Limeira, 24 de março de 2010. Foi a aula magna para comemorar o início das aulas na Faculdade de Ciências Aplicadas daquele ano. Era o segundo ano de seu funcionamento e queríamos uma palestra marcante para essa nova unidade de ensino e pesquisa com uma identidade em construção. A sugestão de convidar o professor Fausto Castilho veio de repente de um amigo e colega, Márcio Barreto, sugestão que se anunciou como uma revelação para todo o grupo reunido ali no final de 2009, encerrando uma discussão que se alongava.
Convite feito, aceito e agendado, restava cuidar do transporte para uma pessoa que para nós já era um mito. Concordamos que enviar apenas o motorista seria insuficiente, assim, sendo na época o diretor associado, assumi com prazer a tarefa de acompanhante do começo ao fim. Tarefa prazerosa: foram duas horas de conversa, somando as viagens de ida e volta, em que ouvi de viva voz sobre a conversa de Oswald de Andrade e Sergio Milliet com seu avô (ou pai?) para convencê-lo a deixar o neto (filho?), calouro da Faculdade de Direito da USP, a estudar filosofia na França.
Ouvi também sobre a famosa pergunta que fizera a Jean-Paul Sartre por carta e que levou o filósofo francês até Araraquara para respondê-la pessoalmente em uma palestra. Conversamos sobre o ensino no Brasil, a Unicamp e interdisciplinaridade. Contei sobre a FCA e a inexistência de departamentos nela e a presença de um núcleo comum de humanidades para todos os estudantes dos diferentes cursos. Percebi o entusiasmo do mestre com esses princípios, que remetiam em parte ao seu conceito de universidade. Fausto Castilho fascinava por meio das palavras e seduzia seus ouvintes, levando-os à reflexão.
Na aula magna, que permanece apenas na memória dos presentes (infelizmente tivemos um problema técnico para gravá-la), Fausto Castilho discorreu sobre o que me antecipara em parte na viagem: a formação do ensino superior no Brasil e a ideia para a Unicamp, da qual foi um dos idealizadores. Essa pequena parte do seu imenso legado oral passou a fazer parte da nossa identidade. Um legado que, sem a entonação da voz e pausas precisas na fala, pode ser encontrado em seu legado escrito. Trata-se do livro-entrevista concedida a Alexandre Guimarães Tadeu de Soares: “O conceito de universidade no projeto da Unicamp”, resenhado em outro espaço virtual próximo a esta coluna.
Por isso relembro aqui apenas alguns trechos que se emaranham com a história da então mais jovem faculdade da Universidade de Campinas. A concepção radial para uma universidade tem em seu centro os Estudos Gerais, que promove a transição do estudante para a essência do ensino superior, sua abrangência, sua interdisciplinaridade em múltiplos espaços e formas. Daí partir-se-ia para as ciências fundamentais e seus institutos, e só depois se desdobrando para as especialidades, como o desenho que acompanha o livro e ilustra essa coluna. Essa ideia se materializa na organização do campus em Barão Geraldo.
Fausto Castilho reconheceu no nosso núcleo geral de humanidades sua proposta de Estudos Gerais, mas a organização do campus em Limeira não traduz essa ideia. No entanto, no começo de seu livro-entrevista, Fausto Castilho adverte que não devemos confundir os fundamentos (princípios) de uma universidade com suas fundações (dos prédios). Em Limeira tínhamos as fundações dadas e os fundamentos em construção na difícil materialização de um projeto, que era então apenas seu ponto de partida. Não era possível reeditar Barão Geraldo, mas quando paramos para ouvir a aula magna, passamos a construir a convicção de que a ideia dos Estudos Gerais poderia vingar assim mesmo.
Percebemos alguns anos depois que esse núcleo geral comum é nosso antídoto aos problemas da “concepção brasileira de ensino superior”, que “não só prescinde da universidade, mas a nega” e hoje parece querer se assanhar, pelo menos parcialmente, dentro da própria universidade. Essas características são o “ensinismo”, o “profissionismo”, o “isolacionismo” o “privatismo”, o “autoditatismo” e o “substituísmo”. Penalizo o leitor por não definir esses termos neste espaço, mas fica o convite então para ler o livro. Detenho-me, porém, no “autoditatismo”, uma necessidade em determinada época de inexistência de universidades para cultivar o conhecimento na acepção da erudição e não da mera instrumentação. Onde era possível o “autoditatismo” então? Na biblioteca. “Lembro-me perfeitamente de que o mesmo estado de espírito [entusiasmo] perdurava entre os adolescentes que, na segunda metade dos anos 1940, frequentavam as salas de leitura da nova Biblioteca Municipal de São Paulo”.
Às vezes sinto falta desse estado de espírito, mas Fausto Castilho deixou-nos também seu acervo de livros e uma Fundação para preservar seu legado. Esse acervo estará disponível futuramente na Biblioteca de Obras Raras da Unicamp. Ontem (2) essa biblioteca recebeu o nome de Fausto Castilho. Um lugar para fomentar o entusiasmo e o atrevimento que antes só podia ser satisfeito com o “autoditatismo”, porque não havia universidades. Hoje nós temos as universidades, mas o entusiasmo de Fausto Castilho continua cada vez mais necessário. Lembrando-me daquele dia em que paramos para ouvi-lo, ocorre-me que esse talvez seja o seu legado mais urgente.