Foto: Antoninho Perri

Peter Schulz foi professor do Instituto de Física "Gleb Wataghin" (IFGW) da Unicamp durante 20 anos. Atualmente é professor da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp, em Limeira. Além de artigos em periódicos especializados em Física e Cienciometria, dedica-se à divulgação científica e ao estudo de aspectos da interdisciplinaridade. Publicou o livro “A encruzilhada da nanotecnologia – inovação, tecnologia e riscos” (Vieira & Lent, 2009) e foi curador da exposição “Tão longe, tão perto – as telecomunicações e a sociedade”, no Museu de Arte Brasileira – FAAP, São Paulo (2010).

Dois personagens da ciência: pesquisa, Holocausto e filosofia

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Os dois nomes estão interligados. O primeiro eu descobri por acaso, há pouco. Do outro sabia um pouco há tempos. Primeiro o acaso. Na introdução do livro O jogo da avaliação – como as métricas de publicação moldam a comunicação acadêmica[i], o autor dele, o polonês Emanuel Kulczycki, escolheu um conterrâneo para ilustrar a questão: Rudolf Weigl (1883-1957), biólogo e inventor de geopolítica complexa. Nascido em uma região que hoje faz parte da República Tcheca, Weigl desenvolveu sua carreira em Lviv, cidade então localizada na Polônia e hoje, na Ucrânia. No que se refere ao jogo da avaliação, Kulczycki comenta que Weigl, um cientista brilhante, era perfeccionista e habilidoso na construção de seus instrumentos científicos. Sua postura frente à publicação de artigos teria sido radical. Achava que a pesquisa consistia em fazer ciência e buscar descobertas. Escrever artigos e publicá-los seriam uma tortura e perda de tempo. Enquanto estudante, era forçado pelos seus orientadores a publicar para que mantivesse sua bolsa. Mais tarde, por sua vez, levava seus estudantes ao desespero, porque seu jeito de fazer ciência reduzia o número de publicações nos currículos dos aprendizes. Ele chamava o que hoje é conhecido por “ciência salame” – ou seja, a divisão de um trabalho só em vários artigos – de “cocô de pato”, comparando aquela prática com os dejetos deixados pela ave enquanto perambula por um terreno.

Rudolf Weigl
Rudolf Weigl desenvolveu sua carreira em Lviv, cidade então localizada na Polônia e hoje, na Ucrânia

Qual a grande descoberta desse extraordinário cientista? Nada menos que a primeira vacina efetiva contra o tifo, doença que assolou várias partes da Europa em diferentes épocas, em particular durante a Primeira Guerra Mundial, quando Weigl passou a pesquisar a doença nas frentes de batalha. O pesquisador concluiu o desenvolvimento de sua vacina nos anos 1920, com procedimentos estranhos aos dias de hoje. O tifo é causado por bactérias do gênero Rickettsia, descobertas pelo médico brasileiro Henrique da Rocha Lima, especificamente a Rickettsia prowazeki, nome dado pelo cientista brasileiro em homenagem a dois pesquisadores que morreram vítimas da moléstia. Rocha Lima, no entanto, não é o segundo personagem ao qual fiz alusão acima, mas merece uma pausa do leitor para lembrar sua história (no link disponível na nota de rodapé[ii]). Voltando à moléstia, conhecido o patógeno, descobriu-se também o transmissor, que são os piolhos. E com eles veio a busca pela vacina. Weigl desenvolveu um método inusitado, mas que funcionou perfeitamente. As bactérias em questão, como tantas outras, não se multiplicavam in vitro, apenas em células vivas. Como cultivar essas bactérias em número suficiente para as vacinas, se o lugar ideal era o intestino de piolhos? Simples(?): infectar piolhos e alimentá-los com sangue humano, para que se multiplicassem junto com as bactérias, mas usando um truque a fim de os insetos ingerirem seu alimento sem contaminarem as pessoas que davam seu sangue para eles. Weigl inventou as gaiolas de piolhos, afixadas às coxas de voluntários por uma hora ao dia. O importante era, por via das dúvidas, não coçar as picadas, pois aí as fezes depositadas na pele com os patógenos infectariam o doador de sangue ou o “alimentador de piolhos”, como ficaram conhecidos. O cientista testou isso primeiro nele e na sua esposa e depois compartilhou o procedimento com muitos e muitos voluntários. Na sequência, recolhiam-se as fezes dos intestinos dos piolhos e, a partir das bactérias presentes nelas, chegava-se à vacina.

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Weigl inventou as gaiolas de piolhos, afixadas às coxas de voluntários por uma hora ao dia; o importante era, por via das dúvidas, não coçar as picadas, pois aí as fezes depositadas na pele com os patógenos infectariam o doador de sangue ou o “alimentador de piolhos”, como ficaram conhecidos

Mas, deixando de lado a vacina em si, voltemos ao personagem. Weigl trabalhava na Universidade de Lviv, localizada do lado soviético da Polônia, segundo a divisão estabelecida por Stálin e Hitler em 1939. Em 1941, a área passou para o domínio dos nazistas. O pesquisador se recusou a ingressar no Partido Nazista, porém, mesmo assim, teve liberdade e autoridade para continuar trabalhando, pois os alemães sabiam da importância da vacina, amplamente testada com sucesso nos anos 1930, revelando-se um elemento de importância estratégica para as tropas alemãs. E Weigl não titubeou: se querem a vacina, preciso de “alimentadores de piolhos”, muitos deles. E, com isso, milhares de intelectuais, membros da resistência polonesa e judeus escaparam dos campos de concentração. O cientista conseguiu proteger também muitos colegas, mas não suficientemente um deles: Ludwik Fleck (1896-1961), médico e biólogo, o segundo personagem desta história. Fleck, sendo judeu, tinha poucas oportunidades de trabalho devido ao antissemitismo imperante na Polônia dos anos 1920. Weigl, no entanto, empregou-o por anos como assistente. Com a chegada dos nazistas, Fleck acabou deportado para o gueto da cidade, mas seguiu seu trabalho de pesquisa sob o jugo dos invasores. Mais tarde, junto com a esposa, viu-se em campos de concentração, onde foi mantido vivo para que continuasse a desenvolver e produzir vacinas, primeiro em Auschwitz e depois em Buchenwald, até a libertação deste local, em 11 de abril de 1945. Entre outras tarefas, produzia dois tipos de vacina: uma efetiva para os prisioneiros e uma outra, sabotada, ineficaz portanto, para os membros da SS.[iii]

Ludwik Fleck em seu laboratório;
Ludwik Fleck em seu laboratório; o cientista não é lembrado pelo seu papel na biologia, mas por suas outras ideias sobre ciência, desenvolvidas enquanto estudava bactérias nos anos 1930

Fleck não é lembrado pelo seu papel na biologia, mas por suas outras ideias sobre ciência, desenvolvidas enquanto estudava bactérias nos anos 1930. Em 1935 publicou o livro Gênese e desenvolvimento de um fato científico, pouco lido durante décadas, até ser mencionado por Thomas Kuhn no seu clássico A estrutura das revoluções científicas. O cientista natural virou então referência para a epistemologia e a sociologia da ciência. Como resumido no artigo de Aurélio Bianco Pena e Cibelle Celestino Silva[iv], Fleck entendia o “desenvolvimento da ciência como um projeto social dos atores políticos envolvidos nas comunidades científicas. Fleck estabelecera um modelo epistemológico de entendimento sobre o funcionamento da ciência no qual não se pode separar a ciência de seus aspectos sociais e de sua história”. Ironicamente, quando discutimos suas contribuições[v], sua própria história parece ficar em segundo plano e muitas vezes não é sequer lembrada. Algo irônico, porque seu próprio trabalho de pesquisa sobre tifo foi o seu laboratório humanístico.

Fleck, no final da vida, emigrou para Israel, falecendo antes de sua “redescoberta” por Thomas Kuhn em 1962. Weigl continuou trabalhando na Polônia até se aposentar, em 1951. Devido a sua vacina, foi indicado várias vezes ao Prêmio Nobel, mas nunca contemplado. Uma das indicações, aliás, ele pediu para ser retirada, pois não achava que a merecia naquele ano. Uma outra indicação, durante a Segunda Guerra Mundial, ele recusou taxativamente, pois seria apoiada pelos nazistas.

As histórias entrelaçadas de Rudolf Weigl e Ludwik Fleck deveriam fazer parte da ementa do ensino médio seja nas aulas de ciência ou de história. Eu me deparei com o primeiro em um texto relacionado ao jogo do reconhecimento científico. Com o segundo, por meio de incursões em sociologia da ciência, incursões essas em escritos sempre alheios à sua incrível história. Como muitas vezes acontece, a importância dele só veio à tona devido a um leitor atento.  Não deixo de lembrar a postura de Weigl: pesquisa é fazer ciência e buscar descobertas. Não podemos deixar que vire simplesmente um jogo de avaliação, ou seja, uma tortura com cocô de pato, como diria o cientista polonês. A leitura curiosa e atenta reverencia a história, que é sempre mais importante.

 

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.


    [i] https://www.cambridge.org/core/books/evaluation-game/4BF470C544D1E5BD2F293ECA6603860C

    [ii] https://www.invivo.fiocruz.br/historia/rocha-lima-o-pai-das-rickettsias/

    [iii] https://www.politico.com/magazine/story/2014/07/lice-doctor-lviv-nazi-germany-109255/

    [iv] Publicado na revista Problemata, edição especial referente ao Colóquio Thomas Kuhn, realizado em 2022. https://periodicos.ufpb.br/index.php/problemata/article/view/65615/38775

    [v] https://cienciahoje.org.br/fleck-redescoberto/

     

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