Foto: Antoninho Perri

Peter Schulz foi professor do Instituto de Física "Gleb Wataghin" (IFGW) da Unicamp durante 20 anos. Atualmente é professor da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp, em Limeira. Além de artigos em periódicos especializados em Física e Cienciometria, dedica-se à divulgação científica e ao estudo de aspectos da interdisciplinaridade. Publicou o livro “A encruzilhada da nanotecnologia – inovação, tecnologia e riscos” (Vieira & Lent, 2009) e foi curador da exposição “Tão longe, tão perto – as telecomunicações e a sociedade”, no Museu de Arte Brasileira – FAAP, São Paulo (2010).

A quarta e a quinta missões da universidade

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Ilustração: Luppa SilvaComo abrir mais caminhos para o inusitado e ao mesmo tempo provocar os enfrentamentos necessários ao abordá-lo? A universidade, durante séculos dedicada ao ensino, mais recentemente passou a ter mandatos para a pesquisa e extensão. Existe uma expectativa ideal, que no Brasil se traduz em um princípio constitucional de indissociabilidade ensino-pesquisa-extensão, mas no mundo real parece mais um mantra, que com a repetição constante faz-nos crer que o ideal se cumpre.  A pergunta do início do parágrafo permanece e possíveis respostas talvez surjam relembrando textos de Ernest Boyer (1928-1995), nos quais tropecei há alguns anos por acaso. Tropeço auspicioso, pois Boyer é um dos grandes pensadores sobre universidade do século XX.

São dois textos do final do século passado. O primeiro é o livro Scholarship reconsidered – priorities of the professoriate [1]: Scholarship revisitada – prioridades do corpo docente, traduzindo livremente tudo, menos a palavra que normalmente associamos a bolsa de estudos, mas que significa também erudição, trabalho acadêmico, sabedoria. Nenhuma dessas traduções é usualmente utilizada nas discussões em português sobre universidade no sentido dado por Boyer. Fica então scholarship mesmo. O segundo capítulo do livro é intitulado Enlarging the perspective (ampliando a perspectiva) e nele scholarship pode ser também traduzido por “missão”. E assim continuo. Boyer considera as três missões tradicionais da universidade, mas rebatizando-as como ensino, descoberta e aplicação. Ele observa que a atividade da descoberta transformou-se na missão prioritária, sendo que as outras derivariam dela, não sendo consideradas como parte da descoberta. Muitos pensam assim ainda hoje. Porém, adverte que o conhecimento não é algo linear, descobre-se, ensina-se e depois se aplica. Torna-se necessário (e urgente) encarar as missões de uma forma diferente e mais abrangente. Para outros tantos, hoje isso já surge como senso comum. O que é bacana em Boyer e merece ser revisitado é sua proposta de uma quarta scholarship/missão para ampliar os horizontes: a integração.

Boyer começa o capítulo descrevendo a missão da descoberta, que não deveria contribuir somente para aumentar o acervo de conhecimento humano, mas para o próprio ambiente intelectual de uma universidade. “Não apenas os resultados (artigos, etc), mas o processo e especialmente a paixão” importam. E isso estaria diretamente ligado à integração, significando “estabelecer conexões entre as disciplinas, posicionando as especialidades em um contexto mais amplo, iluminando os dados de forma reveladora, frequentemente pensando também nos não especialistas.” Para a pesquisa a pergunta seria: “o que deve ser conhecido, o que falta descobrir?” Para a integração a questão seria: “O que significam as descobertas?” Perguntas ligadas à análise crítica e à interpretação. O leitor já deve ter percebido que isso é pauta da interdisciplinaridade à qual Boyer alude várias vezes. Mas ele propõe ir além, tornando-a uma missão em si, citando o antropólogo Clifford Geertz, “o que estamos vendo não é mais um redesenho do mapa cultural... mas uma alteração nos princípios desse mapeamento”. No nosso contexto, poderia ser uma sutil modificação na grafia do princípio constitucional para indissociabilidade-ensino-pesquisa-extensão.

Havia, no entanto, uma urgência ainda maior. O relatório “Scholarship...” foi publicado em 1990. Em 1996 foi publicado postumamente o artigo Scholarship of engagement [2], nossa quinta missão. Engajamento lembra, é claro, aplicação/extensão, mas o autor pensava em algo mais amplo, apontando vários sintomas, que talvez – foram pensados em outro lugar, outro tempo – apareçam aqui e agora.  Pela brevidade do espaço, telegrafo apenas alguns deles. Primeiro é a percepção de Boyer de que o intelectual acadêmico passou a ser cada vez mais o recipiente de um cargo na universidade escrevendo em um determinado estilo voltado apenas aos seus pares, participando cada vez menos de um discurso público mais amplo. Com isso a contribuição da universidade estaria se afastando das grandes questões da sociedade.

Em outro trecho é lembrada uma pergunta ao físico Viktor Weisskopf sobre o que lhe dava esperança em tempos difíceis. A resposta fora “Mozart e a mecânica quântica”. E Boyer daí pergunta: “mas onde, no nosso mundo acadêmico fragmentado, docentes fazem conexões desse tipo?”. No final do artigo manifesta a convicção crescente da necessidade de um maior sentido para as nossas missões para, citando novamente Geertz, contribuir ao “universo do discurso humano” e melhorar a qualidade de vida para todos. Pronto, Boyer reconsidered, mas  exemplos desse engajamento...na próxima coluna.
 

 


 

[1] É só por assim no Google para acessar o texto

[2] Idem nota 1.

 

Com o celular na mão esquerda e o mouse na direita.

Um breve tutorial (bem doméstico...) a propósito da sinuca de Einstein e o lado escuro do inusitado.

Leia também: A sinuca de Einstein

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