Em uma recente pesquisa de percepção pública de ciência, um resultado chamou a atenção: embora a ciência em si fosse apreciada, poucos respondentes souberam dizer o nome de um cientista ou de uma instituição que se dedicasse à pesquisa científica[II]. A memória afetiva, por outro lado, sugere que nos anos 1970 e 1980, os estudantes de Física da Unicamp mencionariam uma montanha como lugar de ciência: Chacaltaya, pico dos Andes Bolivianos com seus 5400m a 30 km de La Paz. É o mítico lugar onde César Lattes construiu em 1947 um Observatório de Raios Cósmicos, no qual as chapas fotográficas registravam os traços dos produtos de interações de partículas, que viajam distâncias astronômicas para colidir com os átomos na nossa atmosfera terrestre, revelando, nas emulsões fotográficas, os indícios do que acontece no interior de núcleos atômicos. Nesse ano de 1947, as emulsões aprimoradas por Lattes mostraram os sinais que confirmaram a existência dos mesóns pi, curiosas partículas, que livres resistem apenas frações de segundo, mas são responsáveis pelas forças nucleares que mantém os núcleos atômicos, ou seja, nós e todo o resto, coesos. Mas esse importante capítulo da história da Física é contado em outros textos[III], aqui é a história em torno de uma montanha.
As montanhas eram importantes porque informações coletadas a grandes altitudes mostravam melhor as evidências desses raios cósmicos. Perto do nível mar as colisões já são tantas que se perde muito das trajetórias (e, portanto, informações) desse gigantesco jogo de sinuca entre partículas subatômicas. E o nome de Chacaltaya aparece explicitamente no artigo de Giuseppe Occhialini e Cecil Powell sobre o que foi observado naquele ano: “Observações da produção de mésons pela radiação cósmica”[IV]. Estão lá mencionados quatro picos: Jungfraujoch e Pic du Midi nos Alpes europeus, Kilimanjaro (África) e Chacaltaya. Quatro montanhas para coletar as informações, lembrando, de certa forma, as observações do celebrado eclipse de 1919 em lugares tão distantes quanto Sobral no Ceará e em São Tomé e Príncipe[V].
A minha memória se rende ao pico mais próximo, pois as chapas lá expostas eram trazidas à Campinas e reveladas no porão do prédio do Departamento de Raios Cósmicos até o final dos anos 1980[VI], graças a forças-tarefa anuais, notadas por todos nós que por ali circulávamos. As chapas ainda estão disponíveis para análise, afinal trata-se de um repositório de “big data”, só que analógico (milhares de filmes revelados), que precisava de diligentes pessoas treinadas observando ao microscópio milímetro quadrado por milímetro quadrado daqueles filmes. Portanto, a Física de Partículas em Chacaltaya não se limitou ao já distante ano de 1947, mas perdurou por décadas até meados dos anos 1990 em uma colaboração entre Brasil e Japão, afinal o físico que propôs a existência teórica dos mésons foi Hideku Yukawa, que depois sugeriu à Cesar Lattes essa colaboração.
Nesse meio tempo, o Laboratório de Raios Cósmicos em Chacaltaya, incorporado à Universidad Mayor de San Andrés em 1952, teve papel fundamental na criação do curso de Física em 1966 na capital da Bolívia, segundo o sítio da universidade[VII]. Pouca coisa parece estar registrada sobre isso, mas ouvi os relatos de um de seus professores, Wilfredo Llanos Tavera, hoje professor titular emérito de lá e que foi um dos meus melhores estudantes nas disciplinas de pós-graduação do Instituto de Física da Unicamp em meados dos anos 1990[VIII].
A ciência chegou a Chacaltaya antes de César lattes, por meio de uma estação meteorológica em 1942, e hoje, voltando à vocação original, abriga uma estação do Global Atmosphere Watch, coletando dados sobre mudanças climáticas[IX]. Mudanças essas que, a propósito, levaram ao fechamento da estação de esqui por lá[X], que era a mais alta do mundo.
A diversificação da ciência em Chacaltaya pode ser apreciada pela incidência do nome desse pico nos títulos, resumos e palavras-chave em artigos indexados na plataforma Web of Science, que curiosamente não registra o artigo na Nature em 1947, apenas os que apareceram de 1960 em diante. São mais de 200 artigos, a maioria ainda em Física de partículas, mas que hoje compartilha a lista com outros temas: meteorologia atmosférica, ciências ambientais, geociências e até neurociências. Há muito conheço o lugar pelo nome, agora um pouco de sua história, pesquisada para a coluna; mas visitá-lo assombra-se como impossível. No entanto, pelo menos nessa montanha a 5400 metros de altitude, a ciência resiste.
[I] Conteúdo gentilmente revisado por Edmilson Manganote, que faz parte dessa história.
[II]https://www.unicamp.br/unicamp/ju/artigos/peter-schulz/cientistas-esses-desconhecidos
[III]https://www.symmetrymagazine.org/article/the-legacy-of-cesar-lattes
[IV]https://www.nature.com/articles/162168a0
[V]http://www.comciencia.br/o-eclipse-de-1919-e-as-disputas-pela-ciencia/
[VI] Essas e outras histórias estão na edição especial do Jornal da Unicamp: https://www.unicamp.br/unicamp_hoje/ju/marco2005/capa281.html
[VII] http://www.fiumsa.edu.bo/
[VIII] Wilfredo foi orientando de doutorado de Guillermo Cabrera.
[IX]http://www.chacaltaya.edu.bo/
[X]https://www.snow-forecast.com/whiteroom/chacaltaya-bolivia-worlds-highest-ski-resort/