Esses dias eu revi alguns artigos de minha coautoria em periódicos de física. Um deles, dos idos de 1990, tem seus gráficos e esquemas produtos da interação do pesquisador com o desenhista, que transpôs o esboço inicial a lápis em cuidadosos desenhos a nanquim, como exigido pelas normas editoriais de então. Da física derivava-se para uma discussão estética de fontes e proporções. Um outro artigo, 20 anos mais novo, os gráficos e desenhos foram realizados pelos coautores pesquisadores com os programas de visualização, que não param de proliferar e se sofisticar. Agora a discussão estética foi entre os coautores mesmo, já não há desenhistas nos departamentos de física. As visualizações de ciência ganharam também as capas dos periódicos, sendo quase sempre motivo de orgulho para um pesquisador se a sua imagem vira capa de revista. Na escolha da capa há, no entanto, sempre uma confusão sobre se a imagem é destacada pela qualidade da pesquisa ou devido ao valor estético atribuído. Qualquer que seja o caso, é o marketing que está por trás.
Nenhuma dessas imagens de capas de periódicos científicos teve tanto sucesso como a primeira “fotografia” do buraco negro de 2019. As aspas são pela discussão em torno na época: se uma imagem construída a partir do processamento de dados coletados durante meses seria uma fotografia de fato. Essa imagem ganhou o grande público, mas sua validação veio de seis artigos científicos explicando todo o processo. Artigos com mais de duas centenas de autores, sendo que um deles era Peter Galison, físico, historiador e cineasta de Harvard [i]. Um de seus cursos por lá chama-se “Visualização científica: de Galileu a buracos negros” e, com essa dica, voltemos aos primórdios da ciência moderna.
Galileu Galilei é um dos grandes nomes da ciência, ajudando a cria-la, como a conhecemos hoje, no século XVII. Foi astrônomo, engenheiro e físico, que na época se chamava filósofo natural, junto com os outros precursores do que depois viria a ser física, química e biologia, entre outras áreas do conhecimento. Sua lista de contribuições é imensa, entre elas a de ser o primeiro a apontar o recém inventado telescópio aos céus em 1609. Na verdade, o segundo, o primeiro mesmo foi Thomas Harriot alguns meses antes, que não viu nada demais, apenas uma “mancha estranha” na Lua. Galileu viu mais, tinha treinamento artístico e dominava a técnica do chiaroscuro. Foi assim que conseguiu interpretar as luzes e sombras das manchas no nosso satélite como montanhas e crateras, uma descoberta e tanto do astrônomo artista, que pintou as aquarelas lunares que ilustram também esse texto. Portanto, de certa forma, a arte estava junto da ciência, quando esta nasceu.
Na geração seguinte, outro polímata, ou seja, estudioso de várias coisas, o inglês Robert Hooke, hoje mais conhecido como físico, munido de um microscópio no lugar de um telescópio, mirou os detalhes invisíveis a olho nu. Em 1665 publica seu fabuloso Micrographia com as gravuras realizadas a partir de seus desenhos do que via através de seu instrumento. Ao observar as diminutas estruturas em uma lâmina de cortiça, deu-lhes o nome de células. Mas o interesse ia para detalhes de plantas e insetos. Robert Hooke foi aprendiz do pintor Peter Lely.
No século seguinte, pensando em outra ciência, temos o grande químico francês Antoine Lavoisier (1743-1794), conhecido de todos, enquanto sua esposa, Marie-Anne Pierrette Lavoisier (1758-1836) nem tanto. Além de talentosa nas artes, dominava o Latim e o Inglês, ao contrário de seu marido monoglota. Diligente, ela traduziu importantes obras científicas para o público francês em geral e para seu esposo em particular. Era parceira no laboratório e sem as suas ilustrações boa parte das pesquisas do grupo de Lavoisier seriam ininteligíveis a outros. A comunicação científica passava também aqui pelos desenhos dessa pesquisadora artista.
Como mencionei acima, hoje em dia, os recursos de tecnologias de imagem permitem que cliques no mouse façam as ilustrações de textos científicos. Antigamente, os cientistas precisavam desenhar, como, já entre os séculos XIX e XX, é o caso de Ernst Haeckel (1834-1919): zoólogo, médico, professor, filósofo, biólogo marinho e...artista plástico. Identificou e nomeou cerca de mil espécies e cunhou palavras como, por exemplo, ecologia. Do ponto de vista de hoje, sua biografia tem também máculas: promovia o darwinismo social e o racismo científico (como muitos na comunidade científica da época). Suas ilustrações de fauna e flora multicoloridas influenciaram a Arte Nouveau e viraram livro de arte, não mais de ciência, coligidas no "Formas de arte na natureza" [ii].
Como contemporâneo de Haeckel temos Santiago Ramón y Cajal (1852-1934), que dividiu o prêmio Nobel de 1906 com Camillo Golgi pelos trabalhos sobre o sistema nervoso central. O cientista espanhol foi quem vislumbrou as estruturas de redes de neurônios no nosso cérebro por primeira vez em magníficos detalhes. Cajal queria ser artista, seu pai sonhava que fosse médico. O jovem juntou as duas coisas, seus desenhos do emaranhado celular nervoso impressionam até hoje. Mais de um século depois de reconhecido como cientista, seus desenhos passam a ser expostos em galerias de arte e reconhecidos como tal [iii].
Esses exemplos não são anedóticos, são talvez os mais famosos redescobertos. Seguem no século XX com, por exemplo o forte entrelaçamento entre matemática e arte com Maurits Escher e o matemático Donald Coxeter [iv]. No entanto, hoje a sensação é de que ciência e arte foram se afastando, como lamenta a bióloga Jennifer Landin em um artigo de 2015 em um blog da Scientific American [v]. A introdução (linha fina) do artigo assevera: “Há um século, desenho era ensinado como ferramente essecnical para cientistas, valorizado para comunicar descobertas, mas também para aprimorar a observação. Uma professora de biologia lamenta essa perda e procura reincorporar desenho novamente em seus cursos introdutórios de biologia”.
Nessa mesma direção, Shaaron Ainsworth, Vaughan Prain e Russell Tyler, em um artigo na Science [vi], lembram que pesquisas emergentes sugerem que o desenho deve ser explicitamente reconhecido como elemento chave na educação científica. Por aqui essa conexão essencial entre arte e ciência é discutida por Tânia Araújo-Jorge e Anunciata Sawada [vii].
Conexões imprescindíveis são muitas vezes relegadas frente às tecnologias aceleradoras, mas que também podem empobrecer, quando não nos presenteiam com buracos negros. Ciência sempre precisou da arte.
[iii] https://greyartgallery.nyu.edu/exhibition/beautiful-brainthe-drawings-santiago-ramon-y-cajal/
[iv] Escher and Coxeter – A Mathematical Conversation – Brewminate
[v] Rediscovering the Forgotten Benefits of Drawing - Scientific American Blog Network
[vi] https://science.sciencemag.org/content/333/6046/1096
[vii] https://www.arca.fiocruz.br/bitstream/icict/24789/2/taniac_jorge_etal_IOC_2017.pdf