A frase original é em inglês, "please be informed, there is a Santa Claus", pronunciada pelo astronauta James Lovell, da Apollo 8, que orbitou a Lua na noite de Natal de 1968, talvez a última efeméride de um ano dramático em todo o mundo. Lovell, Frank Borman e William Anders foram os primeiros humanos a verem o lado oculto da Lua no Natal de 50 anos atrás. A missão foi agendada para esse período, pois John Kennedy havia prometido em discurso proferido em 25 de maio de 1961 de que estadunidenses pousariam na Lua e voltariam sãos e salvos à Terra até o final daquela década. Faltava pouco mais de um ano e era preciso correr: a Apollo 11 cumpriu a promessa em julho de 1969, já na presidência de Richard Nixon, que sucedera Lyndon Johnson, que sucedera Kennedy. A Guerra Fria transformou uma promessa de governo em política de estado.
A descoberta de Papai Noel aparece de passagem em uma comunicação de controle de voo [I], momento de descontração (na verdade alívio) [II], que não gerou memes, pois na época esses ainda não existiam, mas gerou fake news, como não poderia deixar de ser. A frase (there is a Santa Claus) seria um código da NASA para anunciar a presença de naves alienígenas, segundo declaração bizarra de ex-funcionária da agência espacial americana [III]. Aviso aos leitores: Papai Noel não foi visto do outro lado da Lua. Nem discos voadores.
A anedota, agora histórica, é uma lembrança de que projetos nem sempre obedecem ao calendário de festas. Voltando à Terra, percebemos que muitos projetos de pesquisa nas universidades demoram dias, semanas ou meses. E não podem ser interrompidos durante o Natal. Assim, as pesquisas nas universidades precisam de plantonistas – docentes/pesquisadores/estudantes – como nos hospitais ou nas siderúrgicas, refinarias, etc. Caso contrário, o investimento e a descoberta vão por água abaixo. Relatos desses momentos são vários, e seleciono a crônica de Karen Weintraub: “Com todo mundo saindo de férias, agora é hora de fazer ciência” [IV].
Eu faço parte desse “todo mundo”, saio de férias na época de Natal, pois meus projetos podem ser “desligados” por alguns dias. Mas o que são férias de um docente universitário (pelo menos na versão pública dessa instituição)? É curioso, mas amigos e conhecidos de fora dos muros (no caso da minha universidade “muros” é uma figura de linguagem, pois eles inexistem) da universidade começam a me perguntar lá por meados de dezembro se eu já estou de férias. E eu respondo: docente tem 30 dias de férias como qualquer um com carteira assinada. Existe o recesso escolar, os queridos estudantes voltam (ou não, quando estão envolvidos em um daqueles plantões que mencionei acima) para casa. Se tem bolsa para desenvolver algum projeto de pesquisa, férias como as do chefe: 30 dias e a “folga” das aulas no resto do recesso é para isso que Weintraub intitula como “hora de fazer ciência”. Mesma coisa para os docentes, para os quais inclusive os 30 dias de férias também se “contaminam”: é hora de leitura daqueles livros selecionados para preparar as aulas do próximo ano, terminar relatórios, preparar projetos ou enviar artigos para congressos. As agendas de pesquisa mundo afora insistem em não obedecer ao calendário escolar brasileiro. Mas tudo isso vale a pena? Vale, pelo menos quando a ciência não é pequena e, se comecei a coluna com o Natal de 1968, retrocedo 30 anos [V].
Nas férias de Natal de 1938, a física austríaca Lise Meitner (1878-1978) recebeu a visita de seu sobrinho Otto Frisch (1904-1979), que trabalhava com Niels Bohr [VI]. Meitner era pesquisadora do Instituto Kaiser Wilhelm até julho daquele ano, quando foi obrigada a fugir de Berlim por sua ascendência judia. Encontrou abrigo no Instituto de Física da Academia de Ciências de Estocolmo e, durante um passeio com seu sobrinho pelos parques de lá, veio a ideia de que um núcleo de um átomo de urânio bombardeado por nêutrons na verdade se desintegraria em núcleos de massa menor, como uma gota de água dividindo-se em duas. Voltando para casa, fizeram os cálculos e Frisch voltou para Copenhagen após a ceia de Natal. Continuaram a trabalhar por telefone e em 16 de janeiro de 1939 enviaram o artigo “desintegração do urânio por nêutrons: um novo tipo de reação nuclear” para a revista Nature, que foi publicado em 11 de fevereiro. Neste artigo, a desintegração recebe o nome, no meio do texto e entre aspas, de “fissão” nuclear. Estava aberto o caminho para a bomba nuclear e sua versão controlada, os reatores nucleares. Foi o sobrinho que deu o nome de fissão, inspirado na Biologia, pois um processo de divisão celular atendia pelo nome de fissão binária.
O trabalho era revolucionário, mas foi o orientador de Lise, Otto Hahn (químico, 1879-1968), gestor e executor de um trabalho sistemático sobre o urânio sendo bombardeado por nêutrons e que levou, por fim, à fissão em laboratório, que acabou recebendo o prêmio Nobel (de Química) em 1944. Lise Meitner, que mereceria talvez o Nobel de Física, só foi parcialmente reconhecida pelo seu papel fundamental nessa história muito tempo depois. Antes daquele ano, em que o Brasil foi terceiro colocado na copa do mundo com Domingos da Guia e Leônidas da Silva, apenas uma mulher havia sido agraciada com o Nobel de Física: Marie Curie. A segunda, 25 anos depois da descoberta de Lise e Otto, foi Maria Goeppert-Mayer em 1963. A terceira só agora, em 2018, 80 anos depois daquele Natal em Estocolmo: a honraria coube à Donna Strickland.
A Física na retranca [VII]
O artigo (carta ao editor da Nature) de Meitner e Frisch tem uma página e é uma aula de Física, bem como de história e, por isso, ilustra a coluna (abaixo, a reprodução). Resumindo 25 anos da história que precede o Natal de 1938, voltamos ao átomo de Bohr [VI]: as perguntas não pararam, qual seria então a estrutura do núcleo atômico? Sim, porque composto de partículas carregadas positivamente (os tais prótons, com exceção do hidrogênio: um só próton e boa), como eles ficavam juntinhos, já que cargas de sinais iguais se repelem (e brutalmente no caso)? Tinha que ter outra coisa ali! O nêutron foi descoberto por fim em 1932 por James Chadwick (1891-1974). Em 1934 o irrequieto Enrico Fermi (1901-1954) pensou que ao jogar um nêutron sobre um átomo de urânio, aquele poderia se fundir a esse e criar um novo núcleo, um novo elemento, mais pesado que o mais pesado dos átomos encontrados na natureza (a coisa não seria tão simples assim, mas vamos ficar por isso mesmo). Esse é o início do primeiro parágrafo da carta ao editor de Lise e Otto.
Qual descoberta é relatada na carta? É a interpretação do experimento de Otto Hahn, relatada em carta pessoal a Meitner, sua antiga assistente, e que foi o assunto das conversas com seu sobrinho naquele Natal. Fermi estava errado: o nêutron divide o átomo de urânio em dois átomos mais leves, libera energia [VIII]e os novos átomos continuariam a se desintegrar em outros menores ainda. São os dois primeiros parágrafos da coluna à direita da carta da tia com seu sobrinho. Escapou uma coisa no trabalho: além de energia, a fissão deixa alguns nêutrons soltos, que vão desintegrar mais e mais átomos de urânio, liberando mais e mais energia. Se o processo for rápido, tem-se a bomba, se for controlado, as usinas de Angra dos Reis e suas similares. Essa “multiplicação de nêutrons” foi descoberta alguns meses mais tarde em 1939 e quem foi o líder do experimento que produziu a primeira reação nucelar em cadeia (em laboratório)? Sim, Enrico Fermi, que há muito havia reconhecido seu engano lá de 1934 [IX]. Aliás, foi outra pesquisadora a primeira a apontar esse erro: Ida Noddack.
E, por fim, o artigo em si, em particular o cabeçalho: “O editor não se responsabiliza pelas opiniões expressadas pelos correspondentes”. Eram cartas, assinadas no fim, como as “letters” de antigamente. E se o editor não se responsabiliza, era porque não havia revisão por pares. Mais abaixo: “notas sobre aspectos de algumas das cartas da semana encontram-se na página 247.” Eram nada mais que resumos das cartas. E ao final: “Correspondentes são convidados a anexar sumários similares às comunicações”. Na década de 1930 estava sendo inventado o abstract.
Abstract até que lembra um cartão: bom Natal a todos.
[I] https://www.youtube.com/watch?v=7o9uburlUL0
[II] Veja o próprio Jim Lovell explicando a frase. Curiosamente, Lovell foi, três anos depois, comandante da missão Apollo 13, ficando famoso por outra frase “Houston, we have a problem”.
[IV] https://www.statnews.com/2015/12/29/holidays-science-christmas/
[V] Um bom apanhado da história
[VI] https://www.unicamp.br/unicamp/ju/artigos/peter-schulz/vida-longa-para-o-atomo-de-bohr
[VII] Matéria subordinada a outra matéria ou à manchete da página.
[VIII] Esse trecho merece destaque, levemente editado; “essa quantidade de energia (liberada) pode ser de fato esperada pela diferença entre a massa do átomo de urânio e a da soma dos átomos mais leves resultantes”. Isso nada mais é do que E=mc2, já então domínio público, Einstein nem era mais citado por isso.
[IX] Fermi ganhou o Nobel de Física de 1938 em parte devido a esses trabalhos, que se revelaram errados. Honesto, comentou isso no discurso de recebimento da honraria. Mas atenção: foi genial, que o digam os que trabalham com a estatística de Fermi-Dirac e precisam saber onde se encontra a energia de Fermi.