Foto: Antoninho Perri

Peter Schulz foi professor do Instituto de Física "Gleb Wataghin" (IFGW) da Unicamp durante 20 anos. Atualmente é professor da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp, em Limeira. Além de artigos em periódicos especializados em Física e Cienciometria, dedica-se à divulgação científica e ao estudo de aspectos da interdisciplinaridade. Publicou o livro “A encruzilhada da nanotecnologia – inovação, tecnologia e riscos” (Vieira & Lent, 2009) e foi curador da exposição “Tão longe, tão perto – as telecomunicações e a sociedade”, no Museu de Arte Brasileira – FAAP, São Paulo (2010).

O que dizem as citações em artigos?

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Ilustração: Luppa SilvaEm um congresso de Física em 2010, já se iam quase vinte anos de carreira docente, deparei-me com um livro exposto em um estande de uma livraria, que estava lá tentando vender seus livros como é comum em qualquer congresso. O título que chamou minha atenção era Why Beliefs Matter – Reflections on the Nature of Science, de E. Brian Davies, um professor de matemática do King´s College de Londres, aventurando-se em Filosofia da Ciência. Comprei e li boa parte do livro, encontrando a seguinte frase, uma pequena epifania:

“Ciência é uma atividade humana. Cientistas, como qualquer pessoa, têm crenças e tentam encontrar evidências que as apoiem. Eles frequentemente persuadem outros de que suas descobertas são válidas ao reformular o processo da descoberta em um molde Baconiano (referência a Francis Bacon) , porque as revistas (científicas) preferem assim.”

Esse molde foi se formando aos poucos [I] e nesse processo temos a constituição de um marcador linguístico importante dos artigos científicos, as citações e suas referências. No início, quando havia apenas duas revistas científicas, as citações apareciam em raros artigos e quando apareciam era uma única, muitas vezes uma autorreferência (mesmo porque o repositório de artigos era pequeno). A citação e sua referência (incompleta) apareciam juntas no corpo do texto. O uso de citações, buscando apoio às crenças (de que o modelo usado no trabalho relatado no artigo explicaria o fenômeno estudado, por exemplo) e auxílio no processo de persuasão e validação, e as respectivas referências completas no rodapé da página ou no fim do texto, já podiam ser claramente identificados em meados do século XVII, como mostra a ilustração que acompanha este texto.

Foto: Reprodução
Fac-símile de texto de 1669

Com o passar do tempo, as citações foram ganhando outras funções, tanto para quem cita, quanto para quem é citado. Eu me lembro do meu espanto, ainda como estudante de doutorado, quando recebi um envelope pelo correio com uma separata de um artigo de uma dupla de físicos da Inglaterra. Citavam o meu primeiro artigo científico, que saíra publicado alguns meses antes. Não havia internet e suas bases de dados bibliográficos de fácil uso, portanto, saber se alguém citou ou não o seu trabalho era assim: deparar-se por acaso lendo um artigo ou por uma carta pelo correio (ou esperar meses até que os calhamaços de uma nova edição do Science Citation Index chegassem à biblioteca). Para o estudante que eu era então, grande alegria, a sensação de reconhecimento por aquele meu trabalho, que parecia ser útil para aqueles colegas do outro lado do Atlântico. Mas parecia haver também uma mensagem subliminar. Fui recebendo outros envelopes desses de outros lugares, até que um dia veio um envelope mais gordo com cópias de vários artigos e um singelo bilhete, que dizia mais ou menos assim: “obrigado por citar o meu artigo tal e se no futuro continuar a pesquisar nesse mesmo tema, considere a possibilidade de citar meus outros trabalhos”; o citado queria ser mais citado. A mais curiosa das cartas foi uma em que o autor reclamava que não havia sido citado em outro artigo meu. Havia sido citado sim, mas não aquele específico, motivo da reclamação. Acabei jogando fora a carta em uma mudança, infelizmente, pois anos depois o autor da missiva ganharia o prêmio Nobel.

De acordo com Robert Merton, fundador da moderna Sociologia da Ciência, uma citação representa um reconhecimento a um artigo anterior usado no trabalho que o cita. Para saber se a citação é para reconhecer a prioridade intelectual de outrem, o empréstimo de um método, fornecer suporte à descoberta, relatá-la ou negar as conclusões do trabalho citado seria necessária uma análise de conteúdo do artigo que cita, bem como a do citado. É um trabalho difícil e raro, mas útil também para entender, por exemplo, o consenso da comunidade científica em relação ao conceito citado. Voltando ao bilhete mencionado acima, além da questão do reconhecimento, percebemos que aparece o desejo de recompensa (mais citações) por parte do autor do bilhete. Era ainda a penúltima década do século passado, mas já se insinuava o cenário atual da crescente importância do número de citações, ou seja, a simples contagem delas, na avaliação dos pesquisadores. Assim, desvios da visão normativa de Merton das motivações para citações em artigos científicos começaram a ser propostos para outros fatores, às vezes não científicos, na tomada de decisão de citar um trabalho ou não.

>Bornmann e Daniel [II] fazem uma revisão de vários trabalhos sobre esse tema: o comportamento de citação, chamando a atenção às diferentes especificidades (comportamentos distintos dependendo da área do conhecimento) e alertam para o fato de que os diferentes estudos sobre comportamento de citação variam enormemente no desenho metodológico, seus resultados são de difícil reprodução e as diferenças de comportamento não chegariam a invalidar a contagem de citações como medida de impacto de um trabalho. O debate, porém, continua aberto e esse artigo de revisão já tem lá suas mais de 700 citações. O título de outro artigo cutuca nesse sentido: “O problema da análise de citações: a influência de artigos não citados ou raramente citados” [III].  Nele os autores colocam uma pergunta, que eu compartilho aqui: “Os artigos ‘não citados’ ou ‘raramente citados’ são realmente não citados ou raramente citados e não usados ou raramente usados?”. A resposta é taxativa: “não citado não significa não usado”, mas aplicava-se a um campo específico do conhecimento. 

Deixando de lado as motivações, científicas ou não, para citar um artigo, qual a expectativa do leitor de um artigo científico em relação às citações deste? Talvez a de que o autor tenha lido as referências que cita. Acho que não é sempre assim. Já doutor, mas ainda jovem, escrevi um artigo e usei uma referência na qual lera um conceito relevante para a discussão dos meus resultados. Um amigo leu o artigo e me preveniu que aquele conceito fora descrito por primeira vez por sicrano e não o fulano que eu citara. Bem, respeitei a prioridade intelectual e citei também sicrano, cujo trabalho...não li. Até hoje. Esse deslize eu confesso aqui pela primeira vez, mas tenho notado alguns outros deslizes um pouco maiores. Vez ou outra me deparo com artigos que citam outros para validar suas ideias. Até aqui tudo bem, é o que se espera, mas o problema é que os artigos citados apenas mencionam as mesmas ideias, porém para dizer coisas completamente diferentes. Ou seja, além de ler o artigo que nos interessa, é aconselhável ler suas referências. Senão, um autor que trabalha arduamente para construir uma ideia, pode tê-la vilipendiada se nos fiarmos apenas no que diz o artigo que a cita. É o que aconteceu parcialmente com Lorde Kelvin por mais de um século [IV]. Ciência é realmente uma atividade humana, como qualquer outra.


 

[I] https://www.unicamp.br/unicamp/ju/artigos/peter-schulz/matou-cascavel-e-publicou-o-pau

[II] https://pdfs.semanticscholar.org/fac7/e66de0ec1f7283b5b48e55e45263afe55e06.pdf

[III] http://image.sciencenet.cn/olddata/kexue.com.cn/upload/blog/file/2010/12/2010128124335464925.pdf

[IV] http://www.scielo.br/pdf/rbef/v29n4/a06v29n4.pdf

 

 

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