Os laboratórios de pesquisa demoraram quase todo o século XIX para deixarem a esfera privada e ocuparem as universidades [I]. Esse movimento acompanhava o processo de profissionalização do cientista, palavra criada apenas em 1834, bem como do ensino de ciências nas escolas, que só passou a ocupar as escolas de ensino pré-universitário na segunda metade daquele século [II]. Portanto, até então, tanto pesquisa como o ensino de ciências estavam nas mãos de sociedades de amadores, que amavam, mas não eram profissionais no assunto, pois a profissão nem existia, mas esta, uma vez criada, tomou conta de quase todo o palco.
Encurtando uma introdução que seria longa, podemos dizer que a revolução industrial despertou o interesse tanto de indivíduos, quanto de sociedades de diletantes e autodidatas. No entanto, as demandas crescentes das sociedades industrializadas, que junto com a profissionalização da ciência, abalaram essa ciência amadora. O papel dos amadores na educação cientifica no século XIX é descrita por Michael Stephens [III], que apresenta um inventário das sociedades na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos. Como exemplo são citados os Institutos de Mecânica, concebidos para a educação técnica de adultos, necessidade lançada pela industrialização. O primeiro desses institutos foi criado em 1821 na Escócia, chegando a mais de 700 em meados daquele século espalhados por todo Reino Unido e Estados Unidos. Muitos deles acabaram dando origem a universidades nesse processo de profissionalização da pesquisa e ensino de ciências.
A própria Royal Society, marco fundamental da institucionalização da ciência, fundada em 1660, tinha no seu início mais amadores do que cientistas, que poderiam ser considerados profissionais pelos critérios que viriam a ser estabelecer dois séculos depois. “Tensões sempre existiram na Royal Society entre membros que chamaríamos de cientistas ‘profissionais’, isto é, advogados da busca do conhecimento ‘puro’, e os amadores, diletantes e virtuoses, que estudavam a natureza a partir de um interesse pessoal ou prático. Os primeiros frequentemente dependiam do financiamento pelos últimos, pois o apoio governamental era escasso, e se ressentiam frequentemente dessa dependência, pois os interesses dos contribuidores controlam então o que seria pesquisado”. Este é um trecho do livro The Possibilities of Society de Regina Hewitt (SUNNY Press, 1997), que na verdade é sobre o romantismo inglês e não ciência. “Cientistas e Amadores” é justamente o título de outro livro, de Dorothy Stimson (1948), sobre a história da Royal Society. Segunda essa autora, “possivelmente a evolução mais importante na prática da ciência do século XIX seria a crescente diferenciação entre cientistas profissionais e amadores. Antes de 1800, praticamente todos engajados em pesquisa científica poderiam ser chamados de amadores, enquanto que cem anos depois a pesquisa científica estava completamente profissionalizada, excluindo a maior parte dos amadores da época, que tiveram seu status rebaixado e passaram a ser mantidos à distância da ciência ‘séria’” [IV].
Os amadores eram também importantes divulgadores da ciência [iii]. Amadores eram mais engajados na divulgação científica, no debate público e suas publicações eram mais acessíveis para o leitor em geral. Vanpaemel [IV] alude ao crescente distanciamento cultural entre profissionais e amadores naquele tempo, que, como já mencionado, desacreditou esses últimos, mas também tornou progressivamente mais difícil a comunicação de cientistas profissionais com audiências mais amplas. Um problema que só muito tempo mais tarde passou a receber a devida atenção.
Aos amadores, portanto, foi reservado o papel de hobista [iii]. Um belo passatempo, alimentado por uma literatura capitaneada pela coluna The Amateur Scientist, publicada de 1928 até 2001, a mais longeva da revista Scientific American. Eu lia essa coluna na adolescência, de vez em quando (a revista importada era cara), mas os projetos propostos não tinham nada de amador no sentido pejorativo que a palavra adquiriu. Várias colunas, aliás, ainda hoje são citadas em artigos científicos, pois vários dos projetos eram inovadores e proporcionavam alternativas de baixo custo para desenvolver pesquisas “sérias”.
No final do século XX até a expressão ciência amadora caiu em desgraça, hoje o correto é dizer ciência cidadã. Citizen science, que entrou para o dicionário Oxford em 2014, significa (segundo o dicionário) “trabalho científico realizado por membros do público geral, frequentemente em colaboração com – ou sob orientação de – cientistas profissionais e instituições científicas”. A expressão tem múltiplas origens e definições e se enquadra no movimento de ciência aberta e o engajamento público em ciência não se limitaria à acepção do dicionário, mas também na participação de não cientistas na tomada de decisões de políticas científicas e tecnológicas ou no engajamento de cientistas profissionais em processos democráticos [V].
O parágrafo acima poderia facilmente estender-se em toda uma coluna, mas aqui vou me limitar às possibilidades de participação popular em projetos de pesquisa através de plataformas públicas com a citizenscience.org e a citizensciencealliance.org. Nessa última pode-se ter acesso aos projetos Zooniverse e é fácil participar. Temos aí, por exemplo, o explorador de exoplanetas: basta se cadastrar para poder examinar dados em busca desses astros orbitando em torno de outras estrelas.
O portal sobre ciência aberta da Comunidade Europeia abriga a página sobre Ciência cidadã [VI], que discute e analisa o tema, disponibilizando estudos de caso sobre as iniciativas de ciência desse tipo, como no caso da plataforma Zooniverse [VII]. Lá pode-se ler que “mais de 300 milhões de conjuntos de dados foram analisados por mais de um milhão de voluntários”. Ou ainda que “muitas das descobertas mais interessantes dos projetos de Zooniverse vieram de discussões entre os voluntários e pesquisadores profissionais”. E por fim “muitos dos projetos da plataforma têm seu próprio localizador URL com recursos adicionais dedicados a professores e educadores”.
Existem projetos da ciência cidadã em português e voltados a problemas brasileiros [VIII], excelente oportunidade para a aproximação entre universidades e um público ainda pouco informado sobre pesquisa, mas talvez ávido para participar.
[I] https://www.unicamp.br/unicamp/ju/artigos/peter-schulz/como-pesquisa-foi-parar-na-universidade
[II] https://www.unicamp.br/unicamp/ju/artigos/peter-schulz/ciencia-no-natal-ou-com-chope
[III] Stephens, M. (1982) The Role of the Amateur in Nineteenth Century American and English Scientific Education, The Vocational Aspect of Education, Volume XXXIV, No. 87, pp. 1-5
[IV] Geert Vanpaemel em “Science communication strategies of amateurs and professional scientists in nineteen century Belgium”. The Global and the Local: The History of Science and the Cultural Integration of Europe. Proceedings of the 2nd ICESHS (Cracow, Poland, September 6–9, 2006) / Ed. by M. Kokowski.
[V] Bruce Lewenstein : https://ecommons.cornell.edu/handle/1813/37362
[VI] https://ec.europa.eu/research/openscience/index.cfm?pg=citizen§ion=monitor
[VII] https://ec.europa.eu/research/openscience/pdf/monitor/zooniverse_case_study_final.pdf
[VIII] http://sibbr.gov.br/cienciacidada/