Foto: Antoninho Perri

Peter Schulz foi professor do Instituto de Física "Gleb Wataghin" (IFGW) da Unicamp durante 20 anos. Atualmente é professor da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp, em Limeira. Além de artigos em periódicos especializados em Física e Cienciometria, dedica-se à divulgação científica e ao estudo de aspectos da interdisciplinaridade. Publicou o livro “A encruzilhada da nanotecnologia – inovação, tecnologia e riscos” (Vieira & Lent, 2009) e foi curador da exposição “Tão longe, tão perto – as telecomunicações e a sociedade”, no Museu de Arte Brasileira – FAAP, São Paulo (2010).

O desprezo pela História, o suicídio do Estado e o esmorecimento da Sociedade

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“a história é a mais importante das ciências, sem história não há realidade objetiva”

César Lattes

 

Estamos às voltas com mais um ataque às universidades públicas paulistas e ao principal órgão de fomento da pesquisa atualmente no país, a Fapesp. Trata-se do artigo 14 do Projeto de Lei 529/2020 da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. As consequências para as universidades paulistas e a ciência seriam devastadoras, caso se aprove o projeto. A dimensão do prejuízo pode ser apreciada pela matéria no Direto da Ciência[I]. Escrevo antes do resultado da votação, mas a proposta é sintoma claro do desprezo pela História e desídia social. É um ajuste imediatista de balancete de gastos, auspicioso ao olhar incauto, mas que representa um suicídio do Estado.

Homens públicos, caso atentos à História, deveriam saber que as universidades públicas e a Fapesp constituem uma política de estado, que começou a ser engendrada há quase 90 anos, sendo o seu marco fundacional a criação da USP em 1934, com o propósito de promover o desenvolvimento. Nas palavras de Sérgio Milliet, a história lembra que então tínhamos a antítese do que se apresenta hoje: “De São Paulo ... saíra 'uma revolução intelectual e científica' suscetível de mudar as concepções econômicas e sociais dos brasileiros”. A política de estado se ampliou com a criação da Fapesp, o surgimento da Unicamp e a organização da Unesp.

A Fapesp foi prevista na Constituição do Estado em 1947. Está lá no artigo 123, defendido pelo deputado (além de historiador, filósofo e editor) Caio Prado Jr[II]:

“Esta medida parece-me uma das de maior alcance incluída na nossa Constituição porque, sem dúvida nenhuma, se a iniciativa nela prevista for bem conduzida, resultará numa completa transformação da vida cultural, e direi mesmo econômica e social de nosso Estado e, por consequência, do Brasil.”

E foi bem conduzida, embora começasse a funcionar apenas em 1962, fruto de nova e intensa mobilização da comunidade científica. Os resultados nesses quase sessenta anos foram e continuam sendo imprescindíveis. E devem continuar sendo e a mobilização agora é pela sua manutenção. Um breve panorama de sua história até a virada desse século pode ser vislumbrado na resenha de um livro sobre ela[III]. A frase final da resenha é uma advertência sobre o que nos ronda: “Ou seja, a Fapesp não tem sido, na sua história, um organismo cooptável pelo poder.” O poder é de governo, o bem público é de estado.

Às palavras de Sérgio Milliet e de Caio Prado Júnior, somam-se as de Zeferino Vaz, artífice da Unicamp, fundada em 1966, que lembram os princípios da transformação dessa vida cultural, econômica e social no discurso do filósofo deputado:

“É incompreensível que haja um debate colocando em posições antagônicas universidades humanistas e técnicas ou científicas, porque, a meu ver, esse conceito é antiético – contraria frontalmente o conceito de universidade. No meu entender, universidade significa unidade na universalidade dos conhecimentos humanos, isto é, existe um denominador comum, um sentido direcional único, em todas as atividades humanas”. As técnicas são subordinadas ao bem-estar do homem, e não o homem subordinado à técnica”[IV].

Felizmente, muitos entendem que as palavras entre aspas acima não constituem mera retórica, são princípios e valores, que resultaram em enormes transformações tangíveis e que podem ser inseridos nas planilhas dos contadores apressados. Cito novamente o exemplo já anunciado à exaustão, mas que, infelizmente, parece que ainda não foi digitado na planilha dos que, usando mera retórica, chamam de retórica a história dos outros. São as empresas nascidas e/ou incubadas na Unicamp, oriundas muitas vezes de projetos financiados pela Fapesp. São mais de 800 delas, que empregam mais de 30 mil pessoas e que faturam R$7,9 bilhões ao ano .[V].

E o exemplo mais explícito nessa época é a mobilização dessas instituições no combate à pandemia e suas crises. Para isso talvez baste ler, ver e ouvir na mídia. Foram 10 mil vezes que só a Unicamp teve suas informações divulgadas na mídia no mês de julho, mais de 300 vezes por dia.

Não é retórica, é história e transformação. Espero que isso seja lembrado na hora de escolher a realidade objetiva que teremos no futuro.

 

 

Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.


[I]http://www.diretodaciencia.com/2020/08/16/projeto-de-lei-de-doria-ameaca-recursos-da-unesp-unicamp-usp-e-fapesp/

[II]https://bv.fapesp.br/linha-do-tempo/375/discurso-caio-prado-junior/

[III]http://www.comciencia.br/dossies-1-72/resenhas/fapesp.htm

[IV]https://www.unicamp.br/unicamp/noticias/2019/05/13/sobre-balburdias-filosofia-e-universidades-publicas

[V]https://www.inova.unicamp.br/noticias-inova/faturamento-anual-das-empresas-filhas-da-unicamp-chega-a-r-7-9-bilhoes/

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