Foto: Antoninho Perri

Peter Schulz foi professor do Instituto de Física "Gleb Wataghin" (IFGW) da Unicamp durante 20 anos. Atualmente é professor da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp, em Limeira. Além de artigos em periódicos especializados em Física e Cienciometria, dedica-se à divulgação científica e ao estudo de aspectos da interdisciplinaridade. Publicou o livro “A encruzilhada da nanotecnologia – inovação, tecnologia e riscos” (Vieira & Lent, 2009) e foi curador da exposição “Tão longe, tão perto – as telecomunicações e a sociedade”, no Museu de Arte Brasileira – FAAP, São Paulo (2010).

Sebos na nuvem

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Foto: ReproduçãoEm tardes muito chuvosas ou de prostração motora, a internet pode ser um sucedâneo dos sebos. A busca aleatória por sítios pode ser frustrante como um passeio por uma loja de departamentos sem um objetivo claro, como o de comprar um par de meias. Sebos, para quem tem o hábito de visitá-los, têm sempre uma espécie de curadoria. Assim, volta e meia passeio pelos sítios-sebos, que compartilho aqui, lembrando que, nas ambiguidades da economia da internet, muitas vezes saímos desses sebos com algo, sem pagar nada por isso.

Começo pelo www.gutenberg.org/, que oferece mais de 54 mil livros com livre acesso, todos de domínio público, ou seja, não se encontram ali as obras mais recentes. O projeto Gutenberg é mantido por doações e alguns indicadores são interessantes: o português (incluindo originais em outras línguas traduzidos para a língua de Vieira) está entre as dezesseis línguas que contam com pelo menos 50 livros no acervo. Há preciosidades como a Paródia ao primeiro canto dos Lusíadas de Camões por quatro estudantes de Évora em 1589, cujas cópias passaram de mão em mão durante quase três séculos, sendo publicada finalmente no Porto em 1845 e, em Lisboa, em 1880. A edição no projeto é a de Lisboa. Entre essas dezesseis línguas mais frequentes, encontram-se, além do grego e latim, obras em tagalog, também conhecido como filipino. Como nada parece escapar de rankings hoje em dia, o Gutenberg traz a lista dos “top 100” baixados no dia anterior. A lista que consulto (refere-se a 3 de novembro) é encabeçada por Jane Austen, com o seu Orgulho e Preconceito, seguida por Arnold Bennet, um dos pais da autoajuda, com o Como viver a vida 24 horas por dia, de 1910. A tradução para o inglês de A Metamorfose, de Kafka, aparece em oitavo lugar e o Manifesto Comunista de Marx e Engels aparece na posição 98.

Aos que, além de livros, gostam de cinema, rádio, TV, e assim por diante, não deixem de visitar o “arquivo internet”. Aqui eu me divirto com o Old times radio de programas de rádio antigo, muitos deliciosos, embora a maioria em inglês. Como exemplos, destaco Uma noite com Groucho Marx ou as novelas de rádio com o detetive Philip Marlowe, baseado nas histórias de Raymond Chandler, um dos pais do Romance Noir.

Foto: Reprodução
Museu de Tecnologia Jurássica: ciência ou pseudociência?

Falando em “tempos antigos”, um dos sítios mais curiosos que eu já visitei, mas não é bem um sebo, é “O museu de Tecnologia Jurássica”, mesmo nome de um museu em tijolo e cimento em Los Angeles. O museu se dedica a apresentar um “repositório especializado de relíquias e artefatos do baixo Jurássico, com especial ênfase naqueles que demonstram qualidades tecnológicas não usuais e curiosas”. É como o sítio se apresenta. Parece ter vindo dos anos iniciais da internet – sendo jurássico, não poderia ser de outra forma. O museu parece muito estranho, mas é fascinante e difícil saber se o que se expõe ali é fato ou uma invenção de Jorge Luis Borges. É ciência ou pseudociência? O título de uma coluna de Sarah Zabroskyi é certeiro: “um museu orgulhoso por desafiar a compreensão” [I]

Indo ao acervo exposto no sítio, detenho-me na exposição sobre Athanasius Kircher (1602-1680) um acadêmico jesuíta e polímata alemão, comparado às vezes a Leonardo da Vinci pela sua enorme gama de interesses. O meu interesse por esse personagem da história veio pelos sistemas de comunicação imaginado por ele em pleno século XVII: trombetas falantes e amplificadores para transmitir, por exemplo, o som de uma sala fechada para um ambiente externo, descritas em seu Phonurgia Nova. Não deixa de ser uma tentativa jurássica de broadcasting. A exposição “O mundo é conectado por nós secretos”, dedicada a Kircher, aborda a Phonurgia, mas o que mais me chama a atenção é seu Mundus subterraneus na qual o jesuíta, que também se interessava por geologia, imaginava nosso planeta completamente conectado por uma rede de canais vulcânicos. Kircher lançou a ideia que inspirou Julio Verne séculos depois, mas a imagem desses canais talvez seja a primeira representação de uma rede. Como uma internet jurássica. Ao lado de Kircher está o click para os micromosaicos de Henry Dalton, um inglês nascido em 1829 e apaixonado por microscopia. Ele teria criado os micromosaicos com minúsculos pedaços de asas de borboleta, que no museu jurássico podem ser apreciados pelos microscópios distribuídos por uma sala. Existe uma literatura sobre micromosaicos e o mais famoso micromosaísta teria sido Fortunato Pio Castellani (1795-1865); mas quem foi Henry Dalton? Refiz a pesquisa que Sarah Zabroskyi relata em sua coluna e confirmo sua constatação de três anos atrás: não existem referências sobre Henry Dalton além da do Museu de Tecnologia Jurássica. Teria mesmo existido? Lembra muito o conto Tlön, Uqbar, Orbis Tertius, de Borges, onde a única referência ao mundo imaginário do título encontrava-se em uma versão apócrifa de um volume da Enciclopédia Britânica.

Segundo o fundador do museu, David Wilson, “nós sentimos que a confusão pode ser um estado mental muito criativo”. Essa declaração foi feita a Lawrence Weschler, que escreveu o livro Mr. Wilson´s Cabinet of Wonder, a partir de 21 dólares na amazon.com, que também vende livros usados pela internet, mas como sebo deixa a desejar.

 


[I] http://blogs.getty.edu/iris/the-museum-that-proudly-defies-understanding/

 

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