Foto: Antoninho Perri

Peter Schulz foi professor do Instituto de Física "Gleb Wataghin" (IFGW) da Unicamp durante 20 anos. Atualmente é professor da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp, em Limeira. Além de artigos em periódicos especializados em Física e Cienciometria, dedica-se à divulgação científica e ao estudo de aspectos da interdisciplinaridade. Publicou o livro “A encruzilhada da nanotecnologia – inovação, tecnologia e riscos” (Vieira & Lent, 2009) e foi curador da exposição “Tão longe, tão perto – as telecomunicações e a sociedade”, no Museu de Arte Brasileira – FAAP, São Paulo (2010).

'Malaises' da ciência

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​“Ciência pela ciência usualmente não significa nada além da ciência em benefício daqueles que a praticam”

Rudolf Virchow



Ilustração: Luppa SilvaA epígrafe acima apareceu no meio de um texto, escrito em 1848 pelo famoso médico alemão, que defendia a necessidade de a ciência estar voltada à sociedade [I]. Não sei quando foi realizado o excerto da frase para transformá-la em aforismo, dando vida a outras interpretações. Uma delas abre a possibilidade de pensar no cientista mais interessado em sua carreira do que na atividade em si, chamada ciência. Nada mais humano, diga-se de passagem. Essa frase do ensaio transformado em máxima, junto com a possível interpretação mencionada, lembra outra bem mais conhecida, que não precisa ser traduzida: Publish or perish. Toda a comunidade acadêmica a conhece e é importante o suficiente para ter um verbete na Wikipédia, onde encontramos que “é uma frase cunhada para descrever a pressão na academia para publicar trabalhos acadêmicos para sustentar ou promover a carreira” [II]. Esta expressão também é antiga, não tanto quanto a de Virchow, é verdade, embora já nascendo com vocação para lema. Sua origem foi vasculhada por Eugene Garfield [III], pai da “ciência dos indicadores” de produção científica, que em um comentário, escrito em 1996, menciona que já a usava desde a década de 1960. Segundo Garfield, uma busca realizada por um bibliotecário da Universidade de Yale encontrou a frase em uma carta escrita por Marshall MacLuhan a Ezra Pound em 1951. Ezra Pound depreciava as universidades chamando-as de espeluncas (beaneries) e MacLuhan teria comentado na nota que “publicar ou perecer é o lema da espelunca”. É necessário avisar que Pound, um dos maiores poetas do século passado, era também um notório antissemita e o epíteto espelunca para as universidades está associado a essa posição. Publish or perish, no entanto, é ainda mais antiga. O mesmo bibliotecário teria encontrado a expressão no livro The Academic Man: A Study in the Sociology of a Profession de Logan Wilson, publicado em 1942.

O parágrafo acima é para desconstruir uma possível percepção de que “publicar ou perecer” é ideia recente, mas é inegável que ganhou notoriedade junto com outro conceito, este sim mais recente, o produtivismo acadêmico: “produzir sem se importar com a qualidade ou a finalidade do que é produzido...Para alguns observadores, o produtivismo é doença autoimune, cria da própria comunidade acadêmica. Resposta desvirtuada a uma demanda social legítima, o produtivismo é puro jogo de cena”, nas palavras de Thomaz Wood Jr. [IV] E é nesse contexto, de publicar ou perecer e da preocupação dos que publicam em promover suas carreiras, que caminha a ciência e as narrativas sobre essa caminhada. Para não correr o risco de repetir alusões anteriores ao tema, detenho-me nas narrativas mais recentes, para depois juntar mais uma área do conhecimento ao debate: a psicologia.

O livro “Publish or Perish: Perceived Benefits versus unintended Consequences”, de Imad Moosa, apareceu há poucos meses com este título autoexplicativo. Um dos benefícios do modelo publique ou pereça, ao qual o título faz alusão, é a constatação de que pressão calibrada sobre o pesquisador seria motivadora. Outro seria a de que promove o mérito do pesquisador motivado pela pressão. O título do livro, no entanto, fala de percepções e o autor comenta que seriam benefícios ilusórios [V]: “devemos nos perguntar por que é dada maior importância à publicação em relação às outras atividades acadêmicas”. Moosa segue subindo o tom: “essas percepções de benefícios são ilusórias, pois os acadêmicos são forçados a publicar qualquer coisa em vez de se preocuparem com o avanço do conhecimento humano, que não pode se materializar sob pressão.” Mesmo havendo alguma boa intenção na ideia, suas consequências não intencionais seriam devastadoras. O livro (segundo as resenhas) elenca os problemas e apresenta dados para corroborar o cenário, como os que apresentam evidências do crescimento das taxas de produção de artigos associado ao aumento do número de autores por artigo. É uma hipótese levantada há tempos: se o que conta é o número de artigos, uma estratégia seria aumentar a participação como coautor em vários artigos em vez de me concentrar em poucos. Outro mecanismo para não perecer é dividir um trabalho em vários artigos, cada um contando parte da história. É o que ficou conhecido por “ciência salame”, ou seja, corte o trabalho em fatias, que faz sentido para o consumo do embutido, mas não tanto para a geração de conhecimento. Como já mencionado, o livro apresenta argumentos e dados, mas outras narrativas – também com dados e argumentos – se contrapõem a essas hipóteses.

ReproduçãoNo meio da disputa a pergunta que se coloca é a de como tais mudanças na dinâmica de publicação poderiam ser mensuráveis e aí a cientometria entra em cena. O artigo Quantity and/or Quality? The Importance of Publishing Many Papers [VI] testa a hipótese (De uma determinada forma: qualidade através das citações, que aumentam com as publicações e o número de coautores. Filtrar esse efeito é delicado) de que quantidade prejudica a qualidade. A conclusão dos autores é de que a hipótese não se confirma: a quantidade de artigos não afetaria a qualidade. Esse artigo foi publicado na PLOS One, o que lhe dá um peso discursivo considerável. O artigo Researcher´s individual Publication rate has not increased in a century [VII] é também um estudo quantitativo levando em conta a produção de 40 mil pesquisadores entre 1900 e 2013. O final do resumo é contundente: “os resultados são robustos em face das escolhas metodológicas e são conservadores em relação à hipótese de que as taxas de publicação estão crescendo. Portanto, a crença disseminada de que pressões para publicar estão levando a literatura científica a ser inundada com artigos fatiados (ciência salame), triviais, incompletos, duplicados, plagiados e de falsos resultados é provavelmente incorreta ou pelo menos exagerada”.  Também publicado na prestigiosa PLOS One. Desconfio, porém, que a alegada robustez metodológica não é tão robusta, pelo menos para a robustez assertiva do resumo. O portfólio de dezenas de milhares de pesquisadores inclui aqueles que foram coautores de pelo menos dois artigos. Isso provavelmente inclui, portanto, os estudantes, que durante seu mestrado e doutorado publicaram alguns artigos e não seguiram carreira acadêmica, diminuindo o peso dos orientadores, que praticam a orientação-salame, nas médias apresentadas. Além disso, baseia-se nos artigos que constam da base de dados Web of Science, que exclui, por exemplo, o manancial crescente das chamadas revistas predatórias, depositárias de uma parte crescente da produção científica (?). Ou seja, é uma falsa resposta, embora imponente, às hipóteses vinculadas ao publish and perish. E são justamente as revistas predatórias, já discutidas anteriormente neste espaço [VIII], uma das consequências não intencionais aventadas no livro de Moosa. E aí a cutucada recente aparece no The Economist [IX]. O artigo em questão levanta novamente a lebre sobre os artigos publicados nessas revistas, que anunciam a revisão por pares, mas não a praticam e seguem o modelo de negócios “pagou, publicou”. Em um ambiente de pressão, pesquisadores se sentiriam compelidos a publicar por esses meios para inflar as listas de publicação, para serem contratados, passarem em avaliações e serem promovidos. Parece medida desesperada sem a vista grossa por parte das autoridades acadêmicas. E são exatamente evidências nesse sentido (não aqui, mas no Canadá) que aparecem agora. Autoridades acadêmicas também publicariam predatoriamente. As estimativas, incluindo autoridades e “chão de fábrica”, são de 400 mil artigos desse tipo por ano e, no caso da América do Norte, 6% do total publicado. A publicação predatória é uma das formas de má conduta acadêmica. Temos uma crise?

Daniele Fanelli (autor de um dos artigos da PLOS One discutido acima) critica o que seria justamente uma “narrativa de crise” [X], dizendo que não há evidências para tanto e que tal narrativa é contraproducente. Por outro lado, Lex Bouter [XI] afirma que algo precisa ser feito contra o que a “narrativa da crise” aponta, mesmo na falta de mais evidências empíricas.  O tema em questão é a integridade na pesquisa frente às crescentes pressões sobre o mundo acadêmico, sendo o “publicar ou perecer” uma delas. Lex Bouter, a propósito, é coautor do curioso Publiphilia Impactfactorius: a new psychiatric syndrome among biomedical scientists? [XII], que parece um artigo acadêmico, mas os autores advertem de que se trata de uma sátira, mas com fundo de verdade, pois o grupo pesquisa exatamente isso: publish or perish poderia levar a síndromes e quais seriam os traços de personalidade mais suscetíveis? De qualquer modo, com textos satíricos ou não, a preocupação com a saúde mental na academia e o fato de que esses problemas continuam velados passam a receber maior atenção [XIII].

ReproduçãoEsses poucos exemplos sugerem que em torno do lema “publicar ou perecer” existe um debate que avança também por uma zona cinzenta de pesquisas a serviço de posições já tomadas a priori, assunto por si só interessante para um devido tratamento científico. Voltando à resenha sobre o livro de Moosa (“os acadêmicos são forçados a publicar qualquer coisa em vez de se preocuparem com o avanço do conhecimento humano”) percebem-se semelhanças com a epígrafe que completa 170 anos. Parece-me difícil negar que as discussões envolvendo geração de conhecimento e as condições às quais seus produtores estão sujeitos precisam ser claramente interdisciplinares e não reducionistas.

Como paliativo à “malaise” do título, poderia recomendar experimentar a leitura de Publish and Perish de James Hynes da St. Martin Press: “três novelas satíricas que se passam no mundo acadêmico e que exploram o potencial lado obscuro da responsabilidade de um professor frente ao ensino e a publicação”. Quem encomendar (43 reais pela Saraiva),  empreste-me depois. Ou, para simplificar, podemos recorrer à Mafalda.

 


 

[I] Na tradução do alemão para o inglês: 'Science for its own sake' usually means nothing more than science for the sake of the people who happen to be pursuing it.  Em Disease, Life, and Man: Selected Essays by Rudolf Virchow, Stanford university Press, 1958.

[II] https://en.wikipedia.org/wiki/Publish_or_perish

[III] https://www.the-scientist.com/?articles.view/articleNo/17944/title/What-Is-The-Primordial-Reference-For-The-Phrase--Publish-Or-Perish--/

[IV] https://www.cartacapital.com.br/revista/901/produtivismo-e-alienacao

[V] https://elgar.blog/2018/01/24/publish-or-perish-perceived-benefits-versus-unintended-consequences/

[VI] http://journals.plos.org/plosone/article?id=10.1371/journal.pone.0166149

[VII] http://journals.plos.org/plosone/article?id=10.1371/journal.pone.0149504

[VIII] https://www.unicamp.br/unicamp/ju/artigos/peter-schulz/o-ethos-e-seus-predadores

[IX]  Agradeço a Rachel Bueno que chamou a minha atenção para este artigo: https://www.economist.com/science-and-technology/2018/06/23/some-science-journals-that-claim-to-peer-review-papers-do-not-do-so

[X] http://www.pnas.org/content/pnas/early/2018/03/08/1708272114.full.pdf

[XI] https://www.elsevier.com/connect/editorial-is-science-in-big-trouble

[XII] https://peerj.com/preprints/3347/

[XIII] https://www.timeshighereducation.com/blog/why-mental-ill-health-of-academic-researchers-remains-hidden-problem

 

 

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