O dia 8 de janeiro como insurreição neofascista

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Na coluna anterior, comentei a apreensão da minuta que visava à “regularização” das eleições achada na casa de Anderson Torres, ex-ministro de Bolsonaro — fato que apenas veio à tona em decorrência das operações judiciais após atos golpistas do dia 8 janeiro. Mas qual a relação entre o documento, datado no arquivo como sugerido em dezembro de 2022, e o evento recente de invasão e depredação das sedes físicas dos três poderes?

A resposta exige o enfrentamento de dois problemas que, nesses dez dias que se seguiram ao episódio, têm sido bastante discutidos: que tipo de golpe se tentou em 8 de janeiro e, mais importante ainda, quem o elaborou?

Comecemos pelo primeiro: a hipótese de que uma intervenção militar seria viabilizada pelos atos do ataque tem alguns limites. Os agitadores poderiam, como tudo indica, confiar na inexistência deliberada de impedimento de acesso às sedes físicas por parte de comando da Polícia Militar do DF e de destacamentos das Forças Armadas (FFAA). Poderiam, como igualmente tem se revelado, considerar que uma vanguarda profissional — isto é, com treinamento militar — daria conta de avançar sobre as linhas de quem quisesse, mesmo assim, proteger o patrimônio público. A base mobilizada para o ataque poderia, como de fato o fez, seguir em estado de êxtase e registrar a própria invasão em lives — algo compreensível do ponto de vista dos próprios agentes, dado o senso de realidade por eles construído nos acampamentos.

Mas esses mentores deveriam saber que, ao chegar lá num domingo com as sedes vazias (como fazer reféns assim?), sem qualquer ato oficial simultâneo (impedir o que, exatamente, como no Capitólio trumpista?), a investida da base poderia “apenas” mostrar força, isto é, destruir e vandalizar espaços físicos que representam os poderes que criticam. No máximo, incentivar outras ações.

Segundo a cobertura dos fatos até aqui, essas perguntas foram o centro da discussão do núcleo do atual governo, quando este teve ciência das proporções dos atos realizados. Flávio Dino, presenciando tudo ao vivo no Ministério da Justiça em Brasília, sugeriu a Lula, que estava em Araraquara, a intervenção federal imediata apenas na Segurança Pública do DF. Eles calcularam que qualquer ato de maior proporção, especialmente a decretação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) com emprego das FFAA, seria tudo o que os invasores gostariam que acontecesse. A ideia teria sido aventada por José Múcio (Ministro da Defesa), o mesmo que, antes, considerou os acampamentos “manifestações democráticas”.

O tempo tem mostrado que a reação do governo foi precisa: tomaram a responsabilidade de resolver a situação de modo rápido, sem flertar com qualquer intromissão daqueles que poderiam ter agido em prol dela. Delegaram ao STF medidas mais duras, convocaram os demais Poderes e todos os governadores para sinalizar uma demonstração de força e abriram o que foi possível para os meios de comunicação, especialmente a Rede Globo, veicularem a gravidade do que aconteceu. Investiga-se, agora, os responsáveis — pelo menos, até onde podem bancar a investigação.

Dado tudo o que poderia estar em jogo, o dia 8 de janeiro começa a se revelar mais como um tipo de insurreição neofascista que reage ao novo poder constituído do que propriamente uma tentativa concreta de golpe. Um ataque, de fato, planejado, pois munido de pessoal com treinamento militar, mas com uma boa dose de voluntarismo vinda da base acampada em quartéis pelo Brasil.

Isto nos leva ao segundo problema: se houve uma conspiração, quem a teria planejado? Até aqui, as análises têm divergido quando apontam o agente protagonista: Bolsonaro ou os militares?

Que Bolsonaro desejava um modelo autocrático para governar, sem os obstáculos que o regime democrático impõe, não há dúvidas. Fomentou, desde o primeiro de seu governo, as condições que pudessem viabilizar um golpe. Fez sua máquina de agitação e propaganda alimentar, de todos os modos possíveis, o sentimento em sua base de que os demais poderes restringiam a liberdade e impediam a verdadeira democracia no país. O dia 7 de setembro de 2021 talvez tenha sido o ponto máximo da agitação golpista. Embora tenha recuado depois, foi nesse momento, com centenas de milhares de apoiadores nas ruas, que Bolsonaro afirmou não mais respeitar decisões do STF.

Não conseguindo emplacar o golpe em 2021 e sendo obrigado a disputar as eleições de 2022, ficou “dentro das quatro linhas” por falta de opção. Em que pese a descrença na urna eletrônica, promoveu diversas manobras ilegais para usar as instituições e o orçamento público para sua reeleição — sendo as desesperadas “operações-padrão” da Polícia Rodoviária Federal, no dia das eleições, a cereja do bolo.

Bolsonaro não apenas perdeu nas votações, como viu, nos instantes imediatamente posteriores ao fim da eleição, um enorme reconhecimento da legitimidade da vitória de Lula no cenário nacional e internacional, mesmo de quem esperava apoio. Conseguiu apenas forçar o presidente de seu partido, Valdemar da Costa Neto, a tentar invalidar o resultado judicialmente. Tentativa que foi sabiamente implodida por Alexandre de Morais.

Nesse ponto, a minuta encontrada na casa de Torres pode ser mais bem contextualizada. Ao que tudo indica, era a última tentativa de golpe com algum grau, ainda que baixo, de viabilidade, já que Bolsonaro ainda era o presidente em exercício — ele próprio assinaria o decreto — e tinha parte significativa de sua base social em ação, com grupos que tentavam instalar caos em rodovias e estavam se agrupando nos acampamentos em frente aos quartéis. Porém, embora protegendo os acampados em áreas físicas sob seu controle direto, nenhum outro passo concreto foi dado pelas FFAA.

Enfim, se a minuta não concretizada de dezembro de 2022 mostra que Bolsonaro não teve força suficiente para dar o golpe ainda em contexto eleitoral, menor ainda seria a chance de sucesso após a posse de toda a nova administração. Mais ainda, dado que haveria certamente alguma reação do governo eleito, a consequência mais realista é a que tem, de fato, acontecido: as ações judiciais contra Bolsonaro ganham força.

Seria então uma tentativa de golpe de instâncias militares superiores? As insubordinações publicamente manifestadas na troca de Comando de Exército, Marinha e Aeronáutica, a carta do Alto Comando que não descartava fraude eleitoral, a conivência com os golpistas acampados, a não antecipação dos riscos pelo Gabinete de Segurança Institucional e o silêncio até aqui sobre o dia 8 de janeiro servem como fortes indícios da tese de que, pelo menos não impedindo os atos, os militares queriam reposicionar sua força por meio de uma GLO.

Porém, dada a correlação atual de forças interna e a enorme legitimidade de Lula no plano internacional, faria sentido fomentar quebra-quebras exigindo intervenção militar e achar que o atual governo daria exatamente o que os invasores pediam? Faria sentido promover um ataque simultâneo aos Três Poderes e, assim, aumentar a união entre eles, e não sua divisão? Se o plano era fomentar o caos para que as FFAA apresentassem a solução, o resultado tem sido quase o oposto: um relativo consenso sobre a necessidade de diminuir a influência dos militares na política.

Evidentemente, ainda há muito a ser investigado, e é sempre arriscado conjecturar racionalidades sem informações mais precisas e avaliar intenções pelos resultados. A sugestão de Múcio a Lula de implantar a GLO reforça que o plano teria algum sentido. De todo modo, penso ser razoável sugerir uma hipótese quem tem sido pouco desenvolvida e que não necessariamente nega a participação de instâncias militares superiores.

Mais agitação insurrecional da base do que tentativa concreta de golpe, o dia 8 de janeiro talvez tenha expressado um efeito bastante característico de movimentos de tipo neofascista: as bases civis e militares, depois de certo processo de radicalização, ultrapassam um ponto de não retorno. Não podem, de uma hora para outra, serem convidadas a se desmobilizar. Exigem algum retorno mais tangível dos esforços que têm feito até aqui e, embora podendo alimentar crenças de que seus líderes têm planos ocultos, não podem ser saciadas infinitamente apenas com promessas. O cálculo sobre a efetividade do ataque seria, assim, limitado pela necessidade de não desmobilizar a moral das tropas.

Nessa hipótese, o dia 8 de janeiro seria uma reação violenta da base neofascista à vitória política de Lula nas eleições e, principalmente, à vitória simbólica no ato da posse uma semana antes. O projeto de nação representado na subida da rampa e a multidão que estava em Brasília não apenas emocionaram e revigoraram o campo democrático, como devem também ter aterrorizado moralmente os derrotados. Era preciso dar uma resposta violenta que acabasse com aquele “espírito de alegria da posse”, expressão de Lula em entrevista recente a Natuza Nery.

Isso não significa negar, de modo algum, a responsabilidade das cúpulas de governo do DF, Polícia Militar, das FFAA e, claro, de Bolsonaro, cujas participações em agitações golpistas, neste e nos últimos anos, exigem investigação e punição adequadas. Trata-se, porém, de considerar que certos agentes possam ter adotado a omissão ou engajamento passivo como forma de proteger seus quadros radicalizados e de não experimentar uma possível insubordinação vinda de baixo (polícias e FFAA) ou mesmo a perda da crença na liderança (Bolsonaro). Tanto num caso quanto no outro, a insurreição, nesse contexto, embora não levasse a um golpe, serviria de recado ao novo governo de que haverá reação ao grito de “sem anistia”.

Enfim, não se trata de relativizar os ataques golpistas de 8 de janeiro, mas de chamar a atenção para o fato de que, além das lideranças, a “agência” da base social que os fomentaram deve ser bem compreendida, especialmente porque deverá ainda provocar outros tantos efeitos na dinâmica política brasileira. No próximo texto, volto ao tema do movimento de tipo neofascista e como ele pôde ser absorvido em graus diversos a ponto de se tornar palatável a quase metade dos eleitores em 2022.

 

Sávio Cavalcante é professor do Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. 

Contato: saviomc@unicamp.br.

Esse texto é um artigo de opinião e não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.

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