Até há alguns anos, a minha rotina de trabalho diária começava pela consulta ao arxiv.org, primeiro repositório de artigos científicos de acesso livre criado em 1991[I]. Eram artigos submetidos, mas ainda não necessariamente aceitos pelas revistas tradicionais. O arXviv foi pensado exatamente como uma ferramenta de disseminação (e discussão) do conhecimento científico, aproveitando a nascente internet para uso público. Atualmente são mais de 1,7 milhão de artigos em Física e áreas afins, número que cresce a uma taxa superior a 10 mil artigos mensais. Nesses quase 30 anos, várias outras iniciativas como essa foram criadas em outras áreas do conhecimento e, hoje, plataformas assim são parte fundamental na comunicação científica. Carregar um trabalho nesse repositório passa por uma mediação: embora ainda sem revisão por pares, os artigos precisam preencher alguns requisitos de credibilidade científica. Nem tudo ali é de boa qualidade. Um dos meus artigos, por exemplo, tem resultados muito interessantes, analisados por métodos adequados, mas é um desastre epistemológico. Foi recusado (com razão) pela revista tradicional à qual foi submetido, mas está no arXiv, pois pode ser que alguém se interesse pelos resultados e os interprete corretamente, eu mesmo nunca voltei ao tema e esqueci a senha para retirá-lo. Durante todo esse tempo, os usuários desses repositórios sempre foram os membros da própria comunidade científica, acostumados aos modos de troca e compartilhamento de informações da ciência. Modos amadurecidos ao longo de 350 anos. Voltando agora à mediação necessária para que isso funcione, alguns passaram a achar que se tratava de uma “conspiração” contra pesquisadores independentes e suas grandes descobertas. Assim, em 2007, criou-se o vixra.org, que é, como protesto contra o establishment, arXiv ao contrário. De fato, é o oposto ao original, pois trata-se de pseudociência e não de ciência. Por enquanto o placar é amplamente em favor da ciência, mas, mesmo assim, em abril de 2020 foram depositados no viXra mais de 600 “artigos”. As aspas não são merecidas para tudo que ali se encontra, pois existem também artigos bem intencionados e adequados, cujos autores, talvez ingenuamente, entendam o portal como uma oportunidade e não uma armadilha para a ciência.
O aXiv (e o viXra também!) nesses últimos meses chama também a atenção à pandemia pela qual passamos, com sua ferramenta de localização de artigos do repositório voltados à Covid-19. Praticamente todos os repositórios adaptaram-se à necessidade da rápida e livre circulação de informação científica, mesmo os repositórios normalmente de acesso restrito e pago, e novos vão sendo criados[II]. E eis que, partindo do acesso livre à informação científica, chegamos também à abertura da caixa de Pandora, um artefato da mitologia grega, que conteria todos os males do mundo, e o título de um filme de Georg Pabst, no qual a protagonista, que no início se encontra em uma situação quase corriqueira, constrói uma trajetória rumo a um amargo e lancinante desfecho.
A abertura da caixa contemporânea se deu com o acesso aberto de um artigo do grupo de Didier Raoult, relatando o efeito benéfico do uso de hidroxicloroquina em pacientes de Covid-19. O artigo é questionável, foi submetido a uma revista científica em um dia e aceito no dia seguinte. Trata-se certamente de um recorde para o sempre demorado e cuidadoso (espera-se) processo de revisão técnica do trabalho[III] O pesquisador francês é controverso, com casos de má conduta científica anteriores à pandemia e o artigo, que lançou a fama da cloroquina e derivados, apresenta sérias falhas (entre elas um número muito pequeno de pacientes) e está sob investigação[IV]. A conturbada novela é resumida por Leonid Schneider e o último capítulo até o momento é a demissão de Didier Raoult do instituto onde trabalhava na França rumo a um emprego na China[V] Mas a caixa de Pandora já estava aberta, e o debate científico passou a se dar pelo Twitter, Youtube e declarações à imprensa. Apesar disso, o artigo em si já recebeu mais de 900 citações (Google acadêmico) e, como as maldades contidas na caixa de Pandora, segue vida própria. Inúmeras manifestações de sociedades científicas desde então advertem o que deveria ser o óbvio, como o recente manifesto de professores titulares da Faculdade de Medicina da USP, que não citam a cloroquina especificamente (pois o problema é mais abrangente)[VI]:
“Os tempos são difíceis. A maioria das pesquisas foi feita com número pequeno de casos. Por isso, algumas mostram bons resultados com um medicamento e outras mostram que o mesmo é ineficaz. Muitos pesquisadores preferem divulgar pela via mais rápida, que são as redes sociais, mas esse caminho não é o correto e não permite que os demais possam conhecer detalhes da pesquisa para avaliarem se foi bem conduzida. Algumas mostrarão, no futuro, que estavam certas. Muitas terão o destino do esquecimento por estarem incorretas. Há muita gente, no mundo todo, procurando soluções para salvar vidas.
E também há alguns procurando apenas fama. Ou outros que possuem interesse econômico ou mesmo político. A maneira de diferenciar é conhecer a pesquisa em profundidade e avaliar se foi feita de maneira correta. Só quem tem experiência em pesquisa pode fazer isso. O resto é pirotecnia”.
É basicamente o mesmo teor de muitas outras manifestações da comunidade científica, mas examinemos mais de perto o que tem saído da caixa de Pandora, que podemos chamar de Fake News 2.0. Não se trata mais de notícias falsas rastreáveis, cujos autores podem ser processados, são recortes de notícias verdadeiras deslocadas no tempo como se fossem atuais. Vejamos o exemplo da imagem ao lado do cartaz do filme de Pabst. Postado em 25 de maio de 2020, poucos dias depois da publicação de um artigo na revista The Lancet (sobre os problemas cardíacos que a hidroxicloroquina poderia provocar em pacientes de Covid-19) e que influenciou a Organização Mundial da Saúde a suspender os testes clínicos com esse derivado do quinino.
Voltaremos a isso a seguir, antes ao post em rede social (lembrando, existem outros, esse é apenas um exemplo). Além do anúncio intitulado urgente, há um link para matéria jornalística que daria sustentação à afirmação do estudo que fala da segurança do uso anunciado. Qual é o problema então (além do reforço da teoria de conspiração de governadores e prefeitos contra o presidente)? O problema está justamente na matéria jornalística, que é apenas indiretamente ligada pelo tweet que faz parte da postagem. Sabemos da pouca atenção dada ao aprofundamento das informações na dinâmica das redes sociais, cujos participantes são fortemente suscetíveis ao viés de confirmação daquilo em que já acreditam. No entanto, seguindo os links, chegamos ao texto[VII], cuja linha fina diz que “mais de 300 pesquisadores internacionais da comunidade do Observational Health Data Sciences and Informatics (OHDSI) estudaram dados de quase um milhão de pacientes. Eles declaram que a hidroxicloroquina é segura para uso por curto período, mas advertem contra o uso em combinação com Azitromicina”. Essa parte é omitida no panfleto. Além disso, o estudo desse grupo aponta que “é muito cedo para entender a efetividade da hidroxicloroquina no tratamento da Covid-19”. E a matéria é de 2 de abril, baseada em um artigo científico ainda em revisão pelos pares (consulta em 27 de maio)[VIII]. Portanto, esse artigo, ainda em revisão, não diz nada sobre se o tratamento funciona ou não e aponta para o risco do uso de hidroxicloroquina em associação com Azitromicina.
Por que fazer uso em 25 de maio de uma informação de 2 de abril, baseada em um estudo ainda sob revisão? Para se contrapor a um artigo publicado na The Lancet em 22 de maio[IX] e que diz que não há evidências de que o uso de cloroquina ou hidroxicloroquina, com ou sem associação à Azitromicina, sejam eficazes no tratamento da Covid-19, mas que apresentam aumento nos riscos cardíacos. Em resumo: o estudo publicado na The Lancet mostra essencialmente a mesma coisa que o estudo anterior, aclamado na rede social. Acrescenta, no entanto, evidências de perigo no uso isolado dos derivados de quinino. A indignação de certos grupos é com a Organização Mundial da Saúde, que, em função desse estudo mais recente (e de outros) “suspendeu temporariamente” os testes clínicos com hidroxicloroquina realizados pela Solidarity Trial[X]. Então vamos lá, suspender temporariamente é uma redundância, pois suspender já significa “interromper temporariamente”. E o comitê executivo decidiu implementar uma pausa temporária dos testes como uma precaução enquanto os dados sobre a segurança são revisados.” Apenas isso, revisão de resultados: bom senso e protocolos usuais em ciência e saúde pública.
É importante observar também a tendência a falácias Argumentum ad hominem nesse movimento todo. O trabalho publicado em 22 de maio não ficou imune. Em algum lugar nas redes aparece uma reportagem que anuncia conflitos de interesse de três de seus autores, pois estariam associados à promoção de outro medicamento, a ivermectina. Sim, três dos autores tornaram público um estudo dizendo que esse medicamento parece apresentar potencial favorável no combate à Covid-19, mas ressaltam que estudos clínicos controlados seriam ainda necessários. Este texto é questionado no trialsite, ainda sem resposta[XI]. No artigo da The Lancet, porém, os possíveis conflitos de interesse são declarados para escrutínio público. Mas falta um detalhe: não se encontram as datas de submissão e aceitação do artigo, que deveriam estar lá, como usual em outras revistas, o que, aliás, foi um dos elementos suspeitos encontrados no artigo que abriu a caixa de Pandora. Não se pode deixar pontas soltas para falácias usadas na desinformação e construção de teorias de conspiração, como descritas na análise publicada no portal da revista Nature[XII] ontem (27 de maio).
A cada nova polêmica, a atenção a outros estudos, que se somam às evidências de ineficácia/risco desses remédios[XIII], é desviada e a desinformação grassa e é compartilhada. Uma vez aberta a caixa de Pandora todo cuidado e rigor são poucos. Não deveria ser difícil, pois, afinal, cuidado e rigor caracterizam a ciência. Também deveria ser o nosso comportamento nas redes sociais: chequem as datas das matérias jornalísticas compartilhadas como novidades, redobrem a atenção a compartilhamentos sem comentários de quem compartilha, comentem e contextualizem sempre o que achem interessante.
Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.
[I]http://ezramagazine.cornell.edu/FALL12/CoverStorySidebar2.html
[III]https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0924857920300996
[IV]https://retractionwatch.com/2020/04/12/elsevier-investigating-hydroxychloroquine-covid-19-paper/
[VIII]https://www.medrxiv.org/content/10.1101/2020.04.08.20054551v1
[IX]https://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(20)31180-6/fulltext
[X]https://www.who.int/news-room/q-a-detail/q-a-hydroxychloroquine-and-covid-19