O passeio iniciado na coluna passada, partindo de uma pequena lista de artigos científicos do Brasil no século XIX, percorreu o litoral brasileiro[I] e, por isso, começo esta segunda parte pelo interior, mais precisamente por Campinas, na província de São Paulo. Joaquim Correa de Mello (1816-1877), que consta da tal lista, nasceu na capital, mas foi jovem para a cidade do interior, onde virou aprendiz de farmácia, ofício que depois o levou ao Rio de Janeiro para cursar esta disciplina. Logo interessou-se por botânica e seu primeiro estudo foi sobre plantas medicinais indígenas, juntando as duas vocações. Como botânico foi reconhecido internacionalmente, tornando-se membro de associações científicas europeias, colaborando com os colegas de lá e publicando artigos no Journal of the Linnean Society of London - Botany. O início de um desses artigos aparece à esquerda na ilustração abaixo. Um detalhe interessante é que o “Quinzinho da botica”, seu apelido carinhoso, escrevia em português mesmo, mas seus artigos eram traduzidos para o inglês, este, no caso, por J. Miers. E o endereço está lá: Campinas apenas, sem nenhum nome de alguma instituição de pesquisa a que estivesse vinculado. Parece que não há tanta coisa escrita sobre o cientista campineiro, mas o artigo em homenagem ao centenário de sua morte, à direita na ilustração abaixo[II] traz uma foto sua e, logo no início do texto, menção à primeira contribuição do “Quinzinho”, não na botânica, mas na química: foi Joaquim quem informou Hércules Florence sobre as propriedades de nitrato de prata sob efeito da luz, passo fundamental para que o francês por aqui inventasse a fotografia, mas essa é outra história, contada em outros lugares[III]. Junto à fotografia nota-se outra menção a um artigo sobre Correa de Mello publicado na Revista do Museu Paulista, editada por Hermann von Ihering, nome que aparece várias vezes na lista de artigos mencionada, um dos grandes personagens da nossa ciência no século XIX.
Hermann von Ihering (1850-1930) nasceu na Alemanha, mas o zoólogo veio ao Brasil ainda jovem, aparentemente por falta de oportunidades no país natal, entre outros motivos. Foi parar no Rio Grande do Sul, mesmo vinculado ao Museu Nacional do Rio de Janeiro. Acabou deixando o museu carioca e se tornando o responsável pela ala zoológica do recém-criado Museu do Estado em São Paulo. Chegando lá, em 1893, tornou-se diretor do museu que, em 1895, foi recriado e renomeado como Museu Paulista. E nesse mesmo ano já lançou mais um periódico científico brasileiro do século XIX, a Revista do Museu Paulista, que editou por muito tempo, também publicando ali muitos de seus artigos, além daqueles que publicava no exterior. A imagem abaixo mostra um endereço de pesquisa brasileiro, o do Museu, emplacado em artigo na Science (à esquerda, índice de uma edição, cujo primeiro artigo é o de Ihering, com o endereço da instituição brasileira ao final – destaque na imagem) e o frontispício do primeiro número da revista do museu[IV]. Hermann von Ihering por aqui ficou e se naturalizou brasileiro, mas, com a onda antigermânica devida à Primeira Guerra Mundial, acabou demitido do Museu Paulista e foi montar um museu em Florianópolis. A ideia durou pouco, pois logo seu salário acabou sendo cortado. Sem outras opções, voltou para a Alemanha em 1920, depois de décadas no Brasil. O filho dele, Rodolpho von Ihering (1883-1939), nascido aqui, por aqui ficou. Biólogo, seguiu com a edição da Revista do Museu Paulista, de onde saiu em protesto à demissão do pai, mas seguiu com pesquisas em outros endereços brasileiros.
Algumas outras passagens de Hermann von Ihering ainda merecem destaque. Primeiro, a ilustração acima indica que o artigo dele na Science é sobre moluscos com os quais começou a desvendar a história do Oceano Atlântico, conquistando reconhecimento internacional ao demonstrar a conexão paleontológica entre a América do Sul e a África. Essa história é contada em vários artigos, como “Entre mares e continentes: aspectos da trajetória científica de Hermann von Ihering, 1850-1930”[V] de Maria Margaret Lopes e Irina Podgorny. Por outro lado, sua etnografia é a parte obscura de seu trabalho, uma mancha enorme na biografia, chegando ele a sugerir uma “solução final” para o “problema indígena”[VI].
A crônica desse passeio não pode isentar-se desse terrível lado do até então simpático cientista. Uma última questão, para deixá-lo e ir para o próximo personagem: quem afinal levou von Ihering para o Museu Paulista? Com essa pergunta chegamos também a outro membro da lista de autores e artigos da ciência brasileira no século XIX, o geólogo e geógrafo norte-americano naturalizado brasileiro Orville Derby (1851-1915). Derby tem uma rica história, que terminou de forma trágica, como a manchete de jornal reproduzida na imagem abaixo antecipa.
Derby veio ao Brasil pela primeira vez em 1870, voltando em 1871 e por aqui ficou. Não demorou muito para ser convidado para fazer parte da Comissão Geológica do Império, criada em 1874. Aceito o convite, doou seu acervo pessoal ao Museu Nacional do Rio de Janeiro. Não tardou a se enveredar por São Paulo, fundando a Comissão Geográfica e Geológica de São Paulo e daí se envolveu na criação do Museu Paulista, indicando justamente von Ihering para sua direção[VII]. Tendo a pista inicial em mente (artigo na tal lista), deve ser mencionado que ele era um autor prolífico e o artigo na Science, sobre a gênese dos diamantes, de 1887, estampado na ilustração acima, marca o Museu Nacional como a instituição do autor.
Naqueles anos da década de 1880, o Museu Nacional era um centro efervescente. Para lá também foi outro cientista europeu, Emilio Goeldi (1859-1917), que em 1894, na época em que von Ihering dirigiu-se ao sul, resolveu ir para o norte, para ser diretor de um terceiro museu, que se consolidava, o Museu Paraense. O cientista suíço-alemão transformou-o em outra grande instituição de pesquisa, logo criando também uma revista científica, o Boletim do Museu Paraense. Tanto o Boletim, quanto um artigo de Goeldi, que apareceu na minha lista, merecem uma ilustração. O artigo é sobre ninhos de um pássaro (Goeldi era também ornitólogo) e foi publicado no periódico Ibis, em 1894. Duas curiosidades juntadas no painel à esquerda da figura abaixo. Primeiro, o artigo tem figuras, algo raro naqueles tempos, assinadas pelo seu autor, J. Smit. Em segundo lugar, o artigo foi submetido em abril de 1894 e o endereço é um bairro em Teresópolis, pois Goeldi já não estava mais no Museu Nacional. Foi ao Pará logo depois, como mostra a data no final do prefácio da edição de lançamento do Boletim do Museu Paraense. Atentem à justificativa do uso do português como língua oficial da revista, apresentando um panorama sobre o uso de línguas nacionais ou não em publicações científicas da época (à direita na imagem abaixo). A história de Goeldi é contada em vários lugares - remeto aqui ao Portal do Museu que hoje leva o seu nome[VIII] - e o Boletim do Museu também disponível para ser folheado digitalmente[IX].
Começamos o passeio, na coluna passada, pelo Museu Nacional no Rio de Janeiro, fomos a um hospital na Bahia, seguimos para Olinda, voltamos ao Rio de Janeiro, passando pelo Observatório Nacional, além de percorrer a costa junto com um autor desconhecido. No presente texto, seguimos ao interior de São Paulo, fomos à capital da província e seu Museu Paulista e demos um salto até o Pará. A lista de artigos que me guiou termina a viagem, voltando à Bahia, pois é de lá um trabalho publicado em 1895 no British Journal of Dermatology, volume 7, páginas 378 a 382. O título é “Arsenic affections of the Skin” e o autor é o médico Juliano Moreira do Hospital Santa Izabel, em Salvador. Quem seria o nosso dermatologista, que publicou sobre essa especialidade lá fora? Juliano Moreira (1872 – 1933) entrou na lista estudando a pele, mas ele fez muito mais do que isso. O menino negro e pobre entrou na Faculdade de Medicina da Bahia aos 14 anos e formou-se aos 19. Sua tese de formatura sobre sífilis teve repercussão internacional. Abreviando a história contada no El País[X], o Dr. Moreira é considerado a pai da psiquiatria e psicanálise no Brasil, além de ser tropicalista, naturalista e historiador.
Num tempo em que tantos transformam listas de artigos em indicadores de eficiência, é bom saber que por trás das listas existem histórias a serem contadas e lembradas.
Observação: Os artigos publicados não traduzem a opinião do Jornal da Unicamp. Sua publicação tem como objetivo estimular o debate de ideias no âmbito científico, cultural e social.
[II] O artigo completo está acessível na seguinte conexão: http://13.82.108.85:8080/jspui/bitstream/1357/848/1/19_Correio_Popular_17_04_1977.pdf
[III]https://revistapesquisa.fapesp.br/caminhos-paralelos/
[IV] A revista pode ser folheada digitalmente: http://hemerotecadigital.bn.br/acervo-digital/revista-museu-paulista/145254
[V]https://www.scielo.br/j/hcsm/a/D3LNgRGyCs3yTpRtpBSsLVH/
[VI]http://www.etnolinguistica.org/doc:1
[VII] A criação do Museu Paulista na correspondência de Hermann von Ihering (1850- 1930), Maria Margaret Lopes e Silvia Fernanda de Mendonça Figueirôa, Anais do Museu Paulista. São Paulo. N. Sér. v. 10/11. p. 23-35 (2002-2003).
[VIII]https://www.museu-goeldi.br/assuntos/o-museu/historia-1