Em tempos de ataques à ciência é bom lembrar um pouco de nossa Astronomia e sua divulgação.
Cartas são documentos históricos de primeira mão e seguir suas pistas e, eventualmente, comprová-las faz parte do que chamamos de História. Como fazer isso é descrito em vários artigos e sugiro um sobre a História da Ciência[i]. Este texto não chega a tanto, longe disso, mas as pistas encontradas valem a pena ser relatadas. A carta em questão chegou às minhas mãos por meio de uma amiga, a professora Camila Helena Praxedes, que desconfiava do valor e convidou-me a dar uma olhada. Descobri pouco sobre ela, mas as hipóteses imaginadas levaram-me a outras histórias. Quem é o autor da carta? É certamente um rascunho. Seria um esboço de uma intenção de pesquisa ou uma tradução de um relatório? Nesses casos, o nome no cabeçalho é o de a quem deveria ser endereçada a ideia ou é o autor do relato traduzido? Quem sabe algum leitor desta coluna possa avançar em direção a alguma resposta. Afinal, ciência é assim: compartilhar dados e informações para fomentar colaborações. Mas vamos à carta, cuja primeira página ilustra este texto.
No cabeçalho aparece o nome de Walter Baade (1893-1960), astrônomo alemão, que na época da data da carta, oito de novembro de 1949, trabalhava no Observatório Palomar nos Estados Unidos. E o início do texto descreve os problemas iniciais com o espelho do recém terminado Telescópio Hale, o maior de todos os tempos até então, com seu espelho de 200 polegadas[ii]. O manuscrito resume a solução do problema e a maior parte do que segue é sobre o que se pretendia fazer com o novo e potente telescópio. Se for o rascunho de uma tradução de uma carta de Baade, talvez a versão original possa ser encontrada no Arquivo Online da Califórnia.[iii] Dica para o futuro para algum leitor curioso.
A carta (ou tradução, hipótese que ganha corpo à medida que escrevo) é intrigante. É de alguém interessado (muito) em Astronomia. Mas o timbre do papel, do Departamento de Saúde do Estado, sugere outra profissão que não a de astrônomo. E a pista é então “astrônomo amador”. A busca leva imediatamente, embora talvez se afastando da carta em si, à “Associação de Amadores de Astronomia de São Paulo”, AAASP, entidade criada em 18 de novembro de 1949 no “Laboratório de Física da Faculdade de Farmácia e Odontologia da Universidade de São Paulo”. O responsável pelo laboratório era o Prof. Aristóteles Orsini (1910-1998), médico, físico, professor universitário e astrônomo amador[iv]. Na reunião inicial compareceram outras oito pessoas. Quem conta a histórias é Irineu Gomes Varella no sítio Uranometria Nova[v]. O objetivo da associação era de instalar na capital um laboratório para construção de telescópios e um observatório no interior do estado, além de pensar numa sede própria. Dos nove nomes, destaco três, além do de Orsini: Abrahão de Moraes[vi] (1917-1970), este um astrônomo profissional, Abraham Szulc (um técnico óptico, que depois trabalhou na construção do observatório astronômico do Instituto Tecnológico de Aeronáutica) e Décio Fernandes de Vasconcellos[vii], empresário e pioneiro da indústria óptica no Brasil. Os dois últimos, infelizmente, não mereceram ainda verbetes na Wikipédia.
Os objetivos da associação acabaram incluindo também a divulgação científica desde o começo. Foram os responsáveis pela construção do primeiro planetário brasileiro, o do Ibirapuera, que hoje leva o nome de Aristóteles Orsini. Era para ter sido inaugurado em 1954, como parte das comemorações do quarto centenário da cidade de São Paulo. Teria sido assim o primeiro planetário do Hemisfério Sul, mas começou a funcionar apenas em 1957, sendo suplantado em ancestralidade pelo Planetário Municipal de Montevideo, que abriu as portas em 1955. Os associados, tanto cientistas profissionais, quanto amadores, professores, técnicos ou empresários, envolveram-se em outras atividades para promover as ciências. Uma passagem curiosa de uma época sem internet e terra plana, mas já com televisão e com a obsessão por discos voadores, é relatada por Rodolpho Gauthier Cardoso dos Santos no seu livro “A invenção dos discos voadores. Guerra Fria, imprensa e ciência no Brasil (1947-1958)”, originalmente sua dissertação de mestrado, defendida na Unicamp em 2009[viii]. A AAASP teve atuação marcante contra a vedete das pseudociências da época. Faço uma citação direta do livro de Cardoso dos Santos:
“Em agosto de 1956, a TV Tupi-Difusora, de São Paulo, produziu um programa chamado Mesa Redonda sobre o tema (discos voadores). O debate contou com a participação de três representantes da AAASP, dois do recém-fundado Centro de pesquisas de Discos Voadores (CPDV) e um da Associação Mundialista Interplanetária, uma organização mística a respeito da qual não há muita informação.”
Segundo o líder do CPDV, conforme Gauthier, o embate foi áspero e talvez confuso para os telespectadores. Alguns dias depois a AAASP veiculou um manifesto científico nos jornais paulistanos, que conclui: “Pelo exposto, a Associação de Amadores de Astronomia de São Paulo afirma publicamente a sua convicção de que não existem engenhos de origem extraterrestre e nem terrestre com as características que têm sido atribuídas aos ‘discos voadores’"[ix].
Como se pode ver, a negação da ciência não é de hoje e talvez publicar manifestos seja uma boa ideia. Ou não, já que tem gente que ainda acredita em discos voadores, que hoje teriam que atravessar o domo que protege a terra plana. A Associação de Amadores não existe mais, funcionou até 1965, mas antes disso chegou a construir um radiotelescópio [x], em conjunto com o Grupo de Radioastronomia da Faculdade de Filosofia Mackenzie, graças ao auxílio financeiro da FAPESP, fundada pouco antes. O diretor de departamento de radioastronomia da associação era Pierre Kaufmann[xi] (1938-2017), físico e radioastrônomo brasileiro, professor do Mackenzie e depois pesquisador na Unicamp.
Ao falar de promoção e divulgação da ciência, é preciso voltar ao empresário Décio Fernandes Vasconcellos. Apesar da importância de sua indústria (fundada em 1941), a minha geração (e certamente algumas anteriores e pelo menos uma posterior) conhece a sigla DFV pelo kit de experiências em óptica, o Poliopticon. Era uma época em que brincar com ciências era objeto de desejo e não existiam kits anticientíficos. O convite para brincar e pôr a mão na massa é o melhor jeito de aprender ciências. Nos simulacros virtuais, a guerra contra as fakenews pode ser facilmente perdida[xii]. Esses casos nos mostram que pesquisadores profissionais podem se juntar a amadores, empresários e demais interessados em defesa da ciência. É bom lembrar de nossa história.
[i] Roberto Martins. Como não escrever sobre História da Física – um manifesto historiográfico. Revista Brasileira de Ensino de Física, São Paulo, v. 23, p. 113-129, mar. 2001.
[ii] Existem várias fontes que confirmam esses problemas e relatam as incríveis observações posteriores. A primeira “foto oficial” pelo telescópio foi tirada pelo astrônomo Edwin Hubble. Ver por exemplo o sítio do Caltech: http://www.astro.caltech.edu/palomar/about/telescopes/hale.html
[iii] https://oac.cdlib.org/findaid/ark:/13030/tf896nb2x5/entire_text/
[iv] https://pt.wikipedia.org/wiki/Arist%C3%B3teles_Orsini
[v] http://www.uranometrianova.pro.br/historia/hda/0002/aaasp.htm
[vi] http://sbfisica.org.br/v1/novopion/index.php/fisicos-do-brasil/29-abrahao-de-moraes
[vii] https://www.monolitonimbus.com.br/predios-historicos-e-df-vasconcelos/
[viii]http://repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281871/1/Santos_RodolphoGauthierCardosodos_M.pdf
[ix] Leia o manifesto na íntegra em: http://www.uranometrianova.pro.br/historia/hda/0002/manifesto.htm
[x] http://www.uranometrianova.pro.br/aaasaopaulo/pradio.pdf
[xi] https://revistapesquisa.fapesp.br/2017/02/20/morre-pierre-kaufmann-um-dos-precursores-da-radio-astronomia-no-pais/
[xii] https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/rua/article/view/8638856/6462