Foto: Antoninho Perri

Peter Schulz foi professor do Instituto de Física "Gleb Wataghin" (IFGW) da Unicamp durante 20 anos. Atualmente é professor da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp, em Limeira. Além de artigos em periódicos especializados em Física e Cienciometria, dedica-se à divulgação científica e ao estudo de aspectos da interdisciplinaridade. Publicou o livro “A encruzilhada da nanotecnologia – inovação, tecnologia e riscos” (Vieira & Lent, 2009) e foi curador da exposição “Tão longe, tão perto – as telecomunicações e a sociedade”, no Museu de Arte Brasileira – FAAP, São Paulo (2010).

Popularização da ciência, dicas de uma nota curta

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A pesquisa bibliográfica é uma peça essencial na ciência. A busca por referências em acervos de bibliotecas ou plataformas digitais revela o que já foi dito e por quem foi dito sobre o tema da pesquisa. Aponta o que é ou foi relevante, ou o que deveria ser, segundo o pesquisador que faz a busca. Essa pesquisa é necessariamente sistemática e com método, afinal procuram-se aporte para e suporte e argumentos de sustentação sobre o que se quer dizer no novo projeto. Outra possibilidade é engavetar a ideia, pois o que o pesquisador queria descobrir, interpretar ou comentar já foi descoberto, interpretado (da mesma maneira) ou amplamente comentado por outros.

Por outro lado, buscas assistemáticas, motivadas por uma curiosidade desinteressada, permitem achados que recompensam essa curiosidade. É o caso de uma nota curta publicada na revista Nature, na edição de 3 de abril de 1937, ou seja, há 85 anos, quase uma efeméride. Nota não assinada e que seria de colunismo social acadêmico (sobre o recebimento de um prêmio ou distinção) não fosse a constatação de ser de fato uma resenha do discurso de agradecimento do homenageado. Poderia até ser o ponto de partida de uma pesquisa, mas não encontrei o discurso em si para confrontá-lo com a resenha ou com outros autores e o contexto da época.

Um artigo de opinião, no entanto, permite certas licenças, desde que feitas também com o devido cuidado. Um deles é identificar e conhecer um pouco o autor do discurso, tarefa que não foi difícil. Mas a graça está em comparar o que foi dito há tanto tempo com o que ainda se diz. O título da nota é “Popularização da ciência”, expressão que se sobrepõe a outras análogas, como, por exemplo, divulgação científica. Primeiro a nota, que traduzi e reproduzo abaixo, depois um pouco do contexto. A nota, como já disse, é curta, mas para os dias de hoje considerei importante destacar algumas frases. Vamos então à rápida nota, mas longa citação direta.

Ao abordar o tema da popularização da ciência, durante discurso de agradecimento a uma distinção do American Institute, Nova Iorque, em 4 de fevereiro [1937], concedida ‘por interpretar para o público da nação o rápido progresso da ciência da qual depende a civilização moderna e pela disseminação organizada de descobertas científicas como notícias’, o Sr. Watson Davis disse que a comunicação e interpretação da ciência falharam em seu propósito se não trouxeram à tona uma apreciação e utilização do método científico na vida cotidiana. Isso ele acredita que é mais bem alcançado ao dar à massa da população, por meio de relatos precisos e interessantes dos sucessos e fracassos da ciência, algum entendimento sobre a essência da ciência que pode levá-la a ser aplicada mais amplamente em nosso dia a dia, nossas relações humanas, nos negócios e governo. Muitos dos ideais que nós mais estimamos, como a liberdade, oportunidade, a busca da felicidade, autonomia, democracia, foram alcançados com a utilização do método científico e os erros da democracia foram mais bem corrigidos pela ciência.

“Essa crença, de que a única maneira de tornar a democracia segura em si foi torná-la mais racional e, assim, mais científica, inspirou os fundadores do Science Service, E. W. Scripps e o Dr. W. E. Ritter. Muitas oportunidades de tal serviço foram até então usadas apenas imperfeitamente. Por exemplo, os aspectos científicos das recentes enchentes desastrosas receberam pouca visibilidade e as possibilidades de livros e revistas como mídia ainda têm que ser plenamente desenvolvidas. Nesse trabalho, a qualidade é de todo importante e o primeiro objetivo é exatamente o oposto da propaganda. É para apresentar fatos de uma forma legível e interessante, sobre os quais o leitor poderia basear suas próprias opiniões em questões de política, sociologia ou seu dever social. Ao relembrar essa declaração dos fundadores do Science Service em relação aos seus objetivos, o Sr. Watson Davis enfatiza que nem mesmo à ciência deve ser permitido se tornar uma ditadora. Ela deve ser tomada como exemplo de racionalidade, confiante que o processo da democracia, guiado pelo método científico e a razão, daria resultados efetivos.”

Foto de um recorte de uma página de revista em preto e branco.

Poderia destacar outras frases, mas aí seria preciso tomar mais cuidado ainda com anacronismos sobre o entendimento do papel social da ciência em diferentes tempos e lugares. Mas os destaques em negrito, esquecendo esses possíveis anacronismos, remetem diretamente às respostas em meio ao enfrentamento do negacionismo científico e os ataques à ciência. O Sr. Davis já alertava que, se só falarmos dos resultados e não do método científico na vida cotidiana, falhamos. Algumas pessoas continuaram alertando sobre isso, aparentemente com mais fracasso do que sucesso. Além disso, discutir os fracassos é tão importante quanto descrever os sucessos. Décadas depois, os Estudos Sociais de Ciência e Tecnologia abraçaram a causa. Segue a nota discorrendo sobre a relevância da ciência no dia a dia, incluindo as relações humanas. As polarizações de hoje que o digam.

Davis parece atingir em cheio o problema da gangorra entre o que deveria ser a comunicação de ciência e a comunicação estratégica: o objetivo desse trabalho (popularização da ciência) é o oposto da propaganda (ou relações públicas). Merece ainda um último destaque, que antecipa críticas ao chamado modelo do déficit de comunicação científica, ainda largamente praticado, diga-se de passagem, nos dias de hoje. Basicamente esse modelo pressupõe que a autoridade simplesmente diga o que é certo ou errado esperando que o público receba passivamente as informações. Davis parece propor algo mais participativo: apresentados os fatos, cabe ao leitor usá-los para embasar suas próprias opiniões em questões de política, sociologia ou dever social. Apresentada a nota-resenha comentada, resta a pergunta: quem foi Watson Davis?

Watson Davis (1896-1967) foi o fundador do American Documentation Institute no ano do discurso descrito na nota comentada acima. O Instituto tornou-se, um ano após a morte de Davis, o Association for Information Science and Technology, conhecido de todos os praticantes de cientometria atualmente. Foi editor do Science News Letters do Science Service (serviço da ciência), voltado para a disseminação da ciência, criado pelo jornalista Edward Scripps e o zoologista William Ritter, mencionados na nota. Junto ao Science Service, Davis criou o movimento de clubes de ciência nos Estados Unidos, que chegou a abranger 1 milhão de jovens em idade escolar país afora.

No mesmo ano da publicação da nota na Nature, Watson, em outra palestra, promoveu o uso de microfilmes como ferramenta de disseminação e troca de conhecimento. Escreveu um artigo sobre isso na revista que editava (Science News Letters, edição de 20 de março de 1937, páginas 179 e 180). O artigo começa com uma profecia: “Um novo modo de duplicar registros, manuscritos, livros e ilustrações está sendo desenvolvido e cientistas predizem que isso está destinado a desempenhar um papel importante na pesquisa científica do futuro”. Era um projeto do Science Service. Ele termina o artigo prevendo a chegada de microfilmes menores do que os disponíveis na época, de modo que “bibliotecas do futuro ocupariam o espaço dos atuais [1937, lembrem-se] arquivos de fichas catalográficas”. Era a visão analógica das plataformas digitais de hoje.

O microfilme não cumpriu a profecia, mas a ideia era um imperativo cultural à espera da tecnologia que seria viabilizada décadas depois. Davis falava em duplicação do impresso para ampliar a distribuição da informação. Não falava da eliminação do impresso. Ele ficaria satisfeito com a duplicação, agora ao contrário, daquilo que só existia digitalmente e voltou ao impresso, como o belo Jornal da Unicamp.

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