De volta ao formato presencial pós-pandemia, a 74ª reunião anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), que aconteceu na última semana de julho, suscitou intensos debates sobre ciência. Destaco aqui o balanço de Renato Janine Ribeiro, presidente da SBPC: “Nunca tivemos um momento tão ruim na nossa história desde o período colonial. Ele é preocupante, porque temos um país muito mais complexo do que há algumas décadas e que está devastado por ódio, ignorância e perseguição às coisas boas”. Publicadas no último domingo de julho (31) no jornal Folha de S. Paulo, análises contundentes também foram feitas por Luiz Davidovitch e Helena Nader. O primeiro descreve uma agenda perversa, que “ignora ingredientes essenciais ao desenvolvimento sustentável: inclusão social, proteção ao meio ambiente, educação de qualidade, ciência tecnologia e inovação”. Da coluna de Nader, cito o título, curto e grosso: “Política de Estado para a ciência”, algo que não temos. A esses textos, soma-se o artigo de opinião de Carlos Gilberto Carlotti, Maria Arminda Do Nascimento Arruda, Paulo Nussenzveig e Raúl González Lima: “Inovação, um urgente projeto de longo prazo”.
Uma reflexão sobre essas ideias me remeteu a um pequeno livro, publicado na semana passada, Ciência para o desenvolvimento sustentável – o papel da física. Em grande medida, este texto articula quase todas as palavras-chave aludidas acima. O livro, cuja versão digital pode ser acessada no portal da Sociedade Brasileira de Física (SBF), é uma proposta de reflexão sobre o papel da física como ciência para superar o “pior momento da nossa história”.
Convidado para ser um dos coautores, como caçula acadêmico, esse livro acabou tendo um significado especial para mim. Adalberto Fazzio é o coordenador, Alaor Chaves, nosso editor, Ricardo Galvão e Rita de Almeida também são coautores. Reler o livro neste contexto de intensas discussões sobre a importância da ciência levou-me a arriscar uma pequena resenha, algo normalmente inapropriado. Convido o leitor a acessar o texto, cuja leitura é rápida. A seguir, apresento apenas um conjunto de comentários breves sobre o processo de sua elaboração, sua finalidade e as articulações de seu conteúdo às preocupações destacadas no início deste artigo deste artigo.
Após dezenas de reuniões para definir o projeto do livro, o consenso aparece no título: o que precisamos é de uma ciência para um desenvolvimento sustentável, e, nesse processo, a física é um dos atores, junto a tantos outros. Na apresentação, explicitamos que o modelo de ações sustentáveis adotado é a Agenda 2030 da ONU. É uma modesta contribuição alinhada à necessidade de superar a “agenda perversa que ignora ingredientes essenciais ao desenvolvimento sustentável: inclusão social, proteção ao meio ambiente, educação de qualidade, ciência tecnologia e inovação”.
Em seguida, há um sumário executivo de recomendações. O público-alvo não se restringe aos físicos e à comunidade científica e acadêmica, mas inclui os formuladores de políticas e o público geral, interessado no nosso desenvolvimento. É cedo para conhecer a impressão desses diferentes públicos, mas é preciso enfatizar: o documento não é um manual, mas um ponto de partida para discussões mais amplas e necessárias. Esperamos encontrar leitores que se apropriem da epígrafe deste artigo: um texto não pertence a quem os escreve, mas àqueles que precisam dele. Uma advertência: os recortes escolhidos e os dados apresentados talvez incomodem posições cristalizadas à direita e à esquerda. Além disso, o papel da física, em uma visão puramente disciplinar, parece mais evidente em alguns dos temas, mas, a partir de uma postura interdisciplinar, descortina-se em todos eles.
Os grandes temas no escopo do livro são, em primeiro lugar, as mudanças climáticas, seja em relação à preservação ambiental ou à urgente transição energética. A lista segue com as áreas portadoras de futuro: ciência de dados, complexidade e tecnologias quânticas. Reservamos um capítulo para a educação básica e outro para o ensino superior, em que discutimos a infraestrutura para o desenvolvimento da ciência. Por fim, há um capítulo sobre a comunicação da ciência com a sociedade.
Até aqui, nosso desenvolvimento científico tem aparecido mais nas entrelinhas. Nesse sentido, vale lembrar o comentário de Renato Janine Ribeiro sobre nosso país ser mais complexo hoje do que há algumas décadas. Passado o horror que vivemos, basta voltar ao que havia antes, ou mudanças mais profundas serão necessárias?
A comunidade científica está acostumada a se olhar a partir de números da produção científica, e, mesmo com os criminosos cortes de financiamento e as limitações impostas pela pandemia, parece que estamos bem, a ciência segue crescendo. No entanto, a pergunta que faço após a releitura do livro é: nossa base e produção científicas são suficientes para dar conta dos desafios de um país cada vez mais complexo?
Consultores que colaboraram para a elaboração do livro declararam que estamos longe de formar pesquisadores em número suficiente nas áreas de ciência dos dados e da complexidade. Se por um lado temos grupos de excelência em pesquisa sobre informação e computação quânticas, quando comparamos ao restante do mundo, cresce a distância entre essa pesquisa fundamental e as aplicações tecnológicas na área.
No Brasil, temos apenas um supercomputador entre os 500 mais potentes do mundo. Países com uma produção científica menor do que a nossa têm um número bem maior. Com apenas um supercomputador atualizado, daremos conta de estudar e monitorar as mudanças climáticas e avançar o suficiente nas áreas portadoras de futuro? Na área de ciência de materiais – outro exemplo –, temos grupos de excelência, mas será que em número suficiente? Nossa produção científica nessa área é significativa, mas estamos sendo amplamente superados, pelo menos em número de artigos, por outros países que há poucos anos apresentavam resultados bem menos expressivos do que os nossos, como Malásia e Irã. Qual o significado disso?
Essas perguntas se relacionam ao capítulo sobre a infraestrutura de nossa ciência, a necessidade de mais articulação e de uma política de Estado para a ciência, como apontado por Helena Nader, e de um projeto de inovação urgente e de longo prazo, como defendido pelo reitor, vice-reitora e pró-reitores da USP em seu artigo.
Todas essas questões precisam ser debatidas em prol de um desenvolvimento sustentável. Não podemos mais nos legitimar apenas falando em nome da ciência, precisamos fazê-lo em nome da democracia. Embora a proposta do livro não seja original, ela é cada vez mais urgente. É de um título parecido, “O papel da ciência no desenvolvimento sustentável”, de M. G. K. Menon, publicado há 30 anos, de quem empresto minha conclusão, uma citação de Albert Einstein: "Preocupação com o homem e seu destino deve sempre ser o interesse principal de todo esforço técnico. Nunca se esqueçam disso entre seus diagramas e equações".