A última semana de junho de 2023 trouxe notícias interessantes, de certa forma relacionadas entre si. No meio da semana, houve o anúncio oficial dos primeiros resultados do censo de 2022. Censo que atrasou bastante, primeiro por conta da pandemia, depois, pela sabotagem do governo passado. E, curiosamente, no final dessa mesma semana, concluiu-se o julgamento que condenou o sabotador à inelegibilidade devido a outra tentativa de sabotagem.
O atraso e as dificuldades de realização do censo demográfico chamam a atenção pois, como declarado no sítio do IBGE, responsável pelo censo brasileiro, o censo "tem o objetivo de identificar informações essenciais para o desenvolvimento e implementação de políticas públicas e para a realização de investimentos públicos e privados"[i]. Então, como governar sem esses dados? Embora esse atraso recente tenha conferido um destaque maior ao tema, com a divulgação de informações sobre vários de seus aspectos, vale a pena uma breve crônica da história do censo.
Os precursores do que chamamos hoje de censo demográfico remontam ao antigo Egito, há milênios, à China, já no começo da nossa era cristã, além de ser mencionado na Bíblia no “Livro dos Números”. No entanto, vamos começar o relato já no século XVII, quando a ciência do estado passou a ser engendrada.
Em 1662, John Graunt, considerado um dos primeiros demógrafos britânicos, publicou o livro “Observações Naturais e Políticas sobre as Listas de Mortalidade”. Os dados eram coletados nos registros de nascimento e morte mantidos pelas paróquias. Graunt era, na verdade, dono de um armarinho, mas possivelmente também foi o primeiro epidemiologista, em função de seu interesse nas contagens de mortalidade durante epidemias. Essas contagens e seu uso são descritos no que talvez seja o primeiro romance jornalístico, “O Diário do Ano da Peste”, de Daniel Defoe, mais conhecido como o autor de “Robinson Crusoé”. A obra era sobre a grande peste de Londres nos anos 1665-1666, quando Defoe ainda era uma criança. Ele escreveu o livro em 1722, recorrendo a relatos e outros documentos, entre eles as tais listas de mortes. Voltando a John Graunt, é preciso mencionar que suas ferramentas matemáticas não iam muito além da regra de três para fazer estimativas populacionais a partir de suas listas. Ainda não dava para chamar o que ele fazia de uma ciência. Ainda assim, seu amigo, o economista e médico William Petty, escreveu uma série de ensaios, em que anunciava a “Aritmética Política” como uma nova ciência. De fato, o nome é apropriado, pois a maior parte das operações aí envolvidas eram somas e subtrações de números[ii]. No século seguinte, um outro personagem chega finalmente a essa crônica: Gottfried Achenwall, jurista e historiador alemão, que em 1749 publicou o “Esboço da mais nova ciência do estado dos mais modernos reinos e repúblicas para uso em palestras acadêmicas” (tradução livre). Em alemão, “ciência do estado” é “Staaswissenschaft”, que foi popularizada, a partir de Achenwall, como “Statistik”, ou seja, estatística. Uns consideram William Petty como pai dessa ciência, outros ficam com o alemão, que possivelmente cunhou o termo.
As fontes são cuidadosas a respeito desse período agitado: o que Graunt, Petty e Achenwall faziam era bem distante do que hoje conhecemos por estatística. Foi na virada do século XVIII para o XIX que matemáticos desenvolveram mais essa ciência, aproximando-a ao que hoje se ensina nas disciplinas universitárias. Entre eles, temos Pierre-Simon Laplace, que usou a teoria das probabilidades para supor a precisão de números populacionais a partir de amostras, como se faz nas atuais pesquisas de intenção de votos. O “método de Laplace” foi utilizado no microcenso francês realizado entre 1799 e 1802[iii].
Censos envolvendo a contagem total da população são exigidos pela constituição norte-americana e são realizados lá desde 1790 a cada dez anos. O primeiro país a adotar essa prática foi a Suécia, em 1749. Ao longo do século XIX, a maioria dos países passou a realizar censos demográficos e, no Brasil, o primeiro foi realizado ainda no Segundo Império, em 1872. Antes disso, tínhamos apenas estimativas populacionais, como a do Abade Corrêa da Serra, que estimou em 1 900 000 “almas” a população do Brasil no ano de 1776.[iv] A autoria de um abade identifica a coleta de dados nas paróquias, como nos tempos de Graunt na Inglaterra um século antes. Com a República, veio o segundo censo em 1890 — o Império deixara de fazer o de 1880. No período republicano, os censos de 1910 e de 1930 não foram realizados por “motivos de ordem política”. O IBGE, criado em 1938, é, desde o censo de 1940, a instituição responsável por eles.
Entre as notícias sobre o censo publicadas na última semana de junho de 2023, algumas apontam para as resistências de muitos em “dar informações para o governo”. Essa resistência remonta aos censos feitos nas colônias, pois nem sempre eram transparentes suas intenções, como a de prover “voluntários” para as tropas das metrópoles. A outra resistência, que observamos aqui, não era por parte da população, mas daqueles que deveriam promover o censo, que afinal é “essencial para o desenvolvimento e implementação de políticas públicas e para a realização de investimentos públicos e privados”. Distintos sítios mostram linhas do tempo com marcos diferentes da história, e o Population Research Bureau revela algo interessante sobre essas resistências: “Nações coloniais europeias, como Inglaterra, França e Dinamarca evitavam realizar censos em seus próprios países devido à oposição da nobreza, temerosas de perder poder para os governos centrais. [...] Ao contrário das colônias, onde censos eram ferramentas para controlá-las.”[v] Resistência do próprio governo central parece mesmo algo inusitado na história.
Nos séculos XVII e XVIII, a nascente estatística não era, no entanto, apenas voltada à ciência do estado, que lhe deu o nome. O matemático e filósofo francês Blaise Pascal, por exemplo, se preocupava com a teoria da probabilidade aplicada a jogos de azar. Por sua vez, o pastor e matemático inglês Thomas Bayes, criou um teorema — que leva o seu nome —, hoje essencial em diferentes áreas como inteligência artificial, que foi inicialmente usado para provar a existência de Deus[vi]. Deixando de lado as apostas e as questões divinas para futuras buscas pelo Google, o que se evidencia é que a estatística, ou os chamados métodos quantitativos, estão na origem das ciências humanas e sociais. Esses métodos não foram incorporados, talvez devido ao sucesso nas ciências exatas, aos métodos qualitativos, dando origem a contraposições com seus falsos dilemas, que seguem dando pano para a manga nos departamentos das universidades. Foi ao contrário: um dos pilares da física, a chamada Mecânica Estatística, deve muito às ciências sociais. Um dos pais dessa área, que estuda o comportamento coletivo de partículas, como as multidões de moléculas nos gases, James Clerk Maxwell, leu o livro do historiador Henry Buckle, “História da Civilização na Inglaterra”, em que propunha ver a história a partir de leis estatísticas. A leitura desse livro influenciou-o a usar a estatística, que os cientistas sociais de então usavam, na física. E Maxwell ainda trocou correspondência com o historiador, propondo analogias entre as duas ciências[vii]. Por outro lado, superado o positivismo das coisas no século retrasado e graças às abordagens qualitativas, sabemos que pessoas e sociedades não se resumem às leis estatísticas.
É preciso ainda voltar aos censos para conectar as notícias da última semana de junho de 2023. Com menor repercussão, mas ainda assim com pompa e circunstância em determinados meios, foi anunciada uma nova edição de um dos vários rankings de universidades. Esses rankings são em grande parte baseados em censos, não de pessoas, mas de artigos científicos publicados e de suas citações. Censo fácil de ser feito, cujo objetivo, alegado por muitos, é “identificar informações essenciais para o desenvolvimento e implementação de políticas públicas e para a realização de investimentos públicos e privados”. No caso, são para políticas e investimentos em ciência. No entanto, ao contrário dos censos demográficos, efeitos deletérios do uso inadequado dessa “aritmética científica” começam a ser percebidos não só por quem a eles resistem.
Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.
[i] https://www12.senado.leg.br/radio/1/noticia/2023/06/29/ibge-divulga-primeiros-dados-do-censo-demografico-de-2022
[ii] https://www.britannica.com/science/probability/The-probability-of-causes
[iii] https://encyclopediaofmath.org/wiki/Laplace,_Pierre-Simon_Marquis_de
[iv] https://memoria.ibge.gov.br/historia-do-ibge/historico-dos-censos/censos-demograficos.html
[v] https://www.prb.org/resources/milestones-and-moments-in-global-census-history/
[vi] https://blogs.cornell.edu/info2040/2018/11/28/bayes-theorem-and-the-existence-of-god/
[vii] https://press.princeton.edu/books/paperback/9780691208428/the-rise-of-statistical-thinking-1820-1900