Foto: Antoninho Perri

Peter Schulz foi professor do Instituto de Física "Gleb Wataghin" (IFGW) da Unicamp durante 20 anos. Atualmente é professor da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp, em Limeira. Além de artigos em periódicos especializados em Física e Cienciometria, dedica-se à divulgação científica e ao estudo de aspectos da interdisciplinaridade. Publicou o livro “A encruzilhada da nanotecnologia – inovação, tecnologia e riscos” (Vieira & Lent, 2009) e foi curador da exposição “Tão longe, tão perto – as telecomunicações e a sociedade”, no Museu de Arte Brasileira – FAAP, São Paulo (2010).

Os números da universidade

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Ilustração: Luppa SilvaHá poucas semanas foi lançada a última edição (2018) do Anuário Estatístico da Unicamp baseado nos dados de 2017. É um ritual de prestação de contas, que disponibiliza uma enorme quantidade de informações. Não estou certo se a compilação e publicação dessas informações estruturadas limitam-se a um fim em si mesmo, ou se o anuário é utilizado de uma forma ou de outra, se as versões impressas (até o ano passado) apenas descansam nas prateleiras, ou se baixam às mesas para eventuais consultas, como fonte de dados para relatórios ou matérias para a imprensa. Eu já utilizei edições passadas em apresentações de planejamento estratégico para mostrar referências para a Faculdade de Ciências Aplicadas. Agora, como só existe uma versão eletrônica, acompanhar o número de acessos poderia dar uma ideia de seu potencial uso.

O impressionante compêndio de dados, com suas 360 páginas, encaixa-se na categoria de artigos de dados [I], que têm exatamente na disponibilização de dados, para serem usados por outros pesquisadores, seu principal objetivo. É exatamente o caso do anuário: quem os compilou não tem condição de esmiuçá-los em todas as dimensões possíveis ou necessárias; assim, uma vez disponibilizados, outros podem debruçar-se sobre seus números.

Nesse sentido, como ainda não fiz uso de artigos de dados, propus-me um exercício com este “artigo” da casa. Não para auditar ou avaliar, mas para conhecer a Universidade. Para isso seria importante, como já defendi, fazer uma etnografia [II], mas construo a hipótese de que os números já podem nos dar boas pistas. E o recorte temático é, fazendo jus à “ciência assim assado”, a seção “produção científica”, que ocupa as páginas 145 a 156 do anuário. Primeira observação interessante é o que a comunidade acordou como produção científica: a diversidade impressiona, como a ilustração revela e já veremos como isso é relevante nos diferentes exemplos. Como é comum em diversas narrativas, inicio com uma visão diacrônica do todo e, para isso, escolhi apenas umas poucas categorias de produção: artigos em periódicos (com revisão por pares), livros, capítulos de livros, artigos em anais de conferências, resumos de trabalhos apresentados e comunicações orais [III]. A escolha é uma opção entre várias possíveis, reconheço, mas o leitor pode também fazer a sua, embora eu deva advertir que a coleta de dados, dependendo da versão do software Adobe disponível, é manual. Olhando o gráfico abaixo, duas coisas chamam a minha atenção: a produção da Unicamp já foi maior e se recupera lentamente após uma queda notável em 2013-2014. A segunda observação é que os artigos lideram o ranking de produções.

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Como a curva que representa o total embola as outras, vale olhar estas em separado. Comparando com o gráfico anterior, observa-se que apenas o número de artigos cresceu, 25% no período, e as outras produções mantiveram-se, digamos, em geral estáveis. A queda no total geral não se explica pela queda dos resumos, mas da soma na queda de outras categorias, muitas que não estão no gráfico. Uma pergunta importante seria: por que apenas o número de artigos aumenta e não o de outras produções? A minha resposta é apenas uma hipótese. Como os artigos são valorizados pelos rankings e como os rankings são, por sua vez, valorizados por quase todos, hábitos acadêmicos se modificam.

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Esse panorama geral não é, nem de longe, suficiente para entender o que se passa em uma universidade. É preciso ir um passo além e olhar suas partes. Como este texto é apenas uma coluna, e não uma dissertação, faço um novo recorte, em vez de olhar para as 24 unidades de ensino e pesquisa, escolho oito, tomando dois cuidados: unidades que representem as diferentes áreas do conhecimento e que tenham programas de pós-graduação com nota seis ou sete pela avaliação da CAPES. Dada a forte imbricação entre pesquisa e pós-graduação, é prudente comparar alhos com alhos. Com isso a escolha recaiu sobre os institutos de Computação (IC), Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), Física (IFGW), Matemática (IMECC) e Química (IQ) e as faculdades de Ciências Médicas (FCM), Engenharia de Alimentos (FEA) e Engenharia Elétrica (FEEC).

Observação metodológica: como não entendo bem o papel dos resumos, exclui os mesmos nos gráficos a seguir e, além disso, temos que confiar na coleta dos dados, que depende em última instância do que cada docente declara (e com que rapidez! Eu, por exemplo, não declaro muitas coisas, como os resumos. E demoro para atualizar o meu currículo!). Em época de indicadores, acredito, no entanto, que o interesse majoritário é de declarar tudo e rapidamente, assim o anuário se insinua como um bom retrato.

À primeira vista, a FCM e o IFCH são, de longe, os “mais produtivos”. No entanto, dividindo essa produção pelo número de docentes, o que me parece mais adequado, o quadro muda bastante e é o que se apresenta na figura logo abaixo e que será o mote de toda a discussão o que segue.

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Muitos aspectos chamam a atenção nessas barras e suas cores. Poderíamos pensar que as engenharias seriam parecidas, mas não são. Para a FECC e o IC, o quinhão que corresponde a artigos em anais de congresso representa a comissão de frente, o que lembra a discussão nos botequins acadêmicos sobre o que importa são os artigos e não os congressos. Depende da área do conhecimento e sua tradição. É no IFCH que a produção de capítulos de livros é mais expressiva, enquanto que para o IF só artigos em periódicos parecem ser relevantes. Por outro lado, numa ciência vizinha à Física, capítulos de livros também são importantes. E é notável o quanto as comunicações orais são predominantes para as humanidades. Assim, vamos por partes. A diversidade de produção foi sistematicamente contabilizada por Linda Butler para as universidades australianas. O título de seu artigo é sugestivo: “Avaliação das ciências da informação e computação: indo além dos periódicos” [IV]. A questão era, no início deste século e naquela ilha continental, a avaliação fortemente baseada em artigos indexados na base Web of Science [V], que funcionaria bem para as ciências naturais; mas e para as outras áreas? Como o acesso a este artigo não é totalmente livre, reproduzo uma tabela do mesmo.

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A pesquisadora delimita quatro grupos e observamos uma enorme diversidade na distribuição da produção científica entre as áreas. As bases com dados bibliométricos cobre apenas um pouco mais da metade da produção em matemática, um tanto além de apenas um terço em Engenharia (cuja produção em anais de conferência chegava a 45% do total), mas cai para um sexto em computação (dois terços da produção em anais). Observa-se também a importância da produção de capítulos de livros nas ciências sociais e humanas. Mas isso foi na virada do século e volta a pergunta: a pressão por artigos (contabilizados nos rankings de universidades) teria mudado esse quadro?

Porém o aspecto mais impressionante é a “tradição oral” na comunicação científica em ciências humanas, pelo menos na Unicamp. As humanidades falam para a sociedade mais que as outras áreas? [VI] O que membros de outras comunidades talvez não saibam é que uma comunicação oral corresponde à produção de um texto exclusivo, que é apresentado em um congresso ou simpósio. E não vira necessariamente em uma publicação em anais. Aprendi isso por constatação empírica, mas um subsídio publicado ajuda. Vasculhando o jardim dos caminhos que se bifurcam da internet, encontrei um artigo recente de Björn Hammarfelt e Gaby Haddow: “Medidas e valores conflitantes: como acadêmicos de humanidades na Austrália e na Suécia usam e reagem aos indicadores bibliométricos” [VII]. Coincidentemente, a Austrália aparece nesse estudo de caso e um dos dados obtidos por entrevistas é que no país da Oceania os acadêmicos nas diferentes áreas de humanidade hoje se preocupam bastante com as métricas da bibliometria, enquanto que na Suécia o ceticismo continua. Interessante é uma das conclusões, que transcrevo: “a tendência atual em direção à quantificação do desempenho em pesquisa, também conhecida como ‘cultura da métrica’, torna-se particularmente problemática nas humanidades, pois essas disciplinas têm tradicionalmente se assentado em ‘ordens de valor’ que não podem ser facilmente alinhadas com indicadores bibliométricos”

Mais um dedo de referências sobre o assunto, chamando a atenção sobre comunicações orais. Um estudo de Kaufmann e Katzler, mostra que, ainda em 2009 [VIII], apresentações orais eram consideradas muito importantes. Com base em respostas de questionários, pesquisadores em áreas transdisciplinares deram nota média 1,8 para artigos em periódicos e 1,69 para apresentações em conferências (a escala é: 1 para muito importante e 5 para sem importância).

Os dados do anuário permitem entender um pouco a diversidade de tradições acadêmicas dentro da Unicamp. A literatura científica sobre o tema sugere que essas tradições, ainda que locais, estão conectadas com o que acontece no mundo. Não seria esse o melhor indicador de internacionalização? O mais importante, no entanto, não são as alturas das barras nos gráficos acima, mas sim perceber e entender essa diversidade de culturas acadêmicas (e só estamos falando da pesquisa: ensino e extensão ficaram de fora desse texto, mas estão no anuário): temos uma multiversidade por aqui, como enunciada por Clark Kerr há mais de 50 anos [IX]. Segundo Kerr, a gestão dessa complexa cidade (analogia em contraposição à aldeia, que seria a universidade em séculos passados) precisa mediar esses múltiplos valores, interesses e resultados. O anuário estatístico abre portas para conhecer um pouco essa multiversidade, em vez de simplesmente contabilizá-la.

 


 

[I] https://www.unicamp.br/unicamp/ju/artigos/peter-schulz/e-no-entanto-se-modificam

[II] https://www.unicamp.br/unicamp/ju/artigos/peter-schulz/por-uma-etnografia-das-universidades

[III] Existe uma categoria importante pela qual tenho carinho especial, mas que não está incluída aqui: produções artísticas. Esse tipo de produção, no entanto, não seria utilizável na discussão ao longo do texto, como o leitor, a quem peço desculpas pela estreiteza do meu olhar, poderá verificar.

[IV] Linda Butler, Scientometrics, volume 74(1), 39-55, 2008. Não sei se o acesso é liberado a todos: https://link.springer.com/content/pdf/10.1007%2Fs11192-008-0102-7.pdf

[V] https://www.unicamp.br/unicamp/ju/artigos/peter-schulz/ciencia-e-mais-do-que-soma-de-seus-indicadores

[VI] Outras produções indicam pistas interessantes: o IFCH é líder em organização de eventos, bem como na realização de trabalhos técnicos. Na categoria palestras ministradas, a FCM é a mais produtiva.

[VII] B. Hmmarfelt e G. Haddow, “Conflicting Measures and Values: How Humanities Scholars in Australia and Sweden Use and React to Bibliometric Indicators”, JOURNAL OF THE ASSOCIATION FOR INFORMATION SCIENCE AND TECHNOLOGY, 69(7):924–935, 2018

[VIII] A. Kaufmann e A. Katzler, Differences in publication and dissemination practices between disciplinary and  transdisciplinary science and the consequences for research evaluation, Science and Public Policy, 36(3), April 2009, pages 215–227

[IX] https://www.unicamp.br/unicamp/ju/artigos/peter-schulz/essa-estranha-carreira-chamada-docencia-universitaria

 

 

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