Meus passeios pelas estantes lá de casa são quase sempre quase aleatórios. É um exercício não específico buscando lembrar que os buracos são geralmente mais profundos. O buraco nesse caso é a neutralidade da ciência. E do seu ensino e divulgação. Selecionei quatro exemplos do passado, obsequiados ou garimpados em sebos, com seus alertas para o presente.
O primeiro foi passado pelo meu pai para que eu nunca duvidasse do que tinha acontecido. Não era necessário, mas passei a ser guardião de um documento importante. Nunca se sabe como andará a memória de outros nos futuros líquidos. É um livro de ciências para formação à distância de soldados na frente de batalha, editado na Alemanha em 1943: “Caminho para o Exame Final – parte 5 – Ciências Naturais: Biologia, Química e Física”. A parte sobre Física é o que se espera: mecânica, eletricidade e magnetismo, seguido de oscilações e ondas. Lembra os meus livros do ensino médio. Bem como a seção sobre Química, dividida entre inorgânica e orgânica. Mas o livro começa por Biologia, que ocupa quase metade das páginas. Não há nada sobre citologia, botânica ou zoologia: a primeira parte é sobre Genética. A segunda parte intitula-se: “os fundamentos biológico-raciais da comunidade nacional e do governo”. Os últimos capítulos desta segunda e última parte são “política populacional” e “cuidados genéticos e raciais”. Não é preciso entrar em detalhes para que se perceba que é um conjunto de horrores a serviço da eugenia, do totalitarismo, justificando, em última instância, a castração forçada por lei de nove “grupos de pessoas”, entre eles maníacos depressivos, cegos e surdos congênitos, como explicitamente “ensinado” no livro. A solução final se coloca nas entrelinhas.
Lembrei-me desse livro quando li na Revista Pesquisa FAPESP, edição de janeiro de 2018, a nota: “O espectro da Eugenia na Universidade” [I]. Relata uma investigação sobre um pesquisador que promoveu por três anos conferências clandestinas sobre eugenia na University College London.
Primeiro alerta dado, vamos ao segundo.
O segundo livro eu ganhei de um ex-aluno, que resolveu organizar a biblioteca dele e, apesar de sua memória afetiva, fez-me guardião do “Caminho do Cientista – iniciação à ciência” para a então primeira série ginasial. É uma edição dos Irmãos Maristas, impresso em 1963, ou seja, vinte anos depois do exemplo acima. A ordem dos capítulos segue a hierarquia positivista das ciências, ou (por que não?) a ordem do Gênesis: “ciência das cousas do céu”, “ciência das cousas da Terra”, “ciência das cousas vivas” e, finalmente, o corpo humano. Entre as cousas vivas, um pequeno capítulo é devotado ao evolucionismo. Termina com um parágrafo anunciado em negrito: “Evolucionismo e religião”. Citação direta: “Você pode ser evolucionista e admitir que o homem é um macaco ou um animal qualquer, bastante evoluído, ou que Deus se serviu de um animal já existente para criar o homem. Quanto à alma, a encíclica Humani Generis do papa Pio XII, nos diz que é criada por Deus”. Parece um proposta de convívio pacífico, que se transformou em uma polarização crescente com as consequências e conflitos que conhecemos de vários textos. Lembro aqui, então, apenas um, da divulgadora científica Vanessa Wamsley: “Você esteve lá?” – “como uma criança criacionista, estava determinada a não aprender sobre a evolução”. É um relato franco e pungente e destaco aqui o “olho” do texto: “O que eu aprendi em casa e na escola era como uma neblina que os princípios mais básicos da Biologia mal podiam atravessar”. [II]
Deixando de lado os textos de ensino, volto-me ao período entre os dois livros resenhados acima: a década de 1950 e a “era atômica”, lançada com as bombas despejadas sobre Hiroshima e Nagasaki. No início da corrida armamentista nuclear era preciso construir um imaginário de um futuro glorioso, que seria proporcionado pelas forças contidas dentro dos núcleos atômicos. A construção desse imaginário é descrita no fascinante livro de Richard Barbrook, “Futuros imaginários – das máquinas pensantes à aldeia global”, traduzido para o português, mas detenho-me aqui aos exemplos de divulgação científica a serviço dessa tarefa. Para começar, um exemplo de fora, “Nosso futuro nuclear – fatos, perigos e perspectivas” de Edward Teller e Albert Latter. O primeiro foi um físico brilhante, mas militante na caça às bruxas organizada pelo senador Joseph McCarthy. O livro defende o uso de armas nucleares, principalmente as “limpas”: “A possibilidade de explosivos (nucleares) limpos abre novas portas para o uso da energia nuclear: os fins pacíficos. Os explosivos comuns têm sido usados tanto na paz quanto na guerra. Da mineração à construção de represas[...] Os explosivos nucleares não têm sido usados desse modo[...] Uma vez dominada inteiramente a arte de construção de armas (nucleares) limpas, as explosões pacíficas marcarão outro passo no controle das forças da natureza”.
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Condenado ao ostracismo por parte da comunidade científica, Teller não deixou de receber apoio do governo dos Estados Unidos. Nos seus últimos anos o cientista de origem húngara propôs a escavação de um porto artificial no Alasca por meio de bombas termonucleares (a tal bomba limpa) e defendia vigorosamente a Iniciativa de Defesa Estratégica de Ronald Reagan. Nenhuma dessas ideias saiu do papel, mas seu autor acabou em filme: inspirou o personagem Dr. Strangelove, de Stanley Kubrick.
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No Brasil, em 1952, apareceu “As maravilhas e progressos da ciência” de Ary Maurell Lobo, um almanaque de curiosidades científicas (e jogos). As maravilhas escondidas nos núcleos atômicos e o progresso que elas proporcionariam são contados em forma de quadrinhos, que ilustram este artigo. Uma das promessas é o prolongamento da vida. Bem, essa promessa agora repousa na bio e nanotecnologias, pelo menos segundo capa da revista Time de 21 de fevereiro de 2011: “2045: o ano em que o homem será imortal” [III]. O maior espanto entre as maravilhas fica por conta “das partículas radioativas poderem ser usadas (provocando mutação) de modo que os traços indesejáveis não sejam hereditários”. Fecha-se, portanto, o ciclo, “inocentes” quadrinhos rendendo homenagem àquele primeiro livro. O alerta? Procurem pelo Google sobre “human genetic enhancement”, já considerada inevitável por alguns autores [IV].
[I] http://revistapesquisa.fapesp.br/2018/02/15/o-espectro-da-eugenia-na-universidade/
[III] http://content.time.com/time/covers/0,16641,20110221,00.html
[IV] http://www.ugr.es/~perisv/congresos/lecturasfc/2005-2006/Enhancement.pdf