Foto: Antoninho Perri

Peter Schulz foi professor do Instituto de Física "Gleb Wataghin" (IFGW) da Unicamp durante 20 anos. Atualmente é professor da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp, em Limeira. Além de artigos em periódicos especializados em Física e Cienciometria, dedica-se à divulgação científica e ao estudo de aspectos da interdisciplinaridade. Publicou o livro “A encruzilhada da nanotecnologia – inovação, tecnologia e riscos” (Vieira & Lent, 2009) e foi curador da exposição “Tão longe, tão perto – as telecomunicações e a sociedade”, no Museu de Arte Brasileira – FAAP, São Paulo (2010).

5.145 autores: partículas e catedrais

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Ilustração: Luppa SilvaHiperautoria de um artigo científico é um caso à parte na discussão da multiautoria, tema da coluna passada.  À parte, mas importante e merece atenção especial. Ocorre em poucos lugares, particularmente nos enormes (e poucos) aceleradores para estudar as partículas elementares da matéria, como o CERN, organização europeia para pesquisa nuclear. O recorde de hiperautoria é um artigo de lá, publicado na Physical Review Letters em 2015. Trata-se de uma parceria entre duas grandes colaborações, identificadas pelo nome dos enormes detectores dos vestígios das colisões entre partículas, que revelam outras partículas (tanto as esperadas por uma teoria, quanto as inesperadas): ATLAS e CMS. O trabalho conjunto visava obter uma estimativa mais precisa da massa do famoso Bóson de Higgs, a mal apelidada “partícula de deus”. O trabalho de 2015 é a coautoria das equipes dos dois detectores (que em 2012 haviam detectado separadamente o tal bóson), totalizando um “abaixo assinado” de 5.145 autores individuais [I]. Isso não é uma coautoria comum: a organização da pesquisa, o papel e o reconhecimento da contribuição de cada indivíduo seguem regras próprias, distantes dos que estão acostumados apenas à “ciência pequena”, isto é, realizada por grupos bem menores. Mas por que é assim? Os responsáveis são os detectores: projetá-los, construí-los, comissioná-los, calibrá-los, operá-los, extrair e analisar os dados resultantes é tarefa para...milhares de pessoas. Quem diz isso é a própria comunidade envolvida, que por sinal tem que ser bem grande. Voltando um pouco às colisões entre partículas em si, poderíamos compará-las a um hipertexto e que para entendê-lo precisássemos acessar os sucessivos links. Só que a cada novo link energias cada vez maiores são necessárias e navegadores (quer dizer, aceleradores) cada vez maiores e complexos no caso das partículas.

A hiperautoria tem uma história, mais ou menos em paralelo com a história do maior desses laboratórios, o CERN. As duas histórias valem a pena e são esboçadas a seguir.

Em 1948 Cesar Lattes foi a Berkeley, onde produziu artificialmente no acelerador de lá os mésons pi, que ele descobrira no ano anterior, junto com G. Occhialini e C. Powell em vestígios deixados por raios cósmicos [II]. O artigo de 1948 era assinado por ele e por Eugene Gardner. Dois autores, mas o detector era muito simples: algumas chapas fotográficas (bem especiais, é verdade). O acelerador circular era um cíclotron de 4,7 metros de diâmetro. Poucos anos depois, Luis Alvarez, no mesmo laboratório, passou a desenvolver um detector bem mais sofisticado, uma câmara de bolhas de hidrogênio líquido, em outro acelerador circular, batizado de Bevatron e com 41 metros de diâmetro. Um artigo de 1964, relatando a observação de outros tipos de mésons nesse acelerador, era assinado por Alvarez e outros 15 autores. Foram tiradas 370 mil fotos dos vestígios registrados na câmara de bolhas. Bem, tanto o ATLAS, quanto o CMS são detectores do LHC (sigla em inglês para grande colisor de Hádrons), o maior acelerador circular do mundo com 8,6 quilômetros de diâmetro, e esses seus detectores são máquinas altamente complexas que pesam milhares de toneladas e tem dezenas de metros de altura. E precisam dos milhares de pessoas para fazê-los funcionar e revelar algo sobre a natureza.

Foto: Reprodução
Artigo assinado por Cesar Lattes e Eugene Gardner em 1948

Um ano depois que César Lattes foi a Berkeley, o físico francês Louis de Broglie, um dos pais da Mecânica Quântica, anunciou a primeira proposta para a criação de um laboratório Europeu de Física na Conferência Cultural Europeia. A comunidade científica daquele continente destruído pela Segunda Guerra Mundial sentia que a reconstrução da ciência ali só poderia ser feita em colaboração. A ideia de um laboratório europeu para física de partículas foi encampado pela UNESCO em 1950 e no ano seguinte é adotada a primeira resolução com o objetivo de criar o Conseil Européen pour la Recherche Nucléaire (Conselho Europeu para Pesquisa Nuclear, a origem da sigla que se manteve). Os debates eram intensos, visando garantir a pesquisa fundamental e seu caráter pacífico desse laboratório. A convenção definitiva do conselho foi assinada por doze países em 1953, ano em que também o local da construção, Genebra, foi aprovado em referendo popular no cantão suíço de mesmo nome. A construção começou em 1954 e o primeiro acelerador entrou em operação em 1957. A união europeia pela física de partículas antecipa o espírito de reuniões em outros fóruns que levaram, em um processo bem mais lento, à União Europeia. Naquela mesma época, enquanto a convenção que definia o CERN era assinada por doze países, o Tratado de Roma (1957) conseguia a de apenas seis.

A História do CERN é um conjunto três extensos volumes e um de seus autores, Armin Hermann, também dedica um capítulo ao laboratório suíço em seu livro Como a ciência perdeu sua inocência. No final desse capítulo, o autor compara os grandes aceleradores às catedrais góticas da Idade Média: os imensos esforços na construção dos dois tipos de monumentos e o fascínio que passaram a exercer. Ele não foi o único a sugerir essa comparação, artistas plásticos também o fizeram mais recentemente [III], mas eu prefiro a poesia, voltando a Cesar Lattes, ou melhor, a José Leite Lopes. Os dois físicos são retratados no documentário “Cientistas brasileiros” [IV], narrado por Arnaldo Antunes e dirigido por José Mariani. Nele se revela que Leite Lopes se dedicava a pintar catedrais em seu gabinete-atelier e numa cena do filme a câmera faz um travelling ao longo do acelerador linear no subsolo do CNPEM [V] em Campinas, enquanto o físico recita em alemão o poema de Rainer Maria Rilke [VI]:

"com as mãos trêmulas te

construímos, átomo sobre átomo as tuas torres elevamos

mas quem poderia te completar,

ó catedral"

O poema aparece no Livro das Horas, escrito em 1905. Curiosamente o poeta tcheco já adotava os átomos como constituintes da matéria (ou pelo menos das catedrais) no mesmo ano em que Einstein publicava um artigo que foi fundamental para que boa parte da comunidade científica se convencesse (o que só aconteceu de fato alguns anos mais tarde) de que átomos e moléculas eram objetos reais. Mas isso já é outra história.

 


[I] De um total de 33 páginas, 24 eram para a lista de autores e de suas instituições. Deu na Nature

[II] https://www.unicamp.br/unicamp/ju/noticias/2017/06/28/meson-pi-faz-70-anos-cesar-lattes-estava-la

[III] https://press.cern/press-releases/2010/10/atlas-collaboration-cern-unveils-giant-mural

[IV] https://www.youtube.com/watch?v=DB3PzzIrRTc

[V] http://www.lnls.cnpem.br/

[VI] Wir bauen an dir mit zitternden Händen,/und wir türmen Atom auf Atom./Aber wer kann dich vollenden,/du Dom.

 

 

 

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