Plantas podem ter vários nomes e apelidos. É o que acontece com a árvore da febre, mais conhecida por cinchona, nome popular e científico. Em quéchua chama-se quina ou quina-quina. O nome acabou virando sobrenome de um gênero de plantas, algumas são arbustos, outras árvores mesmo, segundo as enciclopédias. Eu mesmo acredito não ter visto nenhuma delas, mas a sua história é rica em lendas, que em parte viraram fatos e outros fatos, que mereceram virar lendas.
Além da árvore também é personagem central nesta história uma doença, atribuída antigamente aos “maus ares” ou “mal aria”, em italiano medieval. A doença, caracterizada por febres periódicas, grassava pela Europa na época dos descobrimentos, e os invasores espanhóis a trouxeram para as Américas no século XVI. Não havia remédio eficaz para a malária, mas os nativos da região andina conheciam uma planta, que chamavam de quina, cuja casca, reduzida a pó e, misturada numa beberagem, combatia a febre de quem a tomasse. Foi o que, rezam a lenda e alguns fatos, tratou a condessa de Chinchón, esposa do vice-rei de Espanha em Lima, Peru, lá pelos idos de 1630. De qualquer forma, o nome Chinchón virou Chinchona e, depois, Cinchona, mas não atropelemos a cronologia. A primeira menção de um autor europeu à árvore da febre é devida ao monge Antonio de la Calancha, em sua “Cronica Moralizada del Orden de San Agustin en el Perú”, impressa em Lima em 1633[1]:
“Uma árvore, que eles chamam de 'árvore da febre', cresce na região de Loxa [atualmente Loja, nome de uma cidade no Equador]. Sua casca, da cor de canela, moída em pó na dose equivalente ao peso de duas pequenas moedas de prata, quando ministrada como bebida, cura as febres comuns e as febres terçãs e produziu resultados milagrosos em Lima.”
O interesse europeu pelo novo medicamento não tardou a ser despertado. No Colégio São Paulo de Lima, fundado por jesuítas, foi criado um laboratório farmacêutico responsável pela exportação da “casca dos jesuítas” para toda a Europa. Por um tempo, o monopólio foi mantido, mas a demanda crescente pela quina-quina (a casca das cascas em Quéchua) quase levou à extinção da cinchona no Peru. A demanda crescia não só pela incidência da malária nas metrópoles europeias, mas também pela sua alarmante presença no número crescente de territórios colonizados. Assim, cinchonas e suas sementes foram contrabandeadas e espalhadas para outros lugares, geralmente com pouco sucesso. Porém na Índia, colônia britânica, e em Java, colônia holandesa, as árvores se adaptaram a ponto de se naturalizarem. Esse interesse todo pode ser ilustrado pela presença da cinchona no “Catálogo de plantas estrangeiras dignas de serem encorajadas nas colônias americanas para fins medicinais, de agricultura e comércio”, publicado no primeiro volume do “Transactions of the American Philosophical Society” de 1771. Aqui cabe uma observação: foi o próprio Carlos Lineu (1707-1778), o famoso botânico sueco, “pai da taxonomia moderna”, que, em 1742, nomeou o gênero Cinchona, em homenagem à condessa do século anterior.
Mas essa história é ainda longa e cheia de bifurcações. Temos várias espécies de “árvores da febre”, cujas cascas apresentam eficiências distintas, algumas sem eficácia nenhuma, quando não venenosas. As melhores espécies eram as cinchonas vermelha e amarga, e, ao longo dos séculos XVII e XVIII, buscou-se identificar e extrair seu ‘princípio ativo’. Antes disso, um estudo clínico merece destaque, pois leva a um outro ramo dessa árvore de relatos. Em 1672, Robert Talbor publica seu “Pyretologia, or a rational account of the cause and cure of agues”, que relata sua ‘descoberta´ de um tratamento efetivo da malária (ague). Seu “relato racional” não revela detalhes sobre os quatro ingredientes do remédio, apenas diz que dois deles são nativos da Inglaterra. Portanto, não menciona explicitamente a casca de cinchona de alta qualidade, que ele provavelmente obteve por contrabando. Essa omissão do ingrediente chave não se deve ao que hoje chamamos de má-conduta científica, pelo contrário, era para fazer-lhe justiça, ainda que momentaneamente anônima[2].
A “casca (ou pó) dos jesuítas” seria, portanto, pelo nome, de procedência católica e, isso levou a uma desconfiança por parte da Europa protestante, sendo considerada pelos protestantes como instrumento de ‘penetração do mal’ ou de ‘influência maligna papal’, uma espécie de quinta coluna para, por meio de um embuste, a apropriação da saúde e das almas das pessoas. Por isso, o médico inglês omitiu o nome do ingrediente católico para seu público protestante. Demorou décadas para que a resistência por parte das autoridades cristãs não católicas fosse dissipada. Essa resistência foi vencida não só por questões de saúde pública, mas provavelmente também por razões econômicas, pois entramos aos poucos no auge do colonialismo europeu. Ao longo do século XIX, o Império Britânico, a França e a Holanda tinham colônias infestadas pela malária, que continuava a fazer vítimas também nas metrópoles. Não nos esqueçamos de que a malária é, provavelmente, a “mais significativa doença para o mundo civilizado nos últimos três milênios” e era preciso aumentar a eficácia do único remédio disponível para seu tratamento. Um importante passo foi alcançado em 1820, quando os químicos franceses Pierre Joseph Pelletier (1788-1842) e Joseph Bienaimé Caventou (1795-1877) isolaram e purificaram o alcaloide quinina: a árvore ficou com o nome em italiano da nobre espanhola e o princípio ativo foi batizado em homenagem ao nome da mesma árvore em Quéchua. No entanto, a fórmula exata do alcaloide, a estrutura dessa molécula e sua síntese em laboratório ainda seriam desafios para mais de um século. Com isso deixamos a cinchona um pouco de lado e passamos à quinina[3].
A corrida pela quinina sintética, para não depender das árvores, que não cresciam direito em alguns lugares e corriam risco de extinção em outros, acontecia nos laboratórios da Inglaterra, França e Alemanha. Em 1850, por exemplo, A Sociedade Francesa de Farmácia instituiu um prêmio:
“...durante um longo tempo convivemos com um importante problema de encontrar um substituto para quinina com os mesmos efeitos terapêuticos. Por isso, realizamos esta chamada, oferecendo 4000 francos ao descobridor de um caminho para a produção da quinina sintética”.
Ninguém se candidatou ao prêmio, afinal é difícil sintetizar uma molécula, o tal alcaloide, sem conhecer sua fórmula molecular, que só foi estabelecida corretamente pelo alemão Adolf Strecker em 1854. A quinina tem 20 átomos de carbono, 24 de hidrogênio, 2 de nitrogênio e 2 de oxigênio (C20H24N2O2). Conhecida a formulação, ficaria um pouco mais fácil pensar em uma síntese a partir reações de moléculas com fórmulas parecidas, simplificando um pouco o problema, cuja complicação real vem de alguns exemplos. Em 1856, o então estudante de química Willian Henry Perkin (1838 – 1907) tentou sintetizar a quinina, mas errou feio, sintetizando um tipo de anilina, que passou a ser usado na fabricação de corantes. A descoberta errada abriu o caminho para um importante ramo da indústria química, principalmente na Alemanha com, entre outras, a Fábrica de Anilina e Soda de Baden, cujo nome em alemão levou à sigla BASF. Outros erros e tentativas se seguiram, até que no começo do século passado - quando já se sabia que a doença não era causada por ares ruins, mas sim por um parasita transmitido por um mosquito[4] –, o químico alemão Paul Rabe (1869 – 1952), que estudava a quinina, descobriu a estrutura dessa molécula. Lembrando, uma coisa é a fórmula molecular, estabelecida 50 anos antes; outra coisa bem diferente é descobrir como aqueles 48 átomos ligavam-se entre si. Hoje, esta seria uma tarefa simples, com as ferramentas criadas ao longo do século XX, mas naquele tempo... Pois bem, com essa estrutura em mãos, Paul Rabe, junto com Karl Kindler, publicou um artigo em 1918 intitulado “Síntese parcial da quinina. Alcaloides da Cinchona – XIX”. O artigo traz poucos detalhes dos passos da síntese e o desenvolvimento na área caminhou devagar, ainda que em 1931, seus colaboradores tenham sintetizado um grama de hidroquinina, o que é muito pouco e caro para substituir a produção de quinina a partir das árvores, assim voltamos às cinchonas.
Nos anos 1930, os Países Baixos controlavam a produção de quinina, com as plantações na sua colônia na Indonésia fornecendo mais de 10 mil toneladas anuais de casca das cinchonas, 97% da produção mundial de quinina. No entanto, com a Segunda Guerra Mundial, a Alemanha se apoderou dos estoques nos Países Baixos e o Japão tomou as florestas na Indonésia. Os aliados ficaram sem o remédio contra a malária, que resultaria na morte de milhares de soldados, além das provocadas durante os combates. Os americanos ainda conseguiram levar sementes de cinchona antes de saírem das Filipinas no começo da guerra, plantando-as na Costa Rica, mas a quantia não seria suficiente. Ao mesmo tempo, estabeleceram as “missões cinchona”[5], voltando ao lugar de origem dessas árvores, com o objetivo de garantir o suprimento de árvores da febre das florestas de países andinos para fins militares. Esse programa acabou interrompido com a recuperação das florestas asiáticas e a normalização do estoque dos países aliados.
Perto do final da Segunda Guerra Mundial, a síntese da quinina voltou à cena com pompa e circunstância. Em 1944, Robert Burns Woodward, um dos “pais” da síntese orgânica e prêmio Nobel de química de 1965, e William von Eggers Doering anunciam a “síntese total da quinina”, baseada no trabalho dos colegas alemães do começo do século. O emaranhado de descobertas e de prioridades intelectuais levou a controvérsias, mas enfim teríamos a quinina sintética[6]. A síntese não tinha sido total, faltaria apenas um passo, o crucial e final anunciado no trabalho de Rabe e Kindler, mas os químicos americanos se deixaram envolver pelas hipérboles de propaganda dos tempos de guerra. Os resultados, tanto da dupla liderada por Woodward, quanto da dupla alemã, foram assim duramente contestados e somente neste século foram reproduzidos, quando, com um tanto de química, junto com história da ciência, desvendou-se o passo crucial não descrito integralmente no artigo de 1918[7]. É bom lembrar, no entanto, que sempre continuou sendo mais barato e eficiente extrair quinina das árvores, até que o famoso alcaloide fosse substituído pela cloroquina, descoberta em 1934, um análogo sintético com uma fórmula parecida e preço competitivo, que ganhou triste e indevida fama recentemente nas mãos de inescrupulosos cientistas e políticos genocidas.
A cinchona e a quinina, ao longo de 390 anos de registros, revelam uma história rica, que mistura diferentes ciências (medicina, botânica, ciências farmacêuticas, química) com saberes de povos originários, disputas religiosas, comerciais, geopolíticas, necessidades militares, questões ambientais e controvérsias científicas, que é apenas esboçada aqui, deixando de lado outros tantos eventos, desde a participação de cientistas como Louis Pasteur nessa aventura até o uso de sulfato de quinina, chamado quinino, na água tônica, ideia que surgiu no exército indiano para combater a malária. Ela não funcionou muito bem para o propósito original, mas é ótima para refrescar, ou ainda misturada com Gin, como preferia Ernest Hemingway.
Esse texto começou com uma vaga curiosidade ociosa, que aumentou para querer puxar o fio da meada até aqui. No meio do caminho surge a pergunta de quais outras plantas revelariam riquezas históricas como essa. Uma convicção de que, sim, existem outras, provavelmente muitas, se firmou sem buscar fontes. Em troca de mensagens, Luiz Carlos Dias passou uma fonte, que não conhecia, para novas aventuras, referência que compartilho com o leitor que porventura siga curioso[8].
Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.
[1] The Legend of Cinchona, George Urdang, The Scientific Monthly, volume 61, p. 17-20 (1945)
[2] Evaluating Cinchona bark and quinine for treating and preventing malaria, G Gachelin, P Garner, E Ferroni, U Tröhler e I Chalmers, Journal of the Royal Society of Medicine; 2017, Vol. 110(1) 31–40
[3] Várias informações nesse parágrafo e nos seguintes foram retiradas do artigo “The Quest for Quinine: Those Who Won the Battles and Those Who Won the War”, de Teodoro S. Kaufman e Edmundo A. Rúveda, Angew. Chem. Int. Ed. 2005, 44, 854 – 885
[4] Para ler sobre outros ramos dessa história, conferir artigo de Luiz Carlos Dias:
[5] Wartime Cinchona Procurement in Latin America, W. H. Hodge, Economic Botany , Jul. - Sep., 1948, Vol. 2, No. 3 (Jul. - Sep., 1948), pp. 229-257
[6] QUININA: 470 ANOS DE HISTÓRIA, CONTROVÉRSIAS E DESENVOLVIMENTO, Alfredo Ricardo Marques de Oliveira e Daiane Szczerbowski, Quim. Nova, Vol. 32, No. 7, 1971-1974, 2009. Observação: o título do artigo é impreciso, são 370 e não 470 anos de história.