A sucessão de notícias, em particular nos últimos meses, sugere um andar do bêbado, meio aleatório, mas com um destino em mente. Na falta de um arcabouço teórico (ignorância minha, não que não exista um ou até vários), tento abrir um cofre, ora virando o disco numerado para um lado, ora para outro, às vezes parando em um número par, em outras, ímpar. Sem saber, no entanto, quantos passos tem a combinação completa e com incertezas a respeito do conteúdo preciso no interior do cofre. Assim vamos ao primeiro clique na sequência codificada.
“A ciência ainda não faz parte da cultura brasileira” é um artigo recente de Carlos Vogt e Mariluce Moura [I], que discute o imenso trabalho de comunicação que ainda precisa ser feito para defender a produção científica por aqui. Ciência é respeitada, mas de modo vago e poucos sabem nomes dos nossos cientistas ou de nossas instituições de pesquisa. O título do artigo remete a outro clique da combinação do cofre, o ensaio “As duas culturas” de Charles Pierce Snow, representante tanto das ciências naturais, era físico-químico, quanto das artes e humanidades, foi também romancista. O ensaio é de 1959, completando, portanto, 60 anos. A tese ali é de que a vida intelectual do Ocidente estaria dividida em duas culturas – as ciências e as humanidades –, divisão que seria um obstáculo para o enfrentamento dos grandes problemas do mundo. Apesar de levar a fama, Snow não foi original. Em 1946, Karl Jaspers, filósofo e reitor chamado a reconstruir a Universidade de Heidelberg após a era nazista, escreveu um pequeno livro, “A ideia de Universidade”, onde se lê: “um ideal educacional no qual o humanismo e....as ciências naturais se juntam...para o enriquecimento mútuo não foi realizado.” Concordo com ambos, embora Jaspers seja mais propositivo e Snow, algo ressentido. Vejo isso no exemplo que ele coloca em seu ensaio:
“Muitas vezes eu me encontrei em reuniões com pessoas, que, pelos padrões da cultura tradicional, são consideradas altamente educadas e que expressam a menudo a incredulidade sobre a ignorância dos cientistas. Vez ou outra eu os tenho provocado e perguntado sobre quem poderia descrever a segunda lei da termodinâmica. A resposta era fria e negativa. No entanto, a pergunta seria equivalente a você já leu uma obra de Shakespeare?” [II]
O problema hoje e de 60 anos atrás parece ser o mesmo: a ciência não faria parte da cultura. Voltando alguns meses neste 2019, os ataques às ciências humanas em favor das “artes práticas” de “retorno imediato” sugeririam então uma vingança ao cânone tradicional, segundo Snow. Mas, em busca da combinação do cofre, temos a negação também das ciências naturais nas sucessivas censuras às pesquisas e dados do IBGE, Fiocruz e, agora, do INPE. Bem como das artes, no eufemístico ensaio de “filtro” na Ancine. Em resumo, não se trata de respeito a um cânone cultural do qual se deseja fazer parte, como discutido há mais de 60 anos; trata-se do desprezo ao patrimônio cultural como um todo, para também lembrar a investida contra as universidades, que têm a “função criativa de dominar e ampliar o patrimônio humano do saber e das artes em todas as suas formas”.
Esse conjunto de negações e censuras é também, portanto, em relação ao passado (patrimônio) e de como pensávamos o futuro (com a ajuda da ciência). O que se observa, então, é uma primazia do presente. Sintoma claro de um diagnóstico da pós-modernidade. Embora tenha ressalvas a essa agenda de pensamento, é acurada a descrição do terreno onde tudo o que acontece agora se tornou possível. Em suas várias vertentes, a ideia de pós-modernidade ou, como prefere Gilles Lipovetsky, hipermodernidade, o terreno é o da substituição de grandes ideias para um progresso histórico pela mera eficiência. O Estado recua, o papel regulador de contrapesos se esvai: “nesse contexto, as esferas mais diversas são o locus de uma escalada aos extremos, entregues a uma dinâmica ilimitada, a espiral hiperbólica.” [III] Pelo menos para as esferas que restaram.
Esse cenário teria começado a se revelar no final dos anos 1970, mas talvez seja mais interessante debruçarmo-nos sobre visões anteriores. Fahrenheit 451 (temperatura em que o papel entra em combustão) é um livro de Ray Bradbury de 1953 e um filme de François Truffaut de 1966. Atenho-me às imagens do filme, revisitado mais recentemente. Sinopse:
“Num futuro hipotético, os livros e toda forma de escrita são proibidos por um regime totalitário, sob o argumento de que fazem as pessoas infelizes e improdutivas.
Se alguém é flagrado lendo é preso e ‘reeducado’. Se uma casa tem muitos livros e um vizinho denuncia, os ‘bombeiros’ são chamados para incendiá-la. Montag é um desses bombeiros. Chamado para agir numa casa ‘condenada’, ele começa a furtar livros para ler. Seu comportamento começa a mudar, até que sua mulher, Linda, desconfia e o denuncia. Enquanto isso, ele mantém amizade com Clarisse, uma mulher que conhecera no metrô.
Ela o incentiva e, quando ele começa a ser perseguido (e morto, segundo a versão divulgada na TV pelo governo), ela o leva à terra dos homens-livro, uma comunidade formada por pessoas que memorizavam seus livros e também eram perseguidas. Essas pessoas decoravam os livros, para publicá-los quando não fossem mais proibidos, e os destruíam”[IV].
O filme, quando exibido e discutido em aula, causou assombro nos estudantes. Nesse mundo hipotético (?) o Estado, representado pelo corpo de bombeiros, inverte seu papel: em vez de apagar incêndios, provoca-os. O que é queimado é o patrimônio cultural, que, ao contrário do que se pensava até então, torna as pessoas incapacitadas para a nova sociedade. A cultura é substituída pela TV interativa, todos podem se ver nela, caso meritórias pela ordem estabelecida. As paredes convertidas em telas emanam um eterno presente com platitudes, como vieram a ser chamadas décadas depois, fake news. Emblemática a cena em que uma casa antiga, guardiã de enorme biblioteca é incendiada, junto com sua proprietária, que se recusou a ser “reeducada”.
O bombeiro Montag torna-se no final membro da comunidade dos “homens-livro”. Comunidade isolada, idílica, de triplo retrocesso: regridem à oralidade para preservar a cultura escrita, não criam, apenas preservam, e isolados do público a quem os livros interessam. Como toda ficção distópica, não há brechas para escapar de um eterno presente imutável e opressor. Mas como seria uma possível continuação dessa história? Uma pista é dada por Leonard Cohen: “Existe uma brecha/ uma brecha em tudo/ e é assim que a luz penetra.” [V] E os homens-livro escapariam para recitar as obras e, apesar da proibição, eles continuam seguidamente. Como aconteceu com as mães da Plaza de Mayo [VI] em Buenos Aires (às quintas-feiras), as missas na igreja de São Nicolau em Leipzig (às segundas-feiras, 1989) [VII] ou os protestos há 48 semanas, às sextas-feiras, pelo futuro [VIII].
Pensamos ainda como em embates anteriores: notas de repúdio, artigos, esperando pressão do exterior, desabafando no Facebook. São inócuas, não bastam, não virá e não reverbera, respectivamente. Os exemplos do final do parágrafo anterior são de outra ordem.
[II] https://en.wikipedia.org/wiki/The_Two_Cultures
[III] “Tempo, contratempo, ou a sociedade hipermoderna”. Gilles Lipovetsky, in “Os tempos hipermodernos”, Gilles Lipovetsky e Sébastien Charles, editora Barcarolla (2004).
[IV] https://pt.wikipedia.org/wiki/Fahrenheit_451_(filme)
[V] https://www.youtube.com/watch?v=6wRYjtvIYK0
[VI] https://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A3es_da_Pra%C3%A7a_de_Maio
[VII] https://en.wikipedia.org/wiki/Monday_demonstrations_in_East_Germany
[VIII] https://pt.wikipedia.org/wiki/Fridays_for_Future