Na insana guerra contra a vacina, ergue-se a desinformada batalha em torno da eficácia das vacinas. A bisonha tropa contra a nossa saúde deleita-se com o avanço do batalhão dos sinônimos, que são palavras com significados semelhantes, mas não idênticos. E, às vezes, a semelhança não existe, mas insiste. É o caso das palavras eficiência, eficácia e efetividade. As três têm significados diferentes, que, além disso, dependem do contexto em que são usadas: em administração são uma coisa, em estatística e epidemiologia são outra. No uso cotidiano são, frequente e erroneamente, usadas como se fossem sinônimos perfeitos. Vamos, então, às definições gerais meio vagas e imprecisas e, depois, ajustá-las e aplicá-las à questão das vacinas contra a Covid-19.
Está lá no Google! “Eficiência: é quando algo é realizado da melhor maneira possível, ou seja, com menos desperdício ou em menor tempo. Eficácia: é quando um projeto/produto/pessoa atinge o objetivo ou a meta. Efetividade: é a capacidade de fazer uma coisa (eficácia) da melhor maneira possível (eficiência)”.
A discussão toda nessas semanas é sobre a eficácia das vacinas e não sobre sua eficiência. Eficientes foram as organizações que em tempo recorde, mas graças a desenvolvimentos prévios obtidos durante anos, desenvolveram vacinas contra a pandemia de Covid-19. Uma vez desenvolvidas, o que se testou, ou ainda se testa, a famosa fase 3, são suas eficácias.
E, quanto às vacinas, eficácia tem um significado muito mais preciso: é a porcentagem de redução de uma doença em um grupo de pessoas vacinadas, comparado com outro grupo de não vacinados, em um ambiente controlado. Ou seja, é o resultado dos testes da fase 3, que estão tão presentes na mídia. Essa medida têm uma longa história.
A primeira vacina da nossa história, contra a Varíola[I], foi aplicada (com sucesso) por mais de um século sem estudos de fase 3 controlados e sem conhecer sua eficácia como definida acima. Hoje isso seria inadmissível, pois a ciência avança (bem como sua prática e ética) e, nesse meio tempo, a medida da eficácia de vacinas apareceu há mais de 100 anos pelas ideias e ações de Major Greenwood (1880-1949), epidemiologista e estatístico Britânico (Major era seu nome mesmo e não patente militar, aquela que vem depois de capitão) e George Udny Yule (1871-1951), escocês e estatístico. No artigo “A estatística das inoculações antitifo e anticólera e a interpretação de tais estatísticas em geral”, publicado em junho de 1915[II], os dois autores delineiam o procedimento para estabelecer a eficácia de vacinas através de testes clínicos controlados, randomizados (quanto aos voluntários, o que evita possíveis vieses em relação a apenas um ou outro grupo da população) e o chamado duplo cego (nem o voluntário, nem o médico sabem se o que o primeiro recebeu foi a vacina ou um placebo, evitando outros vieses). Esse é o chamado melhor dos cenários, ou seja, controlado. Na introdução de seu artigo, Greenwood e Yule, estabelecem em 1915 o que hoje lemos em fragmentos sobre os testes das vacinas contra a Covid-19:
“Na seção I nós descrevemos as condições que são, na nossa opinião, necessárias para obter os dados com os quais conclusões estatísticas válidas possam ser inferidas e abordamos a questão de erros e flutuações da amostragem [os voluntários].
Na seção II os dados disponíveis são examinados a partir do ponto de vista definido na primeira seção.
Na seção III nós desenvolvemos uma teoria estatística pela qual resultados de imunizações podem ser interpretados.
Na seção IV nós consideramos a aplicação de certos métodos estatísticos de medida associados aos dados apresentados aqui.”
Trechos do artigo de Greenwood e Yule de 1915. Esquerda: a primeira página. Direita: acima, uma tabela com dados para uma vacina antitifo e, abaixo, discussão da época (no final do artigo) sobre a nomenclatura para o que hoje é chamada de eficácia e efetividade.
A partir desse desenho, todas as vacinas foram ou são testadas há 105 anos. Mas como é esse cálculo? A conta final é simples e empresto a descrição de Luiz Carlos Dias, comentando a eficácia de uma das vacinas contra a Covid-19, em dezembro de 2020[III]:
“A Pfizer anunciou mais detalhes sobre a eficácia de 95% observada com a sua candidata vacinal na primeira análise preliminar realizada. Segundo a empresa comunicou, esta eficácia de 95% foi alcançada, pois do total de 8.000 voluntários no ensaio clínico, foram observados 162 voluntários infectados no grupo de 4.025 pessoas que recebeu o placebo (4,02%) e 8 voluntários infectados no grupo de 3.975 que recebeu a vacina (0,20%). Chega-se à eficácia ao fazer a continha: [1 – (0,20/4,02)] x 100. Isto quer dizer que ao tomar a vacina, 95% ou 3.776 pessoas do grupo de 3.975 voluntários que recebeu a vacina estaria protegido”.
Aplicando esse cálculo aos dados da tabela I do artigo de Greenwood e Yule de 1915, aquela vacina antitifo tinha uma eficácia de 82%. Mas e a efetividade? A efetividade de uma vacina é calculada da mesma forma, com a mesma fórmula descrita acima, mas agora considerando a população como um todo, ou seja, quando depois de aprovada, a vacina é aplicada em larga escala. Por que a diferença de nome então? É que nos testes clínicos controla-se precisamente o número de casos, tanto no grupo que recebeu a vacina, quanto no grupo que não recebeu. No caso de uma vacinação em massa, não é possível saber exatamente o número de pessoas não vacinadas, apenas uma estimativa baseada no censo populacional. Além disso, não há informação precisa sobre as características de cada um dos vacinados, o que ocorre nos testes clínicos. Em geral, se a eficácia é obtida em testes clínicos com milhares de pessoas (como é o caso das vacinas contra a Covid-19), a efetividade será similar à eficácia[IV].
Por fim, chegamos aos dias de hoje e à expectativa criada pelos anúncios preliminares da eficácia da Coronavac. E os dados finais de eficácia geral em torno de 50%. Esse número é bom, mas a expectativa e a desinformação geram a ideia de que esse número e a vacina são ruins. Citando novamente Luiz Carlos Dias:
“Uma vacina com baixa eficácia pode dar voz aos negacionistas do movimento antivacinas, aumentar a disseminação de notícias falsas e causar estragos na cobertura vacinal nos próximos anos para as principais vacinas de nosso calendário”[V].
De fato, os 50% levam a comentários nas redes sociais de que tomar essa vacina é como jogar cara ou coroa. Empresto o jogo de cara e coroa para ilustrar de que não, a vacina funciona! Vamos aos argumentos. Se não tomarmos os devidos cuidados (uso de máscaras, higienização constante das mãos e distanciamento físico) podemos imaginar um “cara ou coroa diário”: cara, eu não me infecto, coroa, eu me infecto (quem toma os devidos cuidados, a chance de se infectar é drasticamente reduzida, mas seguiremos com o exemplo simplificado aqui). Muito bem, uma vacina com 50% de eficácia fara com que metade da população, ao jogar cara e coroa, só obterá cara em todas as jogadas (não se infecta). A outra metade (a vacina não imunizou) continuará, a cada jogada, obtendo cara ou coroa, com chances iguais. E daí? Bem, se observarmos bem, antes da vacinação a chance de coroas (infectar-se) é de 50%, mas após a vacinação a probabilidade de coroas se reduz a 25%. Na verdade, com metade da população imune, a chance de coroa, nesse jogo ilustrativo começa a diminuir bastante. Por fim, teremos um controle da pandemia.
Uma situação real é parecida com esse exemplo simplificado, mas falta dizer que o exemplo é para uma adesão total, ou seja, toda a população vacinada. Para que isso aconteça, e tenhamos a oportunidade de virar a página dessa pandemia, é preciso informar corretamente o público e combater o negacionismo da tropa que é ineficiente, ineficaz e inefetivo, portanto, incompetente e irresponsável para promover o bem público.
Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.
[I]https://www.unicamp.br/unicamp/ju/artigos/peter-schulz/do-antivacinismo-aos-sistemas-bisonhos
[II]https://journals.sagepub.com/doi/pdf/10.1177/003591571500801433
[IV]What is the difference between efficacy and effectiveness? | Gavi, the Vaccine Alliance