Foto: Antoninho Perri

Peter Schulz foi professor do Instituto de Física "Gleb Wataghin" (IFGW) da Unicamp durante 20 anos. Atualmente é professor da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp, em Limeira. Além de artigos em periódicos especializados em Física e Cienciometria, dedica-se à divulgação científica e ao estudo de aspectos da interdisciplinaridade. Publicou o livro “A encruzilhada da nanotecnologia – inovação, tecnologia e riscos” (Vieira & Lent, 2009) e foi curador da exposição “Tão longe, tão perto – as telecomunicações e a sociedade”, no Museu de Arte Brasileira – FAAP, São Paulo (2010).

Pequeno passeio pela ciência, Brasil, século XIX

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É possível passear a partir de poucas informações sobre um lugar, que o instinto diz ser interessante. Chega-se ao destino e explora-se o entorno, olhando um mapa incompleto com poucos edifícios indicados, batendo à porta naqueles que despertam mais curiosidade ou perguntando aos habitantes locais sobre o que seria isso e aquilo. É como eu gosto de visitar territórios desconhecidos, deixando de lado os guias turísticos, que muitas vezes não concordam entre si nos rankings das atrações. Mais úteis seriam os guias especializados, mas a leitura prévia de todos dificultaria o que pretende ser apenas um passeio divagante, buscando inspiração para visitas posteriores mais atentas e detalhadas.

Essa aqui é uma deambulação assim pela ciência no Brasil no século XIX, que o instinto sussurra como instigante. O mapa é o registro de artigos científicos com endereços brasileiros indexados na base bibliográfica internacional Scopus[I], instrumento que tanto usamos para passear com segundas intenções pela ciência no século XXI. A partir desse mapa, para lá de incompleto, como veremos, bati à porta dos edifícios (artigos e seus autores), que despertaram maior curiosidade e as perguntas aos habitantes locais nesse passeio são substituídas pelos sucessivos cliques nos hiperlinks, que o emaranhado da internet permite. O passeio é despretensioso, por isso não consulto os guias turísticos especializados, que compõem, no caso, a extensa, mas talvez dispersa, bibliografia que temos sobre a história da ciência no Brasil. Cada parada nessa deambulação leva necessariamente a novos documentos e perguntas e a caminhada é acompanhada de anotações para inspirar visitas com maior rigor.

Uma busca por país e data, na tal base de dados bibliográficos mencionada, revela cerca de quatro dezenas de artigos científicos de autores com endereço no Brasil durante todo o século XIX. Seria aproximadamente um artigo ano sim, dois anos não. Muito pouco, comparado com os cerca de 90 mil somente de 2020, mas não inexistente e não podemos pôr a mão no fogo nesse levantamento incompleto, pois mesmo a França aparece lá apenas com uma dúzia de artigos por ano pelos idos da década de 1870. Mas os números não importam tanto quanto as histórias que eles podem revelar. Comecemos com o autor mais prolífico nessa lista. Quem seria T. Peckolt com sete artigos publicados no “Archiv der Pharmazie” (Arquivo de Farmácia)? Theodor Peckolt, nascido na Alemanha em 1822 e falecido no Rio de Janeiro em 1912, foi um farmacêutico, botânico e naturalista alemão, que veio ao Brasil em 1847. Excursionou pelo país, mas abriu também uma farmácia, depois de passar pelo exame na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Entre outras coisas, foi chefe do laboratório de química do Museu imperial (hoje o Museu Nacional). Um de seus artigos em alemão é sobre o abacate e suas alegadas propriedades farmacêuticas, que ele finaliza assim: “pela minha experiência não posso confirmar essas propriedades, mas dou a essas bonitas árvores o merecido certificado de provedora de um alimento nutritivo e delicado”. O início e fim do artigo de 1871 estão à esquerda da figura abaixo. Observa-se que não há endereço de uma instituição de pesquisa ou país, apenas a cidade, Rio de Janeiro, que a base de dados associou corretamente ao Brasil.

Trechos de dois artigos de Theodor Peckholt localizados na base bibliográfica Scopus com os respectivos endereços do autor: Rio de Janeiro e Cantagalo
Trechos de dois artigos de Theodor Peckholt localizados na base bibliográfica Scopus com os respectivos endereços do autor: Rio de Janeiro e Cantagalo

Um dos hiperlinks sobre Peckolt afirmava que ele era um autor prolífico, mas vivendo a maior parte do tempo no Brasil, onde estaria sua produção, já que sete artigos ao longo de 65 anos por aqui não caracterizam exatamente uma produção prolífica? Parte poderia não estar indexada na base de dados pesquisada, mas ao buscar apenas pelo nome do cientista, sem determinar o país, encontra-se um total de 26 artigos publicados no “Archiv der Pharmazie” depois de sua vinda ao Brasil! Indo atrás de um deles, publicado em 1858, cujo início aparece na figura acima à direita, observa-se o endereço: Cantagalo (onde ele morou por um bom tempo). É compreensível que os algoritmos da base de dados têm suas limitações para associar essa cidade ao Brasil. Ou seja, à busca rápida inicial da produção científica no Brasil no século XIX podemos possivelmente somar mais duas dezenas de artigos. Um detalhe: o artigo de 1871 ele assina como Dr. Peckolt e o de 1858 sem esse título, já que ele obteve o doutorado honoris causa entre as duas datas, em 1865.

O exemplo do farmacêutico e botânico alemão ilustra um problema de indexação de artigos, que, na verdade, existe ainda para artigos deste século. Um outro problema é que nem tudo é catalogado nessas bases de dados, ainda mais o que foi publicado no século XIX, mostrando como o mapa desse passeio é incompleto mesmo. Uma outra pista disso aparece justamente em um dos artigos, que sim aparecem no mapa, isto é, na lista dos 40. É o artigo do Dr. José Francisco da Silva Lima (1826-1910), português de Vilarinho, que veio ao Brasil aos 14 anos de idade e formou-se médico na Faculdade de Medicina da Bahia. Vejamos o artigo, cuja primeira página é reproduzida na figura abaixo à esquerda, publicado em 1870 no “Archiv für Dermatologie und Syphilis”. O artigo é a descrição pioneira no mundo de uma doença nomeada no título: Ainhum. Observa-se na primeira página desse artigo o endereço da instituição do cientista e o estado (província na época), Bahia, que os algoritmos associaram corretamente ao Brasil. O que também chama a atenção é que é uma tradução para o alemão de um artigo em português, publicado em 1867 na “Gazeta Médica de Lisboa”. Graças, portanto, à tradução publicada em uma revista catalogada, Silva Lima aparece uma vez nessa base de dados, que não tem a Gazeta em seu catálogo. Quantos artigos teriam sido publicados ali? Um outro link[II] revela que o médico português, naturalizado brasileiro em 1862, foi um dos fundadores e editor de outra gazeta, a “Gazeta Médica da Bahia”[III], em 1866, onde ele publicou mais de 20 trabalhos (parte de uma nota sua está reproduzida à direita da figura abaixo) e apenas alguns deles também publicados em outros países, como o único pescado pela base Scopus no “Arquivo de dermatologia e sífilis”.

Trabalhos de José Francisco da Silva Lima: à esquerda, um artigo traduzido para o alemão do original em português e,  à direita, uma nota do mesmo autor no periódico baiano “Gazeta Médica da Bahia”.
Trabalhos de José Francisco da Silva Lima: à esquerda, um artigo traduzido para o alemão do original em português e,  à direita, uma nota do mesmo autor no periódico baiano “Gazeta Médica da Bahia”.

O passeio se desvia, com o achado da gazeta baiana, para uma pergunta: quais eram os periódicos científicos brasileiros no século XIX? A página “Periódicos científicos brasileiros no século XIX” do portal Brasiliana da Fiocruz[IV]> não menciona a publicação da Bahia, mas sim a “Revista do Observatório”, lançada em 1886 e considerada por algumas fontes como o primeiro periódico científico do Brasil. Enfim, a caminhada leva a desencontros de informações, melhor voltar ao roteiro original, aproveitando a deixa do Observatório, que é o Observatório Nacional, na época chamado de Imperial, importante instituição de pesquisa voltada à Astronomia, tanto hoje, quanto já naqueles tempos[V]. Afinal, depois de Theodor Peckolt, os mais frequentes autores no inventário da Scopus são Emmanuel Liais e Luis Cruls, que foram astrônomos do Observatório Imperial. Liais (1826-1900) era francês, cientista amador, mas que acabou sendo contratado pelo Observatório de Paris e veio para o Brasil em 1858 para observar um eclipse solar, ficando por aqui 25 anos. Tornou-se diretor do nosso observatório em 1871, transformando o que era principalmente uma escola de astronomia para militares em uma instituição de pesquisa. Caíra nas graças do nosso imperador pela sua atuação como diretor do serviço de levantamento cartográfico da costa brasileira. Esse é justamente o que aparece no título de alguns de seus artigos publicados e registrados na base de dados que guia esse percurso, como o ilustrado à esquerda na figura abaixo, “Escrito do Senhor Liais, diretor do levantamento costeiro do Império do Brasil”, publicado no “Astronomische Nachrichten” em 1861: artigo com título alemão e escrito em francês no periódico alemão. O artigo trata da observação de um grande cometa por nossas bandas, mas que foi observado em outros lugares também: era o famoso “Cometa III” de 1860. Na mesma época, no entanto, foi o único a observar um outro cometa, o “Olinda”, o primeiro a ser descoberto a partir de observação realizadas no Brasil. Essa descoberta também foi publicada naquele mesmo periódico alemão, mas não consta do nosso inventário como sendo do Brasil. Na figura abaixo, à direita, vemos o porquê. A referência ao Brasil aparece apenas no texto, que é assinado por Liais, mas o endereço do autor é Olinda, que, como Cantagalo, os algoritmos não reconhecem como brasileira. Dos 11 artigos de Liais feitos aqui, apenas seis são associados ao Brasil, os outros constam como endereço indeterminado. Era assim naquela época em que a ciência se profissionalizava e os endereços de artigos ainda não eram sistematizados em favor dos chamados metadados[VI]

Notas de observações astronômicas de Emmanuel Liais publicadas no periódico alemão “Astronomische Nachrichten”: à esquerda, nota sobre a observação de um cometa visto em todo e, à direita, nota relatando a descoberta de um cometa, o “Olinda”.
Notas de observações astronômicas de Emmanuel Liais publicadas no periódico alemão “Astronomische Nachrichten”: à esquerda, nota sobre a observação de um cometa visto em todo e, à direita, nota relatando a descoberta de um cometa, o “Olinda”.

Emmanuel Liais acabou voltando para a França em 1881, após desentendimentos como colegas brasileiros do Observatório Imperial. Na direção da instituição (bem antes da tal briga, diga-se) foi seguido por outro astrônomo europeu, o belga Louis (Luís) Cruls (1848-1908), que veio para cá apenas por curiosidade em 1874, mas aqui ficou pelo resto da vida. A mera curiosidade transformou-se em projeto de permanência devido a Joaquim Nabuco, colega de viagem e que logo viraram amigos de confidências mútuas. Cruls foi um astrônomo de renome e duas crateras, uma na Lua e outra em Marte, foram batizadas com seu nome. Descobriu também o seu cometa e chefiou expedições e comissões, como a que delineou, em 1892, o “quadrilátero Cruls”, onde mais de 60 anos depois foi construída Brasília. Na lista que me guia, Cruls aparece com cinco artigos, mas, novamente, sua produção foi bem mais intensa. Incluo aqui a ilustração de uma nota sua na Revista do Observatório[VII], criada por ele, fazendo referência a um trabalho apresentado na Academia de Ciências de Paris. Essa nota sugere a abrangência dos interesses e preocupações dos cientistas da época.

Página inicial de uma edição do periódico científico brasileiro “Revista do Observatório” com uma nota do seu criador, Luis Cruls.
Página inicial de uma edição do periódico científico brasileiro “Revista do Observatório” com uma nota do seu criador, Luis Cruls.

Emmanuel Liais, que também tem uma cratera em Marte com seu nome, ficou 25 anos por aqui, voltou para a França e lá virou político. Cruls, por outro lado, apesar de várias viagens para a Europa (para apresentar pesquisas), sempre voltava ao Brasil. De sua última viagem, em 1908, voltou embalsamado, como descrito na sua incrível biografia[VIII], da qual extraio o excerto abaixo:

“O amor de Cruls pelo Brasil era tão grande que, em sua viagem à Europa, permanecia no convés do navio a observar o céu todas as noites. Na noite em que contemplou o Cruzeiro do Sul desaparecer no horizonte oceânico, ao voltar para a cabine, disse para sua esposa: “Tudo acabou!”. Era a premonição de que não mais voltaria ao Brasil.

De fato, em 21 de junho de 1908, às 22 horas, Luís Cruls faleceu em sua residência na rua Petit Champs, 48, Paris, de onde veio embalsamado para ser sepultado no canteiro 1135 do cemitério São João Batista, no dia 10 de agosto”.

As listas de artigos, frutos de buscas por essas bases bibliográficas, justapõe histórias distintas, que podem ser perseguidas pelas conexões aos artigos, que levam a novas palavras-chave para explorar essas histórias. Os nomes de Theodor Peckolt, Emmanuel Liais e Luís Cruls levam a um abundante número de referências para novos passeios, mas e se um nome não aparece mais em nenhum outro lugar, apenas nesse inventário? Entre os artigos da lista aparece um, publicado no importante periódico científico alemão “Annalen der Physik”, em 1872, por um autor sediado no Brasil, ou melhor, na Bahia, que os algoritmos reconheceram como sendo do Brasil. O título diz “O crepúsculo na costa oriental da América do Sul”, mas quem é Heinrich Burkhart-Jezler, que relata com precisão horários e coordenadas de suas observações ao longo da costa brasileira e descreve poeticamente como eram os arrebóis?

Início de um artigo científico escrito no Brasil no século XIX possivelmente por um imigrante sobre quem pouco mais se sabe.
Início de um artigo científico escrito no Brasil no século XIX possivelmente por um imigrante sobre quem pouco mais se sabe.

Nesse caso parece que temos uma contribuição à ciência no Brasil de alguém esquecido pela história. Pelo Google, Heinrich Burkhart Jezler leva a apenas um registro: a imigração em 1854 de um professor de matemática vindo da Alemanha com um L no lugar do J no sobrenome: Heinrich Burkhart Lezler. Essa perambulação possibilitou, portanto, resgatar um nome, que mal consta no emaranhado da Web, mas que veio para cá e escreveu um artigo científico de leitura deliciosa.

O passeio não termina aqui, segue na próxima coluna, junto com algumas conclusões possíveis sobre o que o século retrasado pode dizer ao nosso.

 

Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.


[I] Infelizmente só é acessível para instituições assinantes:

 https://www.elsevier.com/pt-br/solutions/scopus

[II]http://www.dichistoriasaude.coc.fiocruz.br/iah/pt/verbetes/limajossil.htm

[III] As primeiras edições estão digitalizadas e podem ser acessadas livremente: http://www.gmbahia.ufba.br/index.php/gmbahia/issue/archive

[IV]http://www.fiocruz.br/brasiliana/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=77&sid=14

[V]https://revistapesquisa.fapesp.br/ceu-de-historias/

[VI]https://www.unicamp.br/unicamp/ju/artigos/peter-schulz/qual-e-cara-da-ciencia

[VII] O periódico já mencionado mais acima no texto, também está digitalizada e disponível para outros passeios pela ciência brasileira na época: http://docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=obnacional&pagfis=920

[VIII]Brasiliana Eletrônica UFRJ | Autores (brasilianadigital.com.br)

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