desenho de Segall é peculiar, prossegue o poeta. A sua simplificação das criaturas, através das venezianas do Mangue, e em suas ruas fechadas, captura apenas o necessário. Os desenhos e gravuras feitos em 1924 possuem o duplo valor do documento e do privado, revelado apenas na data de sua publicação, o produto de sua criação individual de ateliê parisiense, na evocação do país distante.

O prefácio de Mário de Andrade também faz o elogio do desenho do “Mangue”, espécie de caligrafia da escrita de uma narrativa, a qual o escritor coloca acima da pintura pelo seu poder de evocação liberta como de um hieróglifo, bem mais legível que o pictórico. O desenho para Mário de Andrade é como uma confidência, o limite do desenho é interior, “daí sua liberdade lírica”[4], afirma. O esboço e a anotação, por sua rapidez expressiva, são intimistas, apesar do seu valor documental e social.

O álbum do “Mangue” é o resultado das anotações e esboços dos caderninhos do pintor. Enfim, constitui o que podemos chamar de uma obra aberta, constituída de paratextos até sua reunião final, na gênese de um livro de artista. Os caderninhos desenhados em viagem exibem a subjetividade do pintor despreocupado de sua objetivação em obra. Assim, o caderninho nº 21 mostra um desenho de uma figura de um homem que parece prenunciar a xilogravura “Marinheiro e Chaminés”, como há em outros cadernos anotações que se objetivam em litografias, muitas delas feitas no ateliê de Paris. As litografias são uma escritura mais leve do que o peso dramático expressionista das xilogravuras.

Reprodução de desenho a lápis com a representação da cabeça de um homem.
Foto do caderninho nº21, de Paris (Reprodução)

A xilogravura “Marinheiro e Chaminés” tem a leveza do desenho das litografias, não exprime a dramaticidade expressionista das xilogravuras, mas talvez o encanto das viagens à Europa que o artista fez durante sua vida. Dessa forma a obra adquirida pelo MAV parece reunir a trajetória do processo criativo do artista em trânsito entre Brasil e Europa.

*Vera Maria Chalmers é professora colaboradora do Departamento de Teoria Literária Instituto de Estudos da Linguagem (IEL).

Este texto foi elaborado especificamente para a seção Publicações do site do MAV a partir das atividades das “Efemérides Unicamp 2022”. Julho de 2022.

Esse texto é um artigo de opinião e não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.


[1] D’HORTA, Vera. Lasar Segall: construção e a poética de uma obra.

[2] R.A. Editora, 1944, Philobiblion.  

[3].R.A. Editora, 1944, Philobiblion.

[4] R.A. Editora, 1944, Philobiblion  

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