Em tempos de fartas, muitas vezes falsas, notícias cada vez mais curtas e curtidas, bordões como “balbúrdia” e “marxismo cultural” ganham espaço e, sem mais, o estatuto de verdade. Na última coluna [I] recorri ao que é chamado de revisão bibliográfica, recurso metodológico acadêmico, para encontrar evidências sobre um desses motes, a “doutrinação” de estudantes que seria feita pelos docentes. A revisão sugere que não há evidências, mas uma ponta fica solta. Um estudo brasileiro comenta, baseado em dados, que o desenvolvimento político dos estudantes (adultos e não menores de idade) se daria “através do espaço institucional criado para a participação espontânea em atividades extracurriculares” [II].
É necessário, então, olhar para essas atividades extracurriculares, bem como para o espaço institucional criado para elas. Em vez de uma nova revisão bibliográfica, recorro a outro formato usado no mundo acadêmico (e fora dele): o estudo de caso. O “case” escolhido é o da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp, que é o ambiente que melhor conheço, afinal sou docente lá, além de ter sido seu diretor até recentemente. A FCA completou, em março 2019, 10 anos de atividades e agora em maio são 10 anos também que tive a primeira reunião com um grupo de estudantes interessados em organizar-se, criar uma organização estudantil. Era a primeira Empresa Júnior da Faculdade, a Integra, reunindo estudantes de Engenharia e Administração. Não demorou para que outros grupos me procurassem, embriões de outras entidades, entre elas o que hoje é o Diretório Acadêmico de lá. A percepção da diretoria e de alguns docentes era que esse movimento, não previsível a início seria importante para a instituição. Faço uso de longa citação direta de um capítulo de livro do qual sou coautor.
“Para além do desenho institucional e articulação do corpo docente, um aspecto emergente, isto é, não previsível nas discussões anteriores e concomitantes à implantação da FCA do ponto de vista institucional, é um singular comportamento do corpo discente frente a uma faculdade nova com um discurso não tradicional. Esse comportamento se refere ao engajamento dos estudantes em entidades com um largo espectro de atuação. [...] Embora ainda não existam levantamentos precisos, estimativas sugerem participação ativa de até 30% do corpo discente ingressante, em algum período durante a sua permanência na FCA. As organizações estudantis incorporam em boa parte o discurso interdisciplinar, de modo que não necessariamente estão associadas aos estudantes de um único curso. [...] De modo geral, as atividades e possibilidades de participação de grande parte delas abrem-se aos estudantes de todos os cursos. Essa característica leva a um movimento ainda lento, mas contínuo, de incorporação e reconhecimento institucional, da Unicamp, dessas atividades como parte da realização da missão da FCA. Tornou-se estratégico perceber a relevância dessas atividades na formação dos estudantes, dentro de uma perspectiva de integração de ensino e extensão.” [III]
À época em que o texto foi escrito, eram 15 organizações, hoje são 28, como pode ser verificado no sítio da Faculdade [IV]. São divididas em cinco grupos: atléticas, diretórios e centros acadêmicos, consultorias, serviços comunitários e outros grupos de interesse. As categorias mais tradicionais são as atléticas e os diretórios/centros acadêmicos, responsáveis, talvez pela acepção de “balbúrdia” como sendo festas e participação política. Não há, no entanto, um monolítico “marxismo cultural” (a expressão tem que ser tomada com cuidado, pois não vejo, entre os que a utilizam, uma definição clara), pois, se assim fosse, teríamos apenas um diretório. Quanto às atléticas, acrescento um evento pessoal curioso. As organizações sempre reclamaram, como boa dose de razão, de falta de espaço. Em particular, as entidades na categoria consultoria, reclamavam de um espaço mais nobre para se reunir com possíveis clientes e discutir projetos. Como diretor da faculdade, ofereci a sala de reuniões da diretoria para essas reuniões: era só agendar e pronto. Tive a oportunidade de cumprimentar os participantes em diversas reuniões e uma delas chamou especial atenção: era a reunião dos membros de uma Atlética, que estavam reunidos para fazer um... planejamento estratégico! Para mim, quase uma contradição em termos (atlética e planejamento estratégico), mas é um bom exemplo de como essas atividades extracurriculares são espaços de aprendizagem e de aplicação do que se aprende em sala de aula. As organizações realizam projetos muito interessantes, incorporam, de fato, a interdisciplinaridade nas suas ações, colaboram entre si em programas mais ambiciosos voltados à sociedade. Como já ultrapasso nesse ponto os 5.000 caracteres, remeto o leitor às edições da revista “Abre Aspas” para conhecer alguns dos projetos desenvolvidos [V].
Como está se desenvolvendo a “incorporação e o reconhecimento institucional” dessas “balbúrdias”? Um passo recente foi a possibilidade de que essas atividades sejam registradas no histórico escolar dos participantes, através de disciplinas voltadas para esse fim, os chamados “Estágios em organizações estudantis” e “Projetos de Extensão: Estudos de Caso” [VI]. E, há pouco tempo, a Congregação da Faculdade aprovou seu regimento, que no seu artigo 5º define sua constituição, incorporando as organizações estudantis:
“Artigo 5º - A Faculdade de Ciências Aplicadas é uma unidade de ensino e pesquisa não departamental, constituída por seus cursos de graduação, núcleos de graduação, programas de pós-graduação, laboratórios e centros de pesquisa, organizações estudantis e pelas diretorias de apoio técnico e administrativo”.
Esse reconhecimento institucional decorre de 10 anos de história da nossa unidade de ensino, pesquisa e extensão, que pode ser embasada pela ideia da importância do que se chama currículo informal, talvez outra nomenclatura para atividades extracurriculares. A ideia vem de dois pesquisadores australianos, Arran Caza e Holly Brower [VII]. O estudo é sobre ensino em cursos de Administração, mas se aplica a outras formações. Uma questão abre o artigo deles: “currículos formais na maioria das faculdades são notavelmente similares no que tange objetivos, conteúdos e métodos”. Então, afora talvez eventuais diferenças nos corpos discente e docente, o que torna um curso em um curso melhor? São, segundo os autores, as atividades extracurriculares, ou o currículo informal. Podem ser promovidas tanto pelo corpo docente, quanto pelo discente (como percebemos na FCA). Ou seja, uma boa universidade precisa de “balbúrdia”, que, por sua vez, precisa de liberdade acadêmica. A universidade é uma organização única e complexa, é uma “multiversidade”, como definido por Clark Kerr nos anos 1960 [VIII].
Em resumo, a “balbúrdia” dos estudantes não só faz bem à universidade, como é imprescindível!
Liberdade de expressão e organização
A discussão acima talvez não responda a outros bordões que por aí se repetem, como o do “viés ideológico”, que sufocaria a exposição de ideias e ações não alinhadas com o tal, digamos, “marxismo cultural”. O presente “estudo de caso” parece refutar tal percepção. Dentre as organizações estudantis na FCA, existe, por exemplo, A Liga do Mercado Financeiro, que dificilmente poderia ser classificada de “marxista”, para usar novamente o repertório de epítetos que circula por aí. Aparece também, lado a lado, a Frente Feminista junto com o MOSAICO (Grupo Cristão) e o GOU (Grupo de Oração Universitário). Clara diversidade na expressão e organização de distintos grupos de interesse entre o corpo discente. É interessante observar que o movimento pela liberdade de expressão, que alguns grupos insinuam não existir, ganhou grande força justamente em universidades americanas nos anos 1960, mesmo palco onde, desde há alguns anos, certos grupos também passaram a insinuar de que ela não existiria. Tal qual a escola sem partido, mencionada na coluna anterior, a alegada intolerância ideológica da esquerda universitária também é uma ideia importada de outros contextos [IX].
E as manifestações e os protestos? Pelo que se desenrola em certas redes sociais, protestos estudantis seriam também resultado da “fábrica de militantes” nas universidades públicas brasileiras. Tampouco corresponde à realidade: protestos estudantis ocorrem em todos os lugares do mundo, são inerentes à complexidade das universidades. Um busca rápida revela os protestos em Baltimore [X] (evolvendo estudantes da universidade Johns Hopkins, com ocupação de prédio e polícia) e em New York [XI] (foto abaixo), nessa semana em que escrevo, e em Kentucky, no mês passado[XII]. Balbúrdia desse tipo existe desde muito antes do nascimento de Karl Marx. Acadêmicos de Oxford, envolvidos em uma balbúrdia por lá, refugiaram-se na cidade de Cambridge, dando origem à universidade nesta cidade. Foi em 1209 [XIII]. Vinte anos depois, uma balbúrdia foi o estopim de outras, que resultaram em uma greve que durou mais de dois anos na Universidade de Paris, espalhando docentes e discentes por várias cidades da Europa, dando origem ou consolidando universidades nesses lugares [XIV]. Mais recentemente, uma balbúrdia de estudantes na Argentina deu origem ao Manifesto de Córdoba em 1918, movimento & documento que modernizou a universidade latino-americana [XV]. Universidades se desenvolvem com suas balbúrdias em diferentes cantos do mundo há mais de 800 anos.
Entendo que, para muitos, balbúrdias do tipo do início desse texto são bem-vindas, enquanto que as mais próximas do fim não são, mas universidades são assim e seus estudantes são adultos. Não é o caso dos estudantes do ensino fundamental e médio, crianças e adolescentes, que, aliás, são os estão fazendo a maior balbúrdia no mundo todo pelo nosso clima [XVI]. Agradeço as crianças por isso.
[I] www.unicamp.br/unicamp/ju/artigos/peter-schulz/doutrinacao-e-repeticao-de-opinioes-sem-evidencias
[II] Joseli Bastos da Costa; Ana Raquel Rosas Torres; Marta Helena L. Burity; Leôncio Camino, Temas psicol. vol.2 no.1 Ribeirão Preto abr. 1994. Acesso pelo Scielo.
[III] Sobre as condições internas e externas para a interdisciplinaridade na Faculdade de Ciências Aplicadas da UNICAMP, Peter Schulz, Álvaro D´Antona e Flávio Ferreira, in Ensino, Pesquisa e Inovação – desenvolvendo a interdisciplinaridade, cap. 12 p. 269-291 (2017), editores: Arlindo Phillipi Jr, Valdir Fernandes, Roberto C. S. Pacheco. Editora Manole.
[IV] www.fca.unicamp.br/portal/pt-br/fca/org-est.html
[V] www.fca.unicamp.br/portal/pt-br/comunic-2/comunicacao-abreaspas.html
[VI] www.dac.unicamp.br/sistemas/catalogos/grad/catalogo2019/coordenadorias/0070/0070.html#SL004
[VIII]Uma boa ideia dessa complexidade é dada no texto de Anísio Teixeira, “ A universidade ontem e hoje”
[IX] www.unicamp.br/unicamp/ju/artigos/peter-schulz/sobre-o-premio-nobel-da-paz-e-liberdade-de-expressao
[X] www.chronicle.com/article/Johns-Hopkins-Calls-In-the/246260?cid=wsinglestory_6_1a
[XIII] www.cam.ac.uk/about-the-university/history/early-records
[XVI] www.unicamp.br/unicamp/ju/artigos/luiz-marques/greve-global-dos-adolescentes-pelo-clima