Foto: Antoninho Perri

Peter Schulz foi professor do Instituto de Física "Gleb Wataghin" (IFGW) da Unicamp durante 20 anos. Atualmente é professor da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp, em Limeira. Além de artigos em periódicos especializados em Física e Cienciometria, dedica-se à divulgação científica e ao estudo de aspectos da interdisciplinaridade. Publicou o livro “A encruzilhada da nanotecnologia – inovação, tecnologia e riscos” (Vieira & Lent, 2009) e foi curador da exposição “Tão longe, tão perto – as telecomunicações e a sociedade”, no Museu de Arte Brasileira – FAAP, São Paulo (2010).

O tempo do ‘Homo Academicus’

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Ilustração: Luppa SilvaUma universidade de pesquisa, ou melhor, abrangente, uma terminologia mais atual e politicamente correta, é constituída por um time complexo no qual os docentes, escalados para o esquema de jogo proposto da indissociabilidade ensino-pesquisa-extensão, precisam jogar nessas diferentes posições, e, muitas vezes, ainda assumem o papel de técnicos e de dirigentes. Ou seja, os papeis são muitos e as pressões/reclamações podem vir de todos os lados, tanto dos colegas de time, quanto da torcida. Principalmente essa. E como os docentes avançam pela lateral do ensino, defendem a zaga da extensão e marcam gol de letra na pesquisa durante todo o jogo até o final da carreira em um clube de ponta?

Deixando a metáfora ludopédica (afinal estamos no meio de uma Copa) de lado, o docente em sua atividade responde ao colégio invisível do seu campo de pesquisa e precisa estar atento aos indicadores de produção científica, sinalizados pelas agências de fomento e da pós-graduação, que acabam assumidos internamente pela universidade. Na docência as pressões são de outra natureza, difundida na sociedade e na direção do aumento de número de vagas. Significaria mais aulas e mais estudantes por turma. Em alguns meios acadêmicos persiste (?) o mito (?) de que se forem ministradas mais do que X aulas por semana a pesquisa torna-se difícil de ser levada adiante. Parece que as tarefas administrativas também vão tomando um quinhão crescente de tempo, recurso sempre limitado a 24 horas por dia. Essa percepção de uma carga de trabalho, talvez excessiva, associada à gestão poderia estar ligada à pressão crescente por maior eficiência e por prestação de contas. Isso me ocorre devido a uma observação curiosa e sintomática, que descrevo a seguir.

A Faculdade de Ciências Aplicadas da Unicamp foi criada com um desenho de horário interessante: não há aulas nas tardes de quarta-feira! A ideia era de criar um horário livre para todos os docentes, que pudesse ser preenchido com atividades acadêmicas, debates e discussões para articular, por exemplo, projetos interdisciplinares de pesquisa. Ou compartilhar inovações curriculares e fomentar ações de extensão.  O que aconteceu é que a janela temporal foi sendo totalmente tomada por reuniões de distintos tipos de colegiados em diferentes quartas-feiras de cada mês. A atividade remanescente da proposta original praticamente não tem a presença de docentes, que estão nessas reuniões outras. Seriam as atividades-meio se sobrepondo às atividades-fim? Mas percebo também a queixa difusa e generalizada de que as reuniões e a burocracia tomam muito tempo por lá. Como seria em outras unidades de ensino e pesquisa? E em outras universidades? Afinal, como o Homo Academicus aloca o seu tempo?

Essa é uma pergunta cuja resposta não é simples e é tema de pesquisa em academias mundo afora. A que mais me chamou a atenção foi organizado por John Ziker, chefe do Departamento de Antropologia da Universidade Estadual de Boise. O artigo (de divulgação) chama-se “O longo e solitário trabalho do Homo Academicus”. É um trabalho de pesquisa em que o campo foi o próprio campus da universidade. Vale a pena ler o relato [I]. Mas resumo aqui os achados. Os docentes lá gastam 30% do tempo em atividades de administração não relacionadas ao ensino ou pesquisa e 17% do horário comercial em reuniões. Ziker comenta que em sua universidade existe muito debate sobre a carga de trabalho, mas pouca base empírica sobre o assunto, o que motivou sua pesquisa. No debate circulam as diferentes visões satirizadas em um cartum, que acompanha o artigo de Ziker, ilustra esta coluna e volta e meia viraliza nas redes sociais. Das 60 horas de trabalho semanais, uma parte menor do tempo é dedicada à pesquisa: 17% das horas nos dias úteis e 27% nas dos fins de semana. Difícil resumir aqui todas as implicações dos dados (por isso volto a convidar para a leitura do texto original e de suas tabelas), mas o autor deixa alguns recados sobre a dificuldade de se contabilizar tempo em um conjunto de atividades no qual a liberdade acadêmica é fundamental. Tempo livre, por exemplo. Apesar dessa importância dada a esses valores, Izner acredita que não tem jeito, temos que fazer mais e melhor. Sinceramente, tenho dúvidas quanto ao “mais” e principalmente do que significa “melhor”.

Reprodução
Cartum que acompanha artigo de Ziker: viralizando


Sempre foi assim? Vale olhar o artigo “Faculty time allocation – a study of change over twenty years” [II]. O artigo é de 2000, e o período de 20 anos refere-se a 1972 -1992. O artigo discute o aumento do tempo alocado tanto para pesquisa, quanto para ensino, mas à custa do tempo de contato entre docentes e estudantes de modo mais informal fora das salas de aula. Os autores reafirmam em seu artigo a importância dessa relação na formação dos estudantes, de como ela seria prestigiada no discurso oficial, mas não recompensada na prática. Afinal, qual a métrica para a informalidade?  E como seria hoje?

Nova pergunta: e os docentes estão satisfeitos com o trabalho? Aparentemente sim, pelo menos de acordo um relatório recente [III], que, no entanto, aponta insatisfação dos docentes (nos EUA) com o aumento da burocratização e apontam aumento da carga de trabalho. Os dados do relatório foram obtidos a partir de levantamentos de uma iniciativa da Universidade de Harvard, o “Collaborative on academic careers in higher education”, conhecida pela simbólica sigla COACHE [IV]. A sigla faz pensar se teríamos um nicho de mercado para “personal coaches” para docentes num futuro próximo. De qualquer forma, há críticas à metodologia empregada, pois apenas 10% dos respondentes são docentes “non tenure-track”, com condições mais precárias, como os professores adjuntos. Professores nessa situação ou contratados em tempo parcial corresponderiam a 70% do contingente docente nos EUA. Então a amostragem parece ter problemas, mas mesmo assim o relatório apresenta pistas interessantes. O dado sobre a docência precária apareceu mencionada em um artigo chamado “o sonho dos acadêmicos alternativos: tempo para refletir, pesquisar e escrever” [V], que cita o “o longo e solitário trabalho do Homo academicus”.  

Vasculhar os sítios pela web em busca de referências tem dessas surpresas: encontrar o inesperado que merece atenção, mas é preciso dedicar tempo para isso. A surpresa aqui é o neologismo Alternative Academics (Alt-Ac) [VI]: uma maneira alternativa para desenvolver atividades consideradas exclusivas às carreiras acadêmicas tradicionais e começa a surgir uma literatura sobre isso, mas encontrá-la fica por conta do leitor [VII].

Para a docência parece que valem também as perguntas que atormentam um jogador de futebol: estou satisfeito com o time, a posição em que jogo e as instruções do técnico?

 


 

[I] https://thebluereview.org/faculty-time-allocation/

[II] Jeffrey F. Milem, Joseph B. Berger & Eric L. Dey (2000) Faculty Time Allocation, The Journal of Higher Education, 71:4, 454-475

[III] https://www.insidehighered.com/quicktakes/2018/03/09/new-data-faculty-job-satisfaction

[IV] https://coache.gse.harvard.edu/

[V] https://www.insidehighered.com/digital-learning/blogs/alternative-academics-dream-have-time-reflection-research-writing

[VI] https://www.insidehighered.com/advice/2013/05/22/essay-defining-alt-ac-new-phd-job-searches

[VII] Com as palavras-chave adequadas não se gasta muito tempo nisso.

 

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