O tema para esta coluna seria outro, mas o acaso tem a competência de trocar repentinamente as posições das peças, fazendo associações entre informações novas e aquelas perdidas nas pastas nos diversos “pen drives”. Como preâmbulo, lembro o uso de palavras como coitado, judiação ou denegrir e suas origens preconceituosas e discriminatórias. Elas perderam com o tempo os significados originais. Muitos que as empregam talvez não lembrem esses significados, mas sempre é bom estar atento e, portanto, suprimir do vocabulário. Existe a possibilidade não remota de voltar a querer dizer exatamente o que queriam dizer lá na sua origem, de forma literal ou adaptada. E isso pode ocorrer sem nos darmos conta, como talvez seja o caso de certas listas e ordenamentos.
O acaso foi o encontro imprevisto com o amigo Flávio Ferreira, que me mostrou alguns títulos de artigos antigos. Um despertou mais a atenção e é a origem das associações entre o novo e o mais antigo mencionadas no parágrafo acima. Artigo: “Óvulo de mulher que estudou em universidades bem ranqueadas nos EUA vale mais”. Não li o artigo, basta o título para especular sobre a possibilidade de rankings terem finalmente encontrado um propósito. E esse propósito no caso é uma ação de eugenia, termo criado por Francis Galton (1822-1911) em 1883 com a seguinte definição: "o estudo dos agentes sob o controle social que podem melhorar ou empobrecer as qualidades raciais das futuras gerações seja física ou mentalmente". Galton, primo de Charles Darwin, era um polímata inglês, dedicando atenção a várias áreas do conhecimento, da matemática e estatística à psicologia. Um outro eugenicista famoso à época estudou com Galton, foi o primeiro professor de psicologia nos Estados Unidos da América e o editor por várias décadas da revista Science: James McKeen Cattell (1860-1944). Além das crenças eugênicas de ambos, influenciadas pela apropriação indébita da teoria da evolução de Darwin, Sir Galton e Prof. Cattell têm mais uma coisa em comum: foram os avôs dos rankings de cientistas e universidades. O eugenicista inglês é o precursor com o seu levantamento English Men of Science, enquanto seu discípulo lançou posteriormente sucessivas edições do American Men of Science no começo do século passado. Quem esmiúça essa história é Benoît Godin no artigo “Da eugenia à cientometria: Galton, Cattell e Homens de Ciência”[I]. O resumo do artigo elucida o que é detalhado ao longo de várias páginas:
“Em 1906, J. M. Cattell, editor da Science, publicou um diretório de homens da ciência. American Men of Science era uma coleção de esboços biográficos de milhares de homens da ciência nos EUA e foi publicado periodicamente. Ele iniciou, e era usado como, o primeiro estudo quantitativo sistemático da ciência. Cattell usou dois conceitos para suas estatísticas: produtividade, definida como o número de homens da ciência que uma nação produz, e performance ou mérito, definido como contribuições à pesquisa de acordo com o julgamento dos pares. Essas são as duas dimensões que ainda definem as medidas de produtividade científica atualmente: quantidade e qualidade.”
Universidades passaram a ser classificadas pelo número de homens da ciência em seus quadros (principalmente dos “top 1000” da lista), sendo Cattell então considerado como o pai dos rankings. Hoje a quantidade não é de homens (e mulheres) da ciência, mas de artigos publicados; enquanto que a qualidade não é tanto pela opinião direta dos pares, mas pelo número de citações. Porém, concordando com Godin, são essas as dimensões, quantidade e qualidade, que seguem definindo como se avalia e classifica o mundo acadêmico.
A cientometria no título do artigo mencionado é uma área do conhecimento institucionalizada na segunda metade do século passado. Dedica-se ao estudo quantitativo da ciência, a partir de seus indicadores de produção e relações entre autores dos artigos e citações. Não há espaço para algo que lembre eugenia, aliás avisos contra o mau uso de indicadores é constante dentro da comunidade científica ligada ao tema[II]. No entanto, o canto da sereia seduz o universo leigo, dentro e fora das universidades.
Já a eugenia, que aspirava a ser ciência no início do século XX, cairia em desgraça somente com as revelações das atrocidades nazistas, mas o movimento eugênico, que nascera na verdade nos Estados Unidos[III] e na Inglaterra, seguiu mais discretamente no pós-guerra em diferentes países, sempre nesse limbo entre pseudociência e pretensão de ciência[IV].
Assim, a matéria sobre óvulos de estudantes de universidades bem ranqueadas, relaciona curiosamente uma ação de “neo-eugenia” com um sistema de classificação de universidades, que nasceu da velha eugenia. E os rankings em si? Como são construídos?
“Primeiro, as universidades são desligadas de seu contexto original (história, lugar, missão...) e sua complexidade transformada em números, que são transferíveis e mais facilmente comunicáveis para um público mais amplo e permitem novas contextualizações, além do fato de que quantificações são estratégias eficazes na transformação de arranjos sociais em entes críveis e objetivos. Em um segundo passo, esses elementos descontextualizados (os números, os famosos indicadores) são comparados e articulados entre si. Em uma terceira etapa, uma lista precisa ser produzida, através de uma integração dos indicadores, e apresentada na forma de um ranking uniforme (mas de entidades dessemelhantes)”.[V]
Quando esse procedimento se naturaliza e as universidades passam a ter como meta subir nos rankings, busca-se, talvez inadvertidamente, esquecer a diversidade, a história e contexto em prol de um protótipo único tido como melhor. No fundo, eugenia aplicada a instituições em vez de indivíduos. Lembro-me e adapto o conhecido aforismo: “Eu não acredito em sereias, mas que elas existem, existem.” Críticas e alternativas estão sendo discutidas em lugares onde, coincidentemente, valoriza-se mais a educação, como na Finlândia[VI].
[I] From Eugenics to Scientometrics: Galton, Cattell, and Men of Science; Benoît Godin, Social Studies of Science October 2007 vol. 37 no. 5 691-728
[V] https://www.unicamp.br/unicamp/ju/artigos/peter-schulz/cada-universidade-uma-sentenca
[VI] John Welsh (2019) Ranking academics: toward a critical politics of academic rankings, Critical Policy Studies, 13:2, 153-173