“Nunca se comentou tanto sobre ciência nesses últimos meses” é uma frase que talvez eu tenha ouvido de todas as pessoas que eu conheço, incluindo a mim mesmo, além de muitas outras na imprensa e nas redes sociais. E, ao que parece, a ciência, mobilizada e pressionada para encontrar respostas para combater a Covid-19 e seus efeitos, encontra-se em uma espécie de “reality show”. Por um lado, desconfortável e prejudicial, por outro, vem a público o processo de construção do conhecimento científico, embora numa forma acelerada e não devidamente explicada. Corre-se ainda o risco de perder a oportunidade para mostrar a um público geral esse modo especial de gerar conhecimento e não só apresentar os seus resultados.
No atual “reality show”, uma das controvérsias mais acaloradas deu-se – ou ainda está se dando – em torno do uso da cloroquina/hidroxicloroquina no combate à Covid-19. Do ponto vista científico é uma falsa controvérsia, que se transforma em uma de fato em função dos aspectos não científicos envolvidos desde o começo[I]. Uma discussão pode ser ao mesmo tempo acalorada e enfadonha e chegar à polarização extrema. Portanto, desacelerar os ânimos, relembrando uma outra controvérsia, que durou mais de dois séculos, talvez seja uma boa ocasião para refletir sobre a ciência e seus entornos em um caso já remoto. Trata-se de uma longa e relativamente pouco comentada coleção de capítulos da história da ciência: a geração espontânea.
Em resumo, geração espontânea é uma ideia de que algumas formas de vida são geradas espontaneamente de matéria inanimada. Essa doutrina foi sintetizada inicialmente por Aristóteles e perdurou por dois milênios. Nos primórdios do que chamamos de ciência moderna, no século XVII, passou a ser questionada por muitos - e defendida por outros tantos -, mas agora com base na observação e experimentação e não apenas em embates teológicos ou filosóficos. Foram, no final das contas, dois séculos em que a ciência foi se desenvolvendo em direção a como a conhecemos hoje. No entanto, quando ela já estava, digamos, madura, na segunda metade do século XIX, coisas que seriam só da ciência viraram assuntos de política e judicialização.
Para começar, o senso comum tinha lá suas “evidências” empíricas, afinal um pedaço de carne deixado ao leu, quando apodrecesse, “geraria” larvas. Essa hipótese – matéria em putrefação gerando uma forma de vida – foi testada sistemática e experimentalmente primeiro por Francesco Redi (1626-1697), que apresentou seus resultados no “Experimentos sobre a geração de insetos”, publicado em 1668. É um marco da história da ciência. Ele tomou seis jarros divididos em dois grupos de três. No primeiro jarro de cada grupo colocou um objeto qualquer, no segundo, um pedaço de peixe e, no terceiro, um pedaço de vitela. Os jarros do primeiro grupo ficaram descobertos e os do segundo foram cobertos com gaze. Após alguns dias, larvas apareceram sobre os conteúdos dos jarros descobertos, onde moscas poderiam pousar, mas não sobre aqueles cobertos por gaze. Em um segundo experimento, três jarros com carne: um descoberto, o outro coberto com gaze e o outro selado. Após alguns dias, larvas apenas sobre o pedaço de carne descoberto e sobre a gaze do segundo pote, mas essas não sobreviveram (pois não tinham acesso a nutrientes). Aqui também a evidência das moscas e seus ovos, de onde nascem as larvas, e não de geração espontânea. De fato, a metodologia de Redi era exemplar, introduziu, por exemplo, grupos de controle nos experimentos e os procedimentos inatacáveis.
A conclusão contra a geração espontânea, a partir dos resultados de Redi, é resumida na carta de John Ray ao editor da Philophophcal Transactions em 1671, no trecho que ilustra a coluna: “parece-me no momento mais provável que não exista tal coisa [geração espontânea], mas que mesmo todos os insetos são resultados naturais de progenitores das mesmas espécies que as suas próprias”. Mas existiriam questões pendentes, que Ray afirma a seguir na carta ter ajudado a solucionar. Era, de qualquer modo, uma época efervescente, a microscopia que nascera naquele mesmo século XVII, alcançara um auge nas décadas finais dos 1600s. Os principais microscopistas desse tempo, continuam lembrados pela História da Ciência: Marcello Malpighi (1628-1694) na Itália, Robert Hooke (1635-1703) na Inglaterra, Jan Swammerdam (1637-1680) e Anton van Leeuwenhoek (1632-1723) na Holanda. É o papel desse último que se destaca nessa contenda em particular. Leeuwenhoek era um cientista amador, mas construiu mais de 500 microscópios durante sua vida, os melhores da época, e observou por primeira vez o que depois veio ser chamado de bactérias e ele chamava de “animálculos”. Suas observações foram descritas em cerca de 200 cartas enviadas ao editor da Philophophcal Transactions, sendo que mais de 100 foram publicadas (depois de traduzidas do holandês pelo editor em pessoa, pois o mestre armarinho de Delft não sabia inglês, nem latim). Leeuwenhoek era um ferrenho opositor da geração espontânea, convicção dada pelas suas observações dos minúsculos seres, invisíveis a olho nu, mas que possuíam uma “perfeição” como a de animais e plantas superiores[II]. E por isso, talvez, ele foi duramente criticado em um longo trabalho assinado por Turbervill Needham (1713-1781), publicado em 1748, 25 anos após a morte do holandês considerado o pai da microbiologia[III].
Needham, cujo nome completo contempla um John antes de Turbervill, conduziu experimentos à maneira de Francesco Redi, mas em vez das larvas entram os microrganismos identificados por Leeuwenhoek, que, importante complementar, percebeu também que os animálculos morrem com o calor. Needham ferveu então caldo de carne em frascos, que depois de selados revelaram culturas de microrganismos. Conclusão: existiria uma “força vital” que geraria nova vida espontaneamente no caldo de carne esterilizado previamente. Mas os experimentos não convenceram a Lazzaro Spallanzani (1729-1799), que criticou Needham em seu Saggio di osservazioni Microscopiche sul Sistema della Generazione de' Signori di Needham e Buffon de 1665. Spallanzani ferveu o caldo por mais tempo e assim esterilizou-o adequadamente, matando todos os micróbios lá dentro. Needham retrucou que tanta ferveção acabaria com a “força vital”, impossibilitando a geração espontânea. E assim, a controvérsia seguia, um século após os experimentos de Francesco Redi.
Muita água rolou entre as poucas pedras que descrevi acima e outras ainda rolariam rio abaixo, mas podemos pular, para os fins dessa história, quase um século inteiro, chegando a 1859. Nesse ano, em outubro, o médico e naturalista Félix Archimède Pouchet (1800-1872) publica o livro Heterogênese, no qual defende a geração espontânea novamente. Admitia que todos os seres vivos vêm de ovos, mas que alguns ovos apareceriam por geração espontânea. Seus experimentos eram uma variação de anteriores, mas os resultados estavam em contradição em relação a incríveis avanços científicos da primeira metade do século XIX. Em janeiro de 1860 a Academia de Ciências da França anunciou um prêmio para experimentos “que jogassem nova luz sobre a questão da geração espontânea”. A comissão nomeada demandava experimentos precisos e rigorosos que levassem em conta todas as circunstâncias relevantes. Entre fevereiro de 1860 e janeiro de 1861, Louis Pasteur (1822-1895), então com 37 anos (contra os 60 de seu adversário), apresentou cinco trabalhos curtos com seus resultados sobre o tema descrevendo seus próprios experimentos, que contradiziam os de Pouchet. Ou seja, até aí seria apenas mais um capítulo de um debate científico. Os experimentos de Pouchet eram questionáveis, mas os de Pasteur, também uma variação dos de Spallanzani, embora com uma inovação engenhosa[IV], não seriam totalmente livres de objeções (do ponto de vista dos “espontaneístas”).
A coisa toda não foi um debate pacífico. Pouchet questionou os membros da comissão, que já estariam predispostos contra a geração espontânea. Outra comissão acabou sendo criada para resolver os impasses, enquanto Pasteur e Pouchet anunciavam novos resultados, com acusações mútuas de que o oponente não estaria levando em conta as claras evidências dos experimentos. Em 1865 a segunda comissão anunciou que Pasteur estaria correto. A controvérsia, no entanto, não parou, cruzou o Canal da Mancha na década seguinte, com o biólogo Thomas Henry Huxley (1825-1895) junto ao físico John Tyndall (1820-1893) de um lado e o médico Henry Charlton Bastian (1837-1915) de outro, a primeira dupla contra e o último a favor da geração espontânea. John Tyndall, nessa contenda, aprimorou os experimentos de Pasteur, confirmando seus resultados. Thomas Huxley dedica seu primeiro discurso de presidente eleito da Associação Britânica para o Progresso da Ciência ao tema, introduzindo primeiro o seu dever de proclamar “quais importantes fortalezas do grande inimigo de todos nós, a ignorância, foram capturadas recentemente...”. E segue, trazendo talvez o primeiro compêndio dessa história[V] que aqui abreviei.
John Tyndall, o frontispício do livro de Charlton Bastian [VII] defendendo a geração espontânea e Thomas Huxley
Divergências desse tipo em ciência se resolvem com novas pesquisas, aliás foi assim durante os dois séculos anteriores no que se refere à geração espontânea. Mas por que foi instituído um prêmio? E, em todo caso, por que para essa questão específica e não outra coisa? Por que para uma questão científica, nas palavras de um dos vários pesquisadores que se debruçaram sobre o tema, “a Academia estabeleceu uma estrutura formal para arbitrar a controvérsia e, de fato, moldou-a em termos muito similares aos de processos judiciais”.[VII] A polêmica acabou envolvendo especialistas de áreas não relacionadas, bem como especialistas em nada. O cenário político na França era conservador e religioso (era o segundo império de Napoleão III) e Pasteur era ambos. De alguma forma, muitos dos conservadores na França, assustados com a Teoria da Evolução, associavam-na à geração espontânea (coincidentemente, a Origem das Espécies de Darwin também foi publicado em 1859). Geração espontânea também seria materialista e ateia. Para os defensores de Pasteur na Inglaterra seria o contrário. Outros autores que se debruçaram sobre o tema se perguntam também o quanto a interferência política teria influenciado as próprias opções metodológicas e epistemológicas dos adversários científicos.
A ideia da geração espontânea foi refutada (inúmeras vezes) cientificamente e, por fim, derrotada politicamente, tanto pela “direita” em um país, quanto pela “esquerda” em outro pais. Há ainda muito mais sobre o que é ciência e como ela é praticada nessa história, que é, infelizmente, recortada nos manuais e crônicas. Para uma versão bem contada eu recomendo um artigo de Lilian Martins[VIII]. A minha versão também é incompleta e o objetivo de compartilhá-la é porque parte dela veio à mente nesses tempos, em que se interfere tanto na ciência, em seu tempo próprio, seu método e até nas respostas que ela deveria dar. Coincidentemente, deparo-me com um artigo da Associação Americana para o Progresso da Ciência: “É um pesadelo. Como cientistas brasileiros ficaram enredados na política da cloroquina.”[IX]
Não sei se chega a ser um consolo não ter encontrado “filósofos” com seus asseclas que defendam esse mito hoje em dia.
Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.
[I] Em alguns anos provavelmente aprecerão dissertações e teses sobre o assunto.
[II] The Edition of Leeuwenhoek's Letters: Changing Demands, Changing Policies. Lodewijk C. Palm; Text, Vol. 17 (2005), pp. 265-276. Acessado em: https://www.jstor.org/stable/30227826
[III] A Summary of Some Late Observations upon the Generation, Composition, and Decomposition of Animal and Vegetable Substances; Communicated in a Letter to Martin Folkes Esq; President of the Royal Society, by Mr. Turbervill Needham, Fellow of the Same Society. Philosophical Transactions (1683-1775) , 1748, Vol. 45 (1748), pp. 615-666
Acessado em: http://www.jstor.com/stable/104587
[IV] O recipiente de controle positivo ficava diretamente em contato com o ar, enquanto outos eram selados (controle negativo) e, finalmente outro estava ligado a um tubo pescoço de ganso” de modo a continuar em contato com o ar, mas o formato do tubo impedia o deposito de microrganismos presentes no ar de se depositarem sobre o caldo de cultura no recipiente.
[V] INAUGURAL ADDRESS OF THE PRESIDENT, THOMAS H. HUXLEY, LL.D., F.R.S., ETC. BEFORE THE BRITISH ASSOCIATION FOR THE ADVANCEMENT OF SCIENCE. Scientific American , Vol. 23, No. 15 (OCTOBER 8, 1870), pp. 224-225. A primeira parte está disponível em: https://www.jstor.org/stable/26033535
[VI] Esse livro está mdisponível em: https://archive.org/details/modesoforiginofl00bast/page/n7/mode/2up
[VII] The political anatomy of controversy in the sciences. Everett Mendelsohn, in Scientific Controversies
Case Studies in the Resolution and Closure of Disputes in Science and Technology, editado por: H. Tristram Engelhardt, Jr. , Arthur L. Caplan. Cambridge University Press, 1987.
[VIII] Pasteur e a geração espontânea: uma história equivocada, Filosofia e História da Biologia, vol. 4, p. 65-100, 2009. Acessado em: http://www.abfhib.org/FHB/FHB-04/FHB-v04-03-Lilian-Martins.pdf