Foto: Antoninho Perri

Peter Schulz foi professor do Instituto de Física "Gleb Wataghin" (IFGW) da Unicamp durante 20 anos. Atualmente é professor da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp, em Limeira. Além de artigos em periódicos especializados em Física e Cienciometria, dedica-se à divulgação científica e ao estudo de aspectos da interdisciplinaridade. Publicou o livro “A encruzilhada da nanotecnologia – inovação, tecnologia e riscos” (Vieira & Lent, 2009) e foi curador da exposição “Tão longe, tão perto – as telecomunicações e a sociedade”, no Museu de Arte Brasileira – FAAP, São Paulo (2010).

Do antivacinismo aos sistemas bisonhos

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Uma das memórias que eu guardo da infância são as campanhas nacionais de vacinação. Minha mãe me levando para a fila em que levávamos um “tiro” no braço daquela pistola misteriosa, que é como a vacina era aplicada. Não falávamos de outra coisa na escola nos recreios dos dias seguintes. No campinho de futebol das saudosas peladas, outra lembrança da infância, olhávamos de soslaio o “time sem camisa”, para ver se todos tinham a marca no braço. Caso não, era motivo de impedimento, não da jogada, pois eram partidas sem juiz e bandeirinhas, mas para participar do próprio jogo. A vacina no caso era contra a Varíola, que não tínhamos ideia do que se tratava, mas diziam que era uma doença terrível. Não conhecíamos a razão daquilo, mas nos orgulhávamos da vacina recebida. Não me lembro se cheguei a aprender na escola o que era afinal a Varíola, que a pistola possibilitou a vacinação em massa na época, ou quem era Edward Jenner (1749-1823), o cara que inventou a vacina em 1796. Pouco depois dessas lembranças, do final da década de 1960 e começo da seguinte, a Varíola foi erradicada no nosso planeta. Quase dois séculos de desenvolvimento científico, a partir da invenção de uma vacina, erradicou uma doença, que, na época de Jenner, matava 400 mil pessoas por ano na Europa. As campanhas de vacinação aqui faziam parte de um esforço mundial para erradicar a doença que matou 300 milhões no século XX[I]

Vacinação contra a varíola em São Luis (MA), década de 1960.  Acervo: Departamento de Arquivo e Documentação – Casa de Oswaldo Cruz /Fiocruz
Vacinação contra a varíola em São Luis (MA), década de 1960.
Acervo: Departamento de Arquivo e Documentação – Casa de Oswaldo Cruz /Fiocruz

 

A origem da doença parece remontar à pré-história, espalhando-se por todo mundo a partir do noroeste africano. Não se sabe ao certo quando chegou à Europa. Mas da Europa chegou à América, graças aos invasores portugueses e espanhóis. A Varíola dizimou as populações nativas e parece ter sido crucial nas quedas dos Impérios Inca e Asteca.  Esses e alguns outros aspectos, que apresento a seguir, estão no interessante artigo de Stefan Riedel: “Edward Jenner e a história da Varíola e da vacinação.”[II] Por exemplo, era de conhecimento geral que sobreviventes da Varíola ficavam imunes à doença. Assim, em vários lugares do mundo, surgiu a ideia de inocular em pessoas saudáveis material de pústulas de doentes. Em termos atuais, seria provocar uma resposta imune com a introdução do vírus, de alguma forma atenuado, em uma pessoa saudável. A inoculação era também chamada de variolação. Chegou à Europa no início do século XVIII, com os relatos de viajantes europeus à Turquia, onde a prática já era comum. Popularizou-se rapidamente, tanto entre aristocratas, quanto plebeus.

A variolação também chegou ao novo mundo em 1721 com uma epidemia de Varíola em Boston e arredores, trazida por doentes em um navio que vinha das Índias Ocidentais. O reverendo Cotton Mather (1663-1728), graduado de Harvard, quando Harvard ainda não era uma universidade, interessado em ciência e medicina, recomendou imediatamente a variolação. O médico Zabdiel Boylston (1679-1766) começou a fazer o procedimento em voluntários.  A variolação funcionava e sabemos disso não só por relatos, mas também pela análise da dupla Mather e Boylston, precursores dos hoje famosos testes fase 3 da vacina contra a Covid-19. Durante essa epidemia de 1721 em Boston, metade dos 12 mil habitantes da cidade contraíram a doença. A taxa de fatalidade entre os que contraíram a doença naturalmente foi de 14%, enquanto entre os indivíduos “variolados” foi de apenas 2%.

Na sequência de várias campanhas, em 1757 milhares de crianças foram inoculadas com Varíola na Inglaterra, incluindo um garoto de 8 anos, que desenvolveu uma forma branda da doença, tornando-se depois imune. O nome desse garoto aparece no primeiro parágrafo dessa coluna, era Edward Jenner, que 40 anos depois inventaria a primeira vacina, justamente contra a Varíola.

Resumindo uma bela história, Jenner observou que entre ordenhadoras de vacas, a varíola era menos frequente ou menos letal. O passo seguinte foi associar essa percepção à possibilidade de que essas pessoas teriam contato com a Varíola bovina e, quem sabe, esse contato seria responsável por uma resposta imune à versão humana da doença. O naturalista inglês testou a hipótese, em 1796, colhendo material de uma ferida numa das mãos de Sara Nelms, que contraíra a varíola bovina, e inoculando-o em um garoto de oito anos, James Phipps, que passou mal, mas melhorou. Mais tarde, Jenner inoculou a Varíola humana no menino, que não desenvolveu a doença. Estava imune. O experimento, que hoje não passaria por um comitê de ética, foi relatado em um trabalho à Real Sociedade, principal sociedade científica da época. O artigo foi rejeitado. Jenner então juntou mais evidências para uma nova publicação em 1798. Sofreu resistência da comunidade médica, inicialmente ninguém queria ser vacinado, mas dois anos depois, a vacinação já era popular. E o nome vacina devemos exatamente à sua origem, ou seja, a vaca, que em inglês é cow, mas em latim é vacca, daí vaccine e o nome ficou para todas as outras, vindas ou não desse animal. Mas ainda havia um longo caminho a percorrer, demorou quase um século para se descobrir que a imunização tinha prazo de validade e outras doses seriam necessárias. Essa primeira vacina é do tipo “vírus atenuado”, depois foram desenvolvidas vacinas com a técnica de “vírus inativado” e hoje temos a primeira vacina criada com um método revolucionário, a plataforma de RNA mensageiro (mRNA)[III]. É a da Pfizer contra a Covid-19 e devemos observar que dois séculos de ciência permitiram que, na atual emergência mundial, vacinas possam ser desenvolvidas em tempo recorde.

A história contada assim é por demais ufanista, pois ela tem o lado B. O antivacinismo surgiu com essa primeira vacina contra a Varíola. Curiosamente, a variolação era popularmente aceita, enquanto a vacinação sofreu resistência. A primeira abordagem científica para o controle de uma doença infecciosa pelo uso deliberado de vacinas arregimentou grupos negacionistas, cujas ações certamente contribuíram para que essa terrível doença só fosse erradicada tanto tempo depois. As falácias eram várias. Uma era de que seria “nojenta” a introdução desse material bovino em seres humanos. Corria a lenda de que pessoas vacinadas desenvolveriam características bovinas. Algo similar ao “argumento” contemporâneo de que uma certa vacina contra a Covid-19 modificaria o nosso DNA. É exatamente o mesmo absurdo, adaptando-se o desconhecimento do conhecimento em cada época. Mas junto com o antivacinismo, surge também a sátira contra eles, como a caricatura de James Gillray de 1802, em que os vacinados passam a ter pequenos bois e vacas nascendo em partes do corpo.

 

“Os maravilhosos efeitos da nova inoculação”, caricatura de James Gillray, 1802
“Os maravilhosos efeitos da nova inoculação”, caricatura de James Gillray, 1802

Edward Jenner sofreu também falácias ad hominem, ou seja, acusava-se o homem, para desautorizá-lo e atacar a ideia, ou a vacina no caso. O inventor da primeira vacina era, como já mencionado, um naturalista e foi ele que observou que a fêmea do cuco procura ninhos com ovos parecidos aos seus, espera a distração da fêmea de outra espécie e substitui um dos ovos pelo seu, para que seja chocado pela hospedeira. Esse trabalho de 1788 valeu a Jenner o ingresso na prestigiosa Royal Society, mas muitos naturalistas diziam que isso era bobagem. Por mais de um século, antivacinistas usaram a suposta falha nesse estudo de ornitologia para lançar dúvidas sobre seu trabalho de imunologia. Detalhe importante: foi apenas em 1921 que observações fotográficas confirmaram as de Jenner, mas o antivacinismo não parou.

O antivacinismo tem, portanto, uma longa história, resumida na página “The history of Vaccines”[IV]. Entre os movimentos, as ligas antivacina na Inglaterra e nos Estados Unidos, seja no século XIX, seja no seguinte, em que aparece nova caricatura, que ilustra o que vivemos ainda no século XXI. A charge com as pessoas pulando da falésia da desinformação (misinformation) no pântano da Varíola (Smallpox) seria dos anos 1930[V]. Noventa anos depois, basta substituir Varíola por Covid-19 e atualiza-se completamente o desenho. Interessante a hierarquia dos negacionistas, liderados pelos antivacinistas, seguidos dos faddists<[VI], dos negligentes e, por fim, daqueles que são contra tudo. Essa hierarquia é parecida com os personagens negacionistas atuais, embora os niilistas apareçam em menor número.

Ilustração do folheto “Health in pictures”, década de 1930
Ilustração do folheto “Health in pictures”, década de 1930

 

Muitas pessoas se espantam com os negacionismos atuais, mas Yuval Harari, em seu livro “21 lições para o século 21”, adverte: “economistas comportamentais e psicólogos evolucionistas demonstraram que a maioria das decisões humanas é baseada em reações emocionais e atalhos heurísticos e não em análise racional, e que, enquanto nossas emoções e nossa heurística talvez fossem adequadas para lidar com a vida na Idade da Pedra, são lamentavelmente inadequadas na Idade do Silício”. Não conheço economistas comportamentais ou psicólogos evolucionistas, mas tendo a concordar com eles.

Se negacionistas ganham força, o que fazer contra? E aí compartilho um conceito, que aprendi com um amigo antropólogo (Álvaro D´Antona): o sistema perito do sociólogo Anthony Giddens, que resumo com citação do próprio proponente:

“Ao estar simplesmente em casa, estou envolvido num sistema perito, ou numa série de sistemas, nos quais deposito minha confiança. Não tenho nenhum medo específico de subir uma escada, mesmo considerando que sei que, em princípio, a estrutura pode desabar (...) quando saio de casa e entro num carro, penetro num cenário que está completamente permeado por conhecimento perito (...) ao escolher sair de carro, aceito um risco (...) quando embarco em um avião, ingresso em outros sistemas peritos, dos quais meu próprio conhecimento técnico é, no melhor dos casos, rudimentar”

Complementando:

“Os sistemas peritos dependem da confiança dos leigos. Essa confiança se constrói em dois níveis principais: a experiência cotidiana (os aviões sobem e descem, os sinais de trânsito funcionam, os médicos quase sempre acertam o diagnóstico, os edifícios, em geral, não desabam etc.) e a existência de forças reguladoras além e acima das associações profissionais com o intuito de proteger os consumidores de sistemas peritos -organismos que licenciam máquinas, mantêm vigilância sobre os padrões de fabricação de aeronaves, e assim por diante”.

 

Pois bem, continuamos a comprar passagens de avião, mesmo depois de saber que caiu um em algum lugar, mas os negacionistas se valem, além da desinformação, de testemunhos individuais de alguma reação adversa na sua guerrilha contra as vacinas.  E aqui é vital, portanto, o segundo nível de construção de confiança da citação acima. Quando criança, a campanha de vacinação que mencionei era um sistema perito. O Programa Nacional de Imunizações é um sistema perito, assim como a Fiocruz, as universidades públicas, Inpe, Ibama e tantas outras instituições brasileiras. A perversa novidade que vivemos são os governos em alguns países, em especial no nosso, que, em vez de promover, deliberadamente sabotam os sistemas peritos constituídos. E, como se não bastasse, engendram antônimos, os sistemas bisonhos do título acima.

 

Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.


[I]https://agencia.fiocruz.br/sites/agencia.fiocruz.br/files/revistaManguinhosMateriaPdf/RM8pag44a45FioDaHistoria.pdf

[II]https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC1200696/

[III] Para saber mais sobre as vacinas, leiam as colunas de Luiz Carlos Dias: https://www.unicamp.br/unicamp/ju/artigos/luiz-carlos-dias/vacina-da-pfizer-um-marco-na-luta-contra-pandemia

[IV]https://www.historyofvaccines.org/content/articles/history-anti-vaccination-movements

[V]Here's What A Depression-Era Cartoonist Had To Say About The Anti-Vaccination Movement | HuffPost

[VI]Faddists são seguidores de modas estranhas. As modas podem mudar, mas crédulos em diferentes formatos da Terra, práticas alternativas de qualquer coisa ou misticismos quânticos sempre existiram (Esses últimos somente depois do desenvolvimento da Mecânica Quântica.)

 

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