A autonomia é um princípio inquestionável dentro das universidades. A conquista, há pouco mais de 30 anos, da autonomia financeira e de gestão das universidades públicas do Estado de São paulo desvela, de qualquer janela aberta que se olhe, desenvolvimentos notáveis nas paisagens de cumprimento de suas missões: ensino, pesquisa e extensão. Do lado de fora de suas janelas, essa autonomia é, de tempos em tempos, contestada. A autonomia é um instrumento importante para, como já discutido por Darcy Ribeiro há mais de 50 anos, o crescimento autônomo das universidades em oposição ao que ele chamava de modernização reflexa[1]. Em suas palavras, a modernização reflexa é “baseada na suposição de que, acrescentando certos aperfeiçoamentos ou inovações a nossas universidades, vê-las-emos aproximar-se cada vez mais de suas congêneres mais adiantadas até se tornarem tão eficazes quanto elas”. Em contraponto, “a política de desenvolvimento autônomo exige o máximo de lucidez e de intencionalidade, tanto em relação à sociedade como em relação à universidade". Isso só é possível “por meio de um diagnóstico cuidadoso de seus problemas, uma planificação rigorosa de seu crescimento e uma escolha estratégica de objetivos, necessariamente opostos aos da modernização reflexa”.
Ao lado do desenvolvimento da autonomia universitária, tomando o exemplo específico das universidades públicas do Estado de São Paulo, engendra-se o seu antônimo, a heteronomia, justamente nos mecanismos de "planificação rigorosa" e na "escolha estratégica de objetivos", que se revelam globais e não apenas específicos às instituições do lado de baixo do Equador. Uma heteronomia promotora de uma modernização reflexa, guiada por instituições privadas, alheias às universidades e ao conhecimento como bem público. Ainda que seduzidas pelos mecanismos dessa heteronomia, é nas universidades que vozes em contrário vêm se avolumando e, talvez, valha a pena mencioná-las. Desses mecanismos, dois ou três casos, com desdobramentos recentes, merecem especial atenção.
O primeiro desses mecanismos são os rankings globais de universidades, cujas listas anuais (são várias), uma vez anunciadas, continuam dando manchetes em portais das universidades que sobem algumas posições em relação aos anos anteriores. Lembrando que universidades não são atletas, que buscam medalhas em jogos olímpicos ou panamericanos[ii], a pertinência dos rankings é discutida há tempos, mas a sua contestação mais explícita é mais recente. Nesse sentido, vale a pena atentar-se à “Declaração sobre rankings globais de universidades”, elaborada por um grupo independente de especialistas sobre o assunto. A divulgação foi há poucos dias, primeira semana de novembro de 2023, e o documento deveria ser pauta dos portais de universidades, assim como são as sucessivas listas dos rankings. O acesso ao documento pode ser feito no endereço que aparece na legenda da figura anunciando a declaração.
Como advertia Darcy Ribeiro, o crescimento autônomo das universidades “exige o máximo de lucidez e de intencionalidade, tanto em relação à sociedade como em relação à universidade”. Percebe-se falta de lucidez quando a “planificação rigorosa” e a “escolha estratégica de objetivos” começam a ser influenciadas por esses mecanismos classificadores. Fica ao eventual leitor no meio acadêmico apreciar se essa sedução dos rankings pontifica ou não o andar da carruagem. Um dos aspectos, que estão na declaração, deve ser destacado aqui.. Os quatro rankings globais mais influentes – QS World University Rankings, THE World University Rankings, Academic Ranking of World Universities (ARWU) e o U.S. News Best Global Universities Rankings – são produzidos por instituições privadas com fins lucrativos. O que vêm fazendo as universidades? Não só disponibilizam gratuitamente seus dados para a composição dos indicadores dessas listas, como também mobilizam seus funcionários na coleta dos dados pelos critérios dessas instituições privadas. Mas qual é o modelo de negócios dessas instituições? Afinal funcionam com o objetivo de gerar lucros? Sem responder à pergunta, um fato se verifica: no processo há transferência de recursos públicos para uma iniciativa privada com fins lucrativos e de pouca transparência. A declaração sobre os rankings fornecerá um panorama geral, mas ações ainda isoladas começam a ser tomadas. Uma matéria de junho de 2023, publicada no portal Best Colleges, dos Estados Unidos, anuncia que a Universidade Columbia não mais submeterá dados ao U.S. News Best Global Universities Rankings, importante por lá. Essa universidade segue o exemplo de outras, como pode ser visto na matéria[iii]. O ranking em questão é voltado ao ensino, enquanto os outros três são focados muito mais (quando não exclusivamente) na pesquisa, tida por muitos, ainda que veladamente, como a principal missão da universidade. Nesse contexto, há poucas semanas, a Universidade de Utrecht, nos Países Baixos, anunciou a sua retirada do ranking THE, a partir de 2024, no qual, aliás, é presença constante entre as “top 100” (66ª em 2023). Seu reitor, observe-se, vai além e instiga que as universidades deveriam fazer uma “renúncia coletiva” aos rankings, segundo matéria só para inscritos[iv] no sítio fonte. De outro lugar e instância, vem uma moção da União dos Estudantes da Irlanda para que as universidades reavaliem os rankings com o objetivo final de completa retirada deles.
Voltando à Universidade de Utrecht, as justificativas principais são a falta de sentido de um único número (posição no ranking) capturar a diversidade e complexidade de uma universidade, o questionamento à metodologia e a sua transparência (“por exemplo, as universidades têm que gastar muito tempo para prover os dados”) e, encabeçando a lista de alegações, “os rankings colocam ênfase demasiada em pontuação e competição, enquanto nós queremos focar em colaboração e ciência aberta”[v][vi]. No entanto, é justamente essa ciência aberta mencionada que dispara outro alerta.
A ciência aberta é um movimento global ainda com várias definições, envolvendo uma “abertura”, aos que não integram universidades ou instituições de pesquisa, da ciência e de seus processos. Algumas definições incluem, por exemplo, a ciência cidadã: a participação de voluntários não especialistas em pesquisas, como quando ainda não havia especialistas, nos primórdios do que chamamos de ciência moderna[vii]. No entanto, é muito mais frequente a restrição a um propósito mais específico: um movimento global que “envolve o conjunto de políticas e ações para promover a ampla disseminação das descobertas científicas”, segundo a Academia Brasileira de Ciências. Essa ampla disseminação se assenta, parece que majoritariamente, no chamado acesso aberto às descobertas científicas relatadas em artigos científicos. Mas o que isso significa? Os artigos científicos não deveriam ser limitados aos que têm acesso às universidades e a suas bibliotecas, que pagam pela assinatura das revistas nas quais são publicados. Os autores dos artigos devem pagar pela publicação, que seria livre para ser acessada e lida por qualquer pessoa, em um ponto de ônibus, por exemplo, com um smartphone. Pois bem, vamos lá. Acesso aberto sempre poderia ter existido, acredito eu. Bastaria incentivar a presença do público externo nas bibliotecas das universidades. Por outro lado, caso o pesquisador não tivesse acesso a um artigo de interesse, bastaria escrever para um dos autores, pedindo uma cópia. Aliás, era o que se fazia até há poucas décadas. Os departamentos das universidades tinham cartões postais para esses pedidos. Bastava preencher à mão ou com máquina de escrever os campos específicos: destinatário, artigo de interesse e remetente, como no exemplo ilustrado (os meus cartões, tanto os em branco e não enviados quanto os recebidos, eu perdi por aí).
Essas trocas geravam contatos diretos analógicos, que também promoviam ações colaborativas, algo que, segundo se argumenta, seria uma vantagem do acesso aberto digital. O fato de o interesse não ser tanto disseminar ciência para um público amplo (afinal, quem na academia entende de fato um artigo científico de outra área do conhecimento?), mas sim para os próprios especialistas fez-se acompanhar de um novo elemento de sedução: publicar artigos em revistas de acesso aberto aumentaria a visibilidade e o potencial número de citações desses artigos, que são (ainda) o objeto de desejo para o reconhecimento, a promoção e o financiamento dos cientistas. Passados vários anos, percebe-se que a coisa não é bem assim. Não é líquido e certo que pagar para publicar aumenta o reconhecimento, ou seja, o número de citações[viii]. Porém, as bases de dados bibliográficos, como a Web of Science e a Scopus (atenção, instituições privadas com fins lucrativos), que guiam a dinâmica de grande parte dos cientistas, gestores e agências de financiamento, apresentam ferramentas que, usadas sem a devida atenção, permitem buscas rápidas, mas fornecem resultados enviesados em direção ao acesso aberto (elas classificam, por exemplo, as revistas com algum tipo de acesso aberto como tal e não os artigos de acesso aberto que estão lá de fato).
Então, novamente, qual é modelo de negócios? O mercado de publicação científica é determinado por um conjunto pequeno de grupo privados com fins lucrativos. Aos poucos, os valores das taxas de publicação de artigos (APC, na sigla em inglês) foram aumentando, talvez astronomicamente, e, como ouvi recentemente: “Publicar em algumas revistas vale o preço de um carro novo”. E as revistas tradicionais de sociedades científicas passaram a adotar também esse modelo, mas mantendo ainda o plano anterior (as assinaturas). E agora? Uma nova “gigante do mercado” é a MDPI (Multidisciplinary Digital Publishing Institute, instituto multidisciplinar de publicação digital), com suas 472 revistas, algumas delas publicando mais de 20 mil artigos por ano. Isso gera impacto no bolso e na qualidade científica do que é publicado e denúncias e boicotes surgem: “Como a ciência acadêmica vendeu sua alma à indústria das publicações”[ix]. Um movimento que poderá levar de fato a um acesso aberto é o anúncio do Conselho da União Europeia (UE), em maio de 2023, de um conjunto de conclusões sobre publicações acadêmicas, juntamente com uma declaração de apoio das organizações de pesquisa mais influentes da Europa. No coração desse passo está o apoio à criação de “uma infraestrutura pública sem fins lucrativos para a publicação acadêmica”, “baseada em softwares de acesso e padrões abertos, para evitar a dependência de serviços e de sistemas proprietários”[x]. Os instrumentos e ferramentas estão disponíveis, tanto lá, quanto aqui, para promover o conhecimento como um bem público. Enquanto isso, essa dependência levou, como um amigo definiu, a “um modelo de negócios de transferência de recursos públicos (de pesquisa) para a iniciativa privada com fins lucrativos (os grandes grupos editoriais)”.
Uma última lembrança: a publicação de um relatório pela Sparc (sigla em inglês para Coalização de Publicação e Recursos Acadêmicos), uma aliança que reúne mais de 800 instituições pelo mundo para promover o acesso, a educação e uma política de dados abertos. O relatório em questão, “Análise do panorama. A indústria de publicação acadêmica em mudança – implicações para as instituições acadêmicas”[xi], chama a atenção para o deslocamento das grandes editoras rumo a organizações de análise de dados, mantendo assim o controle sobre o mercado editorial. No sumário de um relatório de 2019, que passou meio desapercebido, os autores advertem que esse deslocamento das empresas, embora ainda no seu início, pode:
“Por meio da prestação contínua desses serviços, de forma invisível e estrategicamente, influenciar, e talvez exercer controle, sobre as principais decisões universitárias – desde a avaliação do aluno à integridade da pesquisa e ao planejamento financeiro. Dados sobre alunos, corpo docente, resultados de pesquisa, produtividade institucional, entre outros, têm, potencialmente, enorme valor competitivo. Representam um mercado potencial de vários bilhões de dólares (talvez de trilhões, quando o valor da propriedade intelectual é levado em consideração), mas sua atração e uso poderia reduzir significativamente os direitos das instituições e dos acadêmicos sobre seus dados e a propriedade intelectual. Um conjunto de empresas está agindo agressivamente para capitalizar esses dados, muitas vezes explorando a natureza descentralizada das instituições acadêmicas”.
Pensar a autonomia das universidades implica também um pensamento autônomo e crítico, resistindo às sereias e a seus cantos da heteronomia nessa nova modernidade reflexa global.
Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.
[i] https://www.comciencia.br/urgencia-da-universidade-necessaria/
[ii] https://www.unicamp.br/unicamp/ju/artigos/peter-schulz/cada-universidade-uma-sentenca
[iii] https://www.bestcolleges.com/news/these-schools-dropped-out-of-us-news-rankings/
[iv] https://www.researchprofessionalnews.com/rr-news-europe-universities-2023-11-utrecht-leader-urges-universities-to-collectively-pass-on-rankings/
[v] https://www.uu.nl/en/news/why-uu-is-missing-in-the-the-ranking
[vi] Curiosamente, ou não, em uma crítica à decisão por aqui, a colocação de ênfase demasiada em pontuação e competição foi traduzida como geração de estresse e competição.
[vii] https://www.unicamp.br/unicamp/ju/artigos/peter-schulz/participacao-cientifica-de-onde-viemos-o-que-somos-para-onde-vamos
[viii] https://journals.plos.org/plosone/article?id=10.1371/journal.pone.0253129
[ix] https://issues.org/how-academic-science-gave-its-soul-to-the-publishing-industry/
[x] https://bjoern.brembs.net/2023/06/the-beginning-of-the-end-for-academic-publishers/
[xi] https://infrastructure.sparcopen.org/landscape-analysis