O atual ambiente adverso para a ciência brasileira foi marcado inicialmente por um discurso de desvalorização das ciências humanas, mas a retórica de aparente predileção pela pesquisa com “retorno imediato para a sociedade” embute menoscabo ao que chamamos de ciência pura em geral, sejam humanas, sociais ou naturais. O fim do túnel desse discurso é um desmonte da ciência como um todo, seja pura ou aplicada; com ou sem retorno, imediato ou a longo prazo. Afinal a manchete e linha fina de matéria recente na Revista Forbes[I] não deixam muitas dúvidas sobre a agenda: “O atalho para a inovação – Para o economista Xavier Cirera, do Banco Mundial, o Brasil deve focar mais em facilitar a adoção de tecnologias existentes e menos em fazer pesquisas novas”.
Nesse cenário, voltam aos meios de comunicação artigos em defesa da ciência chamada pura, textos corretos e necessários, mas que deixam uma pulga atrás da orelha. A “pureza” da necessidade do conhecimento em si mesmo acaba sendo quase sempre com a promessa de “utilidade” num futuro mais distante. O incomodo é compartilhado por Thiago França em seu artigo no Direto da Ciência[II], ponderando que “a ciência, porém, é mais que sua utilidade prática, e por isso é possível que essa narrativa comumente usada em sua defesa esteja sendo muito mais prejudicial do que benéfica”.
Esse clima adverso à ciência “pura” e “inútil” não é exclusividade nossa. Estudo recente realizado por pesquisadores das Universidades de Sidney e Columbia, sugerem que pesquisa básica é subvalorizada[III], não só fora dos muros do mundo acadêmico, mas também dentro deles. Mas essa subvalorização da ciência (ou pesquisa) básica (ou pura) é sintoma apenas dos tempos atuais?
No começo desse século, Marcelo Knobel e eu escrevemos sobre isso no artigo “Passado, Presente e Futuro da Física Quântica: Digressões sobre a Importância da Ciência Básica”. [IV] No final do texto afirmamos que “por si só a Ciência Pura constitui um evento estético e espiritual para a humanidade, digno de ser praticado e aclamado, como ocorre com qualquer manifestação artística”. No entanto, o argumento utilitarista aparecia junto, aparentemente inescapável no conjunto de argumentos em defesa da ciência pura. A primeira vez que eu me defrontei com o tema foi em um artigo de John Rowell na revista Physics Today em 1992. A chamada do artigo é sugestiva: “conhecimento nessa área (referia-se ao que se chama Física da Matéria Condensada) tornou-se uma commodity, sujeito às mesmas forças de mercado que se aplicam aos chips de Silício e lasers. O presente mal-estar entre pesquisadores é devido ao excesso de oferta em tempos de baixa demanda”.[V]
Voltando aos dias atuais, essas lembranças motivaram uma busca bibliográfica, que rapidamente me levou ao “Por que Ciência Básica?” no boletim da Academia Americana de Artes e Ciências de outubro de 1970[VI]. O primeiro parágrafo é curioso para quem não conhecia, como eu, a história:
“O investimento federal em pesquisa científica, que alcançou seu auge nas duas décadas que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, passa atualmente por uma mudança de direção decisiva. Nos anos recentes, percebe-se uma clara tendência contra o grande apoio governamental para pesquisas que não prometam um retorno direto e imediato na forma de aplicações práticas.”
Mais adiante, uma parte que surpreende pela atualidade, 40 anos depois, talvez com ressalvas, afinal os tempos ou lugares são outros:
“A ciência hoje está sob ataque por todos os lados. A direita afirma que pesquisa básica é um luxo dispendioso, que ciência como um fim em si mesmo não tem valor comercial e que o financiamento deve ser autorizado apenas se há a promessa de “pay off” imediato, como o desenvolvimento de armas avançadas ou novos métodos de controle ou cura de doenças. Aqueles à esquerda argumentam que a ciência é fonte de inovações tecnológicas que levaram à destruição do nosso meio ambiente e à deterioração do nosso modo de vida. Ciência básica por si só é irrelevante e gastos nessa área só devem ser direcionados no sentido de mitigar a dor e injustiça que existem em várias partes da nossa nação.”
Texto longo com vários matizes, mas a defesa do lado “útil” de uma ciência básica “inútil” emerge na citação direta de Hendrick Casimir (1909-2000), físico holandês, que lembra que o transistor não existiria se seus inventores não tivessem se dedicado à Mecânica Quântica. Mais para o fim, podemos ler:
“As aplicações finais da ciência pura não são imediatamente evidentes, nem podem ser previstas, no entanto a importância da pesquisa básica para o futuro da sociedade dificilmente pode ser superestimada.”
A proposição de defesa da ciência básica é a mesma que hoje causa o incomodo em Thiago França, ou seja, o embate “pura versus aplicada” se repete com os mesmos argumentos há quarenta anos. Ou seria mais antiga ainda? À primeira vista, a origem poderia ser o “modelo linear de inovação”: primeiro a pesquisa básica, seguida da aplicada e, por fim, a inovação. Modelo decorrente do relatório “Ciência, a fronteira sem fim” de Vannevar Bush, apresentado em 1945 com novas diretrizes para tempos de paz[VII]. Outros modelos se sucederam, quebrando a linearidade, mas essencialmente mantendo as categorias “pura” e “aplicada”[VIII]. Uma outra pergunta poderia ser feita: quando surgiu então a diferenciação entre ciências pura e aplicada? A “culpa” é de um filósofo e um poeta na virada do século XVIII para o seguinte.
O filósofo, no caso, é Immanuel Kant, que fez a distinção, no seu livro “Fundamentos Metafísicos da Ciência Natural” (1786), entre “reine Wissenschaft” (ciência pura) e “angewandte Vernunfterkenntnis” (conhecimento racional aplicado). No entanto, atenção: para o grande pensador de Königsberg, “aplicado” não significa “utilitário”, mas “aprendido empiricamente”, o que engloba, na verdade, todas as ciências naturais como as conhecemos hoje. Quem transformou o conceito em “applied Science” (a tal ciência aplicada como nos embates de hoje) foi a tradução de Kant para o inglês feita pelo poeta Samuel Taylor Coleridge em 1817. O termo se popularizou e foi importante na conquista de espaço para as engenharias no ambiente acadêmico inglês durante o século XIX, ou seja, época da profissionalização da pesquisa nas universidades[IX]. Essa história e sua continuação aparecem no instigante artigo “Ciência aplicada – uma frase na busca de um significado” de Robert Bud[X]. A expressão ciência aplicada foi tendo seu significado hibridizado e acabou sendo usada como base epistêmica para o ensino de ciências nas escolas inglesas a partir dos anos 1870. É por esses anos que surgem os primeiros manifestos em favor da ciência pura, amarrados à ideia do modelo linear.
Na Europa, Thomas Henry Huxley escreve em 1880 o ensaio “Ciência e Cultura”, onde se pode ler:
“Eu muitas vezes desejo que a frase “ciência aplicada” nunca tivesse sido inventada. Ela sugere que existe um tipo de conhecimento científico de uso prático direto, que pode ser estudado a parte de outro tipo de conhecimento que não tem uso prático, chamado de “ciência pura”. Mas não existe falácia maior que essa. O que é chamado de ciência aplicada nada mais é do que a aplicação da ciência pura em problemas específicos.”[XI]
Modelo linear desenhado, portanto, ainda no século XIX pelo biólogo e avô do escritor Aldous Huxley. Na América, um pouco depois, em 1883, o físico Henry Rowland escreve para a Associação Americana para o Progresso da Ciência o discurso “Um apelo pela Ciência Pura”[XII] , que começa com uma romântica analogia com a estação preferida do autor: a primavera. E termina com o chamamento para entender “o universo que está inteiramente diante de nós para ser estudado”. Interessante observar que a retórica da ciência pura foi inventada, portanto, depois da ideia de ciência aplicada, que se originou de uma má tradução de Kant, mas teve sua utilidade político-científica, como mencionado acima. O debate continuou no século XX e não parou mais. Um belo resumo é fornecido por Heather Douglas no artigo “A ciência pura e o problema do progresso”[XIII], acrescentando esse outro aspecto ao dilema. Como entendemos a ideia de progresso científico? Quem avalia isso? Como? Mas existe ainda outra maneira de ver as coisas. Pelo menos é o que propõe Benoit Godin e Désirée Schauz em “A mutante identidade da pesquisa: uma história cultural e conceitual”[XIV]. Os autores analisam a ciência não como corpo de conhecimento, mas como atividade, ou seja, a inclusão da palavra pesquisa no discurso científico. E como seu significado foi mudando e com isso o artigo sugere uma mudança de valores culturais na sociedade: de pesquisa (básica) para desenvolvimento (industrial) e depois para inovação (tecnológica), com movimentos de marginalização da primeira.
Os autores acima citados trazem ideias para pensarmos em como estancar a reprodução de um discurso, seja em defesa da ciência básica, ou em prol da aplicada, que, no fundo, só interessa àqueles para quem conhecimento é uma “commodity”. Junto a isso temos a sazonalidade: uma hora elevam o preço das ciências aplicadas, outra a das ciências puras. Curiosamente continuamos amarrados a conceitos que foram criados em outros tempos e contextos e que estão emaranhados com outros discursos. Por isso volto ainda mais no tempo e sugiro a navalhada de Occam[XV] no título desta coluna: nem pura, nem aplicada. É ciência e ponto final.
[I] https://exame.abril.com.br/revista-exame/o-atalho-para-chegar-a-inovacao/
[II] http://www.diretodaciencia.com/2019/08/25/a-ciencia-e-muito-mais-que-as-ferramentas-que-produz/
[III] https://phys.org/news/2019-02-scientists-basic-under-valued.html
[IV] http://www.comciencia.br/dossies-1-72/reportagens/fisica/fisica10.htm
[V] https://physicstoday.scitation.org/doi/pdf/10.1063/1.881308
[VI] https://www.jstor.org/stable/3822913
[VII] Ver artigo de Carlos H. Brito Cruz: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/rbi/article/view/8649079/15628
[VIII] Deixo o leitor à mingua quanto a esse tema, pois não é o objetivo desse texto discutir esses modelos, como o Quadrante de Pasteur, Modo 2 de Produção de Conhecimento ou Tripla Hélice. Remeto a buscas rápidas pelo Google dessas expressões chave.
[IX] https://www.unicamp.br/unicamp/ju/artigos/peter-schulz/como-pesquisa-foi-parar-na-universidade
[X] “Applied Science”A Phrase in Search of a Meaning, Robert Bud, Em Isis, 2012, 103:537–545: https://www.journals.uchicago.edu/doi/pdfplus/10.1086/667977
[XI] O ensaio na íntegra eu encontrei no endereço: https://www.bartleby.com/28/9.html
[XII] “A plea for pure Science”: https://www.jstor.org/stable/pdf/1758976.pdf
[XIII] Heather Douglas, Pure science and the problem of progress, Studies in History and Philosophy of Science, vol. 46 (2014), 55-63.
[XIV] The changing identity of research: A cultural and conceptual history. History of Science, vol. 54 (2016) 276-306.