Foto: Antoninho Perri

Peter Schulz foi professor do Instituto de Física "Gleb Wataghin" (IFGW) da Unicamp durante 20 anos. Atualmente é professor da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp, em Limeira. Além de artigos em periódicos especializados em Física e Cienciometria, dedica-se à divulgação científica e ao estudo de aspectos da interdisciplinaridade. Publicou o livro “A encruzilhada da nanotecnologia – inovação, tecnologia e riscos” (Vieira & Lent, 2009) e foi curador da exposição “Tão longe, tão perto – as telecomunicações e a sociedade”, no Museu de Arte Brasileira – FAAP, São Paulo (2010).

Febre amarela: a incrível história do primeiro vírus humano identificado.

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Ilustração: Luppa SilvaO novo Coronavírus captura, com toda razão, a atenção e apreensão mundiais, devido à avassaladora pandemia que está provocando. Ele, no entanto, é apenas um entre os mais de 200 vírus que infectam ou infectaram seres humanos, com maior ou menor letalidade[I]. É possível que a história do SARS-COV-2 venha no futuro a ser considerada como única, bem diferente da de outro vírus do gênero Flavivírus, causador da febre amarela e o primeiro vírus descoberto, há mais de um século. No entanto, tal como vem sendo especulado de que o mundo não será o mesmo depois da atual pandemia, os mundos de muitos países de fato se modificaram com as epidemias de Febre Amarela durante o século XIX e começo do século passado. Em particular no Brasil. Essa história é contada e recontada em diferentes espaços, desde divulgação científica, até romances, como Sonhos Tropicais de Moacyr Scliar ou Romance bandalho de Eustáquio Gomes. Na divulgação científica podemos ficar com o Dossiê especial da Revista Comciência[II], que, não por coincidência, foi publicado no ano do pior surto da doença por aqui em mais de 50 anos: 2017. Para o leitor mais apressado, o artigo Mosquitos e suas doenças[III], do mesmo Moacyr Scliar de um dos romances acima, fornece um conciso e preciso panorama da febre amarela. E vislumbramos que epidemias não são só uma questão de, como no caso da febre amarela, identificar o transmissor (um mosquito), sua causa (um vírus) e a profilaxia a partir desses conhecimentos. A história é muito mais complexa, mas podemos contá-la a partir do mosquito, ou melhor, lendo as comunicações científicas de dois personagens da história que do mosquito desconfiavam: Carlos Finlay (1833-1915) e Walter Reed (1851-1902).

Carlos Juan Finlay era cubano, filho de pai escocês e mãe francesa e formou-se em medicina na Inglaterra, onde teve contato com defensores da Teoria Microbiana das Doenças[IV], segundo a qual muitas doenças seriam causadas por microrganismos, os patógenos, transmitidos de diferentes formas. Voltou a Cuba, então colônia da Espanha, onde surtos de Febre Amarela eram recorrentes. Finlay debruçou-se sobre o assunto, até que apresentou, na Conferência Sanitária Internacional de 1881, sua hipótese de que a doença seria transmitida por um mosquito do gênero Aedes. Sua palestra foi publicada no The New Orleans Medical and Surgical Journal (1881/82, vol. ix, p. 601-16, fevereiro de 1882). Esse artigo foi reproduzido nos anos 1930 no Yale Journal of Biology and Medicine e lá o acesso ao “O mosquito considerado hipoteticamente com um agente na transmissão do veneno da Febre Amarela” é aberto a qualquer leitor[V]. A leitura é instigante, como quando lemos uma carta bem escrita, ou até um diário, texto pouco parecido com o que hoje chamamos de artigo científico.

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Carlos Finlay e trechos de seu artigo de 1881

Finlay inicia sua palestra mencionando o estado da arte da pesquisa sobre febre amarela na época e declara sua posição: “Eu tive razões para me convencer da natureza insustentável de qualquer teoria que possa atribuir a origem ou propagação da febre amarela a influências atmosféricas, miasmáticas ou meteorológicas”[VI]. O médico cubano também adverte que

“o assunto desse trabalho não tem nenhuma relação com a natureza ou forma na qual o fator morbígeno da febre amarela existe. Em relação a isso eu limito minhas opiniões à seguinte afirmação: eu admito a existência de uma causa material transportável, que pode ser tanto um vírus amorfo, um germe animal ou vegetal, bactéria, etc,etc., mas que consiste em todos os casos de algo tangível, que deve ser comunicado do doente ao saudável para que a doença se propague.”

E é exatamente sobre o transporte que trata a investigação: “finalmente, em função de várias razões que seriam inúteis de serem relatadas, perguntei-me se não seria o mosquito que transmitiria a veneno da febre amarela”. E aí começa o relato de fato.

Na sequência, Finlay discorre detidamente sobre a distribuição geográfica do mosquito, sua sazonalidade, recorre a relatos históricos e descreve o comportamento do inseto, sua picada e a decorrente sugação de sangue. Munido da hipótese da transmissão apresentada no início da palestra, seria exatamente esse o processo de transmissão. E, para testar a hipótese, realizou experimentos, que dificilmente seriam possíveis hoje por questões éticas. No dia 28 de junho do ano anterior à palestra (1880, portanto) ele coletou um inseto, que deixou que picasse um enfermo, Don Camilo Anca, durante o quinto dia de sintomas. Relata que o sr. Anca faleceria da doença logo depois. Selecionou F.B. entre os voluntários e fez com que o mesmo mosquito o picasse também e observou atentamente a cobaia humana, que desenvolveu a doença, mas não veio a falecer. Repetiu o experimento nas semanas seguintes com outros voluntários, inclusive consigo mesmo, descrevendo o desenvolvimento dos sintomas (embora não relate sobre seu próprio caso). Observa ainda que os não picados (em um ambiente controlado) não apresentaram sinais da febre amarela. Suas conclusões são cuidadosas, apontando que uma picada única não seria suficiente para desenvolver uma forma mais grave da doença, admite que sua hipótese ainda precisaria ser comprovada de forma incontestável (com mais testes), mas que seus achados proporcionariam caminhos para evitar ou limitar a doença (ou seja, combater o mosquito).

Humilde, Finlay finaliza reafirmando que seu único propósito em apresentar sua comunicação é tornar conhecidas suas observações e que a confirmação de suas suspeitas estaria a cargo de evidências decisivas de experimentação direta.

Nota-se no seu artigo o uso da expressão “vírus amorfo”, cujo significado em uma época que vírus ainda não eram conhecidos é um tanto obscuro. Um outro ponto mais relevante na cadeia dos acontecimentos é: quando viriam as evidências decisivas? Durante vinte anos o cenário não mudou, autoridades cubanas aparentemente não desenvolveram ações considerando a hipótese de Finlay e, afinal de contas, a febre amarela era uma doença neglicenciada[VII], pois ocorria majoritariamente em países subdesenvolvidos.  A mudança de atitude, para levar em conta a ciência nesse caso, veio de outra esfera, a política. Os Estados Unidos interviram em Cuba em 1898, durante a Guerra Hispano-Americana e a ilha passou a ser tutelada pelos americanos. E agora Havana precisava ser higienizada! A tarefa inicial coube ao médico Walter Reed, que com a colaboração de James Carroll e Aristides Agramonte (esse último cubano) replicaram de forma muito mais controlada os experimentos de Finlay.  O trabalho resultante, “A etiologia da febre amarela – uma nota adicional”, de estilo bem mais técnico do que o de Finlay, é ilustrado com os gráficos de controle de temperatura das cobaias humanas infectadas, determinando o tempo de incubação e descartando outras formas de contágio. Reed cita Finlay nesse seu trabalho publicado no Journal of the American Medical Association, JAMA, em 1901[VIII] e apresenta conclusões mais enfáticas: “O mosquito Culex  fasciatus (antigo nome do Aedes aegypti) serve de hospedeiro intermediário do parasita da febre amarela”; “A febre amarela é transmitida pela picada do mosquito previamente alimentado de sangue de uma pessoa doente”. Seguem-se outras sete conclusões, até as duas finais: “a propagação da febre amarela pode ser controlada de forma mais efetiva por meio de medidas direcionadas à destruição do mosquito e a proteção dos doentes de mordidas do mosquito” e, finalmente: “Embora o modo de propagação da febre amarela tenha sido agora determinada definitivamente, a causa específica da doença continua por ser descoberta”.

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Um dos gráficos de “a Etiologia da febre amarela – nota adicional” de Reed e coautores

As medidas sanitárias propostas foram aplicadas em Cuba e depois na continuação da construção do Canal do Panamá, espaços de interesse outros e, portanto, suas doenças deixaram de ser negligenciadas. Mas os trabalhos de Finlay e Reed também foram importantes algures, como por aqui: influenciaram, entre outros, Emilio Ribas e Oswaldo Cruz, mas a história da febre amarela no Brasil é contada em outra revista[IX].

O comentário final remete ao título da coluna e, por isso, para a causa específica desconhecida, que pouco tempo depois descobriu-se que se tratava de um vírus. Em um artigo publicado no mesmo JAMA, que celebra a centenária pesquisa sobre febre amarela[X], os autores atribuem a Reed e colaboradores a conclusão adicional de que a febre é causada por um “agente filtrável”, como os enigmáticos vírus eram chamados na época. Não há menção a esses agentes no artigo original comentado aqui, os autores apenas mencionam no começo que excluíam a possibilidade de que uma bactéria específica fosse o patógeno e na última frase dizem que a causa específica é desconhecida. A história é duplamente mal contada nesse artigo celebratório e em outros sítios. Primeiro pela imprecisão, pois Reed foi de fato o pioneiro na identificação de um vírus que ataca seres humanos, mas em um outro artigo, posterior, e quase com o mesmo título[XI]. Além disso, porque nos afasta de acessar um trabalho extremamente original, que é pouco citado, mas tem muito a dizer. Como é bom ler as fontes originais!

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Trecho de “A etiologia da febre amarela – uma nota suplementar” do major Walter Reed

Desvendando um pouco mais o fio da meada, descobre-se que existem ainda outros personagens nessa incrível história. Lendo um artigo de Jean-Philippe e Alain Chippaux[XII], aprendemos que o francês Louis-Daniel Beauperthuy, já em 1853, bem antes de Finlay, estava convencido de que o “pernilongo de pernas listradas” era o responsável por transmitir a febre amarela.

A febre amarela daria uma bela disciplina interdisciplinar sobre como a ciência é feita, como ela impacta e é impactada e, principalmente, sobre como ela é contada e propagada em diferentes lugares.

 

 

Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.

 

 

 


[I] O dado é extraído de uma fonte sobre emergência de novos vírus de 2012, que no resumo adverte: “Parece praticamente inevitável que novos vírus vão surgir...Por isso um sistema global efetivo de vigilância é necessário”.

Human viruses: Discovery and emergence, Mark Woolhose ae alia. Phil. Trans. R. Soc B, vol. 367, 2864-2871 (2012): https://royalsocietypublishing.org/doi/full/10.1098/rstb.2011.0354

[II] http://www.comciencia.br/category/_dossie-189/

[III] http://brasil.planetasaber.com/theworld/gats/article/default.asp?ts=1&pk=2715&art=59

[IV] A lenta elaboração e consolidação da teoria, lentidão muito em função de resistências a ela, é uma incrível história a parte.

[V] https://pdfs.semanticscholar.org/bb5a/098488920c790a97864612de681388df574c.pdf

[VI] Na mesma conferência foi apresentado um trabalho sobre os efeitos do desequilíbrio na “eletricidade animal” como indutora da febre amarela.

[VII] “enfermidades que apresentam indicadores inaceitáveis e investimentos reduzidos em pesquisas, produção de medicamentos e em seu controle”

[VIII] Acesso restrito; https://jamanetwork.com/journals/jama/article-abstract/469979

[IX] http://www.comciencia.br/febre-amarela-no-brasil-dos-primordios-a-atualidade/

[X] https://jamanetwork.com/journals/jama/fullarticle/182442

[XI] https://search.proquest.com/docview/217047402/fulltextPDF/31FA3BD8E6D846B2PQ/1?accountid=8113

[XII][1] https://www.scielo.br/pdf/jvatitd/v24/1678-9199-jvatitd-24-20.pdf

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