Finais de semestre são épocas de provas e entregas de trabalho nas escolas de todos os níveis em todo mundo. Época também de um corolário, constituído pelas frequentes e intensas conversas entre professores compartilhando suas artimanhas contra as dos estudantes, ou seja, a profilaxia ou detecção de colas, plágios ou compra de trabalhos escolares. Essas conversas, que muitas vezes evoluem para tertúlias, parecem um pouco deslocadas se pensarmos, como gosto de fazê-lo, na universidade como uma “comunidade autônoma de mestres e estudantes reunidos para assegurar o ensino de nível superior”, na definição usada por Christophe Charles e Jacques Verge em sua “História das Universidades”. Importante na leitura da frase acima entre aspas é grifar comunidade e o e. Pessoalmente acredito ser batalha, se não perdida, inglória, pois há sempre o risco de deixar de lado o sentido da avaliação em si em troca de um controle de um fenômeno que no mais é pouco discutido. Um fenômeno, aliás, que volta e meia é resmungado como um problema local: nossos estudantes são ruins porque colam e colam porque são ruins e, portanto, nossas universidades idem. Nessas tertúlias não costumam aparecer subsídios informados para os argumentos apresentados e o tema, apesar da alegada importância, não chega a despertar interesse para ser pesquisado: “Sabe-se que a fraude acadêmica é pouco pesquisada em nosso país e tem sido banalizada em nossas universidades.” [I] Para contrapor à banalidade podemos lembrar Alberto Caeiro - “Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver do Universo” - e olhar os sítios do mundo.
O alerta mais uma vez foi dado pelo guardião há pouco tempo: “Fraudes (cheating) aumentam 40% nas universidades de ponta do Reino Unido” [II]. Incluindo Oxford e Cambridge. Em números absolutos significa 3.721 casos relatados em um grupo de 24 universidades da ilha britânica no ano acadêmico de 2016-2017, contra 2.640 no ano anterior. Pode-se imaginar que o número total de fraudes deva ser bem maior, se incluirmos as que não foram descobertas e considerarmos ainda um dado que menciono mais abaixo. O topo do ranking é ocupado pela Universidade de Leeds com 433 casos. Embora cheating possa se referir à cola, plágio ou compra de trabalhos, a matéria do The Guardian destaca a última modalidade. As “fábricas de trabalhos” fazem propaganda pelos campi, inclusive distribuindo cartões de visita aos estudantes. Por aqui a venda de trabalhos de conclusão de curso parece ainda ser um pouco mais discreta, embora os sítios de venda de TCCs ou mesmo dissertações e teses da nossa aldeia apresentam um marketing revelador. Em um deles pode-se ler “não tem tempo para fazer seu trabalho acadêmico? Tenha a certeza que podemos ajudar”. Ao lado, uma janela em que o interessado pode inserir o título do trabalho, escolher a modalidade (incluindo dissertações e teses) e fornecer um endereço eletrônico para fazer uma cotação. Em um outro sítio que oferece “assessoria” traz um alento ético: “Sistema exclusivo de anti plágio para a realização de nossos serviços. OBJETIVO: trabalhar com ética em produções acadêmicas”. E existem outros mais, basta colocar TCC numa busca pelo Google e o olhar os anúncios. A existência de sítios para venda de trabalhos contribui para uma legitimação da fraude para o estudante preocupado muito mais com o estágio obrigatório e a esperança de que desse venha o emprego. Entrei com um pedido em um dos sítios para um TCC com o título “estudo da importância do estágio na formação do engenheiro”. Em meia hora recebi as propostas que ilustram esse artigo.
A cola propriamente dita é tema de outro artigo do The Guardian de 2017: “mais estudantes estão usando tecnologia para colar em exames” [III]. Relata um aumento de 42% nos casos flagrados com o uso de celulares e fones de ouvido. O sistema é simples: o estudante fotografa a prova com o celular, envia por WhatsApp ao “assessor” contratado, que dita as respostas que são ouvidas através de minúsculos fones sem fio escondidos nos ouvidos. Custam 14 dólares. Curioso é o sítio de um dos fornecedores, a Monorean [IV], que anuncia abertamente: “Cole nas provas com total discrição!”.
Passeando pelo mundo em sentido leste, matéria do portal news.com.au destaca estudo que mostra que 6% dos estudantes da Austrália recorrem a fraudes [V]. Do outro lado do oceano Pacífico, nos Estados Unidos, está a sede do Open Education Database e uma de suas páginas apresenta uma compilação de dados sobre fraudes de estudantes por lá [VI]. Uma pesquisa mostra que 60,8% dos estudantes entrevistados admitiram ter cometido algum tipo de fraude e 16,5% deles não se arrependem disso. Outro estudo revela que aqueles que colam apresentam notas melhores. O GPA (grade point average) médio dos que colam é 3,41 e dos que não colam é 2,85. Um terceiro estudo sugere ainda que a maioria dos que colam nas universidades já o faziam no ensino médio. Além disso, a taxa de impunidade é alta: 95% dos que colam não são flagrados (mais um estudo). E, por fim, o sítio líder de venda de trabalhos por lá tem 8 mil acessos diários.
As perguntas que surgem são duas. Por que os estudantes fraudam e como combater isso? Esse é o título de mais uma matéria [VII], mas antes de comentá-la, o combate da pergunta não se refere ao esquema de controle e sim à identificação e abordagem das causas. O texto original é ilustrado com uma foto de estudantes na Universidade de Harvard e a legenda chama a atenção ao “escândalo de fraude de Harvard em 2012” [VIII], envolvendo 125 estudantes em um exame final daquele ano. No corpo do texto, temos as declarações de dois professores ligados à área de Educação e Psicologia e que pesquisam o assunto, Eric Anderman e David Rettinger. Segundo Anderman, disciplinas em que as aulas são focadas na aprendizagem em vez da avaliação reduzem fraudes. Professores que transmitem entusiasmo pelo que ensinam e discutem o uso do conhecimento apresentado em aula também são menos fraudados. E o índice de fraudes varia conforme a disciplina: matemática e ciências são as campeãs. Mais: para os estudantes seria aceitável colar nessas disciplinas. De Rettinger faço uma citação direta:
“A fraude está profundamente entranhada na nossa cultura. E quando os estudantes olham para a política, negócios e...eles veem a desonestidade ser premiada, é muito difícil para nós no ensino superior argumentar que eles devem fazer as coisas do jeito certo.”
Desconstruir essa cultura arraigada, cá e lá, não pode se limitar ao enunciado de regras (sempre feito com maior ou menor ênfase) e ao simples controle durante as avaliações e nas suas correções (sempre presente também). É preciso mostrar que a fraude prejudica o aprendizado e que aprender (e descobrir) vale a pena [IX] e entender as pressões internas e externas sobre os estudantes. Para isso falta (entre outras coisas) pesquisar mais o assunto e não só tertuliar sobre o mesmo. Mas, atenção, buscando pesquisas sobre a questão encontra-se o artigo “Atitudes de estudantes em relação à cola e ao plágio: um estudo de caso universitário”. No resumo os autores anunciam que “após analisar os resultados, tentamos propor algumas recomendações que podem ajudar a combater a cola e o plágio entre estudantes do ensino superior”. Mas não recomendo o artigo (cujo título em inglês e o nome dos autores eu omito aqui), pois foi publicado em uma revista predatória [X], portanto uma fraude de quem diz combater a fraude dos outros. Rotos não devem falar dos maltrapilhos.
[I] http://www.multitemas.ucdb.br/article/view/186/1223
[IV] https://www.monorean.com/en
[VI] https://oedb.org/ilibrarian/8-astonishing-stats-on-academic-cheating/
[VII] https://learningenglish.voanews.com/a/cheating-us-colleges-and-universities/4095907.html
[VIII] https://en.wikipedia.org/wiki/2012_Harvard_cheating_scandal
[IX] Já dizia Aristóteles: “A alegria que se tem em pensar e aprender faz-nos pensar e aprender ainda mais”.
[X] https://www.unicamp.br/unicamp/ju/artigos/peter-schulz/o-ethos-e-seus-predadores