No avanço assustador da pandemia de Covid-19 na Europa há um ano, veio-me à mente outra classe de fenômenos que resultam em tragédias: terremotos. Lembrei-me mais especificamente da espera pelo “the big one”: o mega terremoto que devastaria o oeste americano por causa da falha de San Andres. Geólogos não concordariam com o tempo verbal que eu empreguei, pois, segundo eles, não se trata se vai ocorrer, mas sim, quando. No que se refere a pandemias, a Covid-19 revelou-se the big one: passado pouco mais de um ano são 120 milhões de infectados e mais de 2,5 milhões de mortos até agora, espalhados por todos os países do mundo. Apesar dos avanços em geofísica e sismologia, ainda não é possível prever a ocorrência de terremotos, mas no que se refere a pandemias o cenário parecia promissor há uma década.
Os primeiros 20 anos do século já apresentam uma lista enorme de doenças epidêmicas ou pandêmicas[I]. Relacionadas à família de coronavírus temos a SARS (Síndrome respiratória aguda grave) no começo do século e a MERS (Síndrome respiratória do Oriente Médio), que surgiu em 2012. Entre essas duas epidemias, o mundo parecia ter ficado mais atento, contando com o auxílio da internet para monitorar novos surtos. É o que anunciava Elisa Barday em um informe publicado na revista The Lancet em 2008: “Predizendo a próxima pandemia”[II].
O cabeçalho da publicação resume o que se pensava então:
“Gigantes da internet (Google) e especialistas em doenças infecciosas estão tentando aproveitar as novas tecnologias para prever quando e onde a próxima pandemia vai atacar. Com sistemas de monitoramento locais apropriados, disseminação de doenças e numerosas mortes podem ser prevenidas, dizem os especialistas”.
As informações sobre a iminência e a gravidade eram conhecidas. Segundo um estudo publicado no mesmo ano, 335 doenças infecciosas emergentes ocorreram entre 1940 e 2004, 60% das quais eram zoonoses[III]. Esse estudo citado por Barday em seu relato também afirmava que a ameaça dessas doenças à saúde global aumentara com o tempo. O parágrafo seguinte dizia o que todos (?) aprendemos no ano passado:
“Com a proliferação de viagens e o comércio internacional, agentes causadores de doenças agora têm a possibilidade de se mover ao redor do globo mais rapidamente. Seres humanos e animais também se encontram em contato cada vez mais próximo, devido ao desflorestamento e aumento da demanda por produtos animais em mercados locais e internacionais.”
A iniciativa de construção de uma rede global de monitoramento resultou, de fato, na criação de vários projetos a partir de 2009 nos Estados Unidos, mas que não se desenvolveram conforme a promessa anunciada. O último deles teve seu financiamento fortemente cortado pouco antes da eclosão da pandemia de Covid-19. Era a segunda parte do PREDICT, um programa que financiava projetos interdisciplinares (virologia, epidemiologia e ecologia) envolvendo mais de 60 países e que em dez anos identificou 931 novos vírus. O corte de financiamento que o programa sofreu no final de 2019, deixando à mingua o Global Virome Project[IV], não tem relação causal com a pandemia que se instalou poucos meses depois, mas simboliza a complexidade do problema. Colin Carlson comenta em março de 2020, na mesma The Lancet, que publicou a promessa em 2008, as razões do insucesso dessa ideia até aqui. A proposta de identificar novos vírus deve ser prioritária, mas para Carlson “não é [ainda]o começo do fim da era das pandemias”, um fim ensejado em um artigo otimista de 2016[V]. Carlson lembra que a identificação de vírus não é suficiente[VI]. Outra lição – não basta conhecer o vírus - que todos(?) sabemos também em relação ao novo coronavírus e, mais recentemente, suas variantes.
Carlson discute os sucessos (inegáveis na identificação de novos vírus) e os fracassos (no monitoramento e prevenção de pandemias) desse programa, vale a leitura[VII]. Em resumo; precisamos avançar muito ainda na avaliação de riscos zoonóticos, fazendo equipes multidisciplinares trabalharem juntas por todo o globo terrestre.
A ciência tem ainda, portanto, um longo caminho pela frente, tanto para prever terremotos, quanto para anunciar o “fim da era das pandemias”. No entanto, previu a catástrofe que vivemos no momento e sabe como podíamos tê-la evitado. Há pouco mais de um ano, um importante relatório científico convenceu governos (não todos, como também bem sabemos) a organizarem distanciamentos sociais e confinamentos para deter a infecção pelo novo coronavírus. Era o então famoso, hoje esquecido, “relatório Ferguson”, também conhecido como “relatório do Imperial College”, de 16 de março de 2020[VIII]. Esse relatório avaliava o impacto de medidas não farmacológicas para reduzir a mortalidade e a demanda do sistema de saúde em face da Covid-19.
Dados e modelos epidemiológicos permitiram prever o que era preciso fazer para não sobrecarregar o sistema de saúde[IX] e mitigar os efeitos da pandemia até que tivéssemos vacinas. O relatório previa que as vacinas demorariam de 12 a 18 meses para estarem disponíveis. Erraram por pouco, pois as vacinas chegaram antes (nove meses depois da publicação do relatório), mas a aplicação delas em toda população demorará mais do que os 18 meses contados a partir de março do ano passado. Deixando esse comentário de lado, a mensagem central do relatório está em sua figura 3, reproduzida abaixo.
Lembremos que o objetivo então era o que ficou conhecido como “achatar a curva”, para não sobrecarregar a capacidade do sistema de saúde, essa indicada na figura pela linha vermelha horizontal. O que significam todas essas curvas? A de cor preta indica o que aconteceria se nada fosse feito. Seria um colapso total com um número inimaginável de casos acima da capacidade de atendimento e de mortos, mas os sobreviventes teriam a tal imunidade coletiva. As outras curvas representam o que se passaria com a adoção de diferentes graus de distanciamento social. A laranja, por exemplo, prevê o isolamento de infectados, quarentena em casa e distanciamento social geral. A curva verde assinala a evolução dos casos para, além do isolamento de infectados e distanciamento social, fechamento de escolas e universidades. Vejam na parte (B) da figura o quanto essas medidas foram previstas como importantes para que o sistema de saúde não colapsasse. Nesse sentido, fechar as escolas e universidades, era de fato essencial para que a curva pudesse ter a chance de ser achatada debaixo da linha vermelha. Isso todo mundo se lembra, pois foi o que, qualitativamente, aconteceu em quase todo mundo (aqui não, como bem sofremos). Mas atenção, parece que quase todos esqueceram da segunda onda, vejam os picos posteriores (altíssimos) das curvas verde e laranja. Essa segunda onda foi prevista para o final do ano passado e começo de 2021, caso as medidas não farmacológicas fossem suspensas em setembro de 2020. A área azul representa o intervalo de tempo de adoção dessas medidas. A segunda onda era inevitável, segundo o modelo, pois não haveria a imunidade coletiva. E a segunda onda veio, até mais intensa que a primeira, como previa essa simulação, em quase todos os países, que relaxaram as medidas de isolamento, distanciamento social e uso de máscaras. (no Brasil, como se sabe, sequer saímos da primeira onda e estamos tomando o caldo da segunda).
Mas então para que serviram todas essas medidas? Primeiro para não colapsar o sistema de saúde (como está ocorrendo novamente e de forma mais intensa no Brasil). E, em segundo lugar, prever por quanto tempo as tais medidas de distanciamento precisariam ser mantidas até a chegada das vacinas. Até meados de setembro não seria suficiente e é o que se viu, as vacinas chegaram apenas no meio da segunda onda na Europa. E na conclusão do relatório, a dica cristalinamente clara para quem quisesse entender e não esquecer: “para evitar o repique [depois chamado de segunda onda], essas medidas precisam ser mantidas até que um estoque suficiente de vacinas esteja disponível”. Os autores estavam cientes das consequências sociais e econômicas, das dificuldades de implantação, testagem e de como relaxar as medidas, mas precisam informar sobre o iminente colapso da saúde. A ciência cumpriu o se papel, alguns seguiram, outros não, e quase todo mundo esqueceu o que ela (a ciência) sugeriu nos idos de março do ano passado para o início do ano seguinte. O resultado aqui no Brasil é o que todos(?) estamos vendo: até o aniversário do relatório do Imperial College, na semana que vem, tomaremos o segundo lugar da Índia na lista de número de infectados pelo novo coronavírus e suas variantes e nos aproximaremos de 300 mil mortes. And counting, como diriam os ingleses.
Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.
[I]https://www.who.int/emergencies/diseases/en/
[II]https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0140673608614257
[III] “Doenças infecciosas emergentes são um fardo significativo sobre economias globais e a saúde pública”, ver https://www.nature.com/articles/nature06536
[IV]http://www.globalviromeproject.org/
[VI] Por exemplo: o Zika foi isolado em 1947 e o Chikungunya em 1952, as respectivas epidemias vieram mais 50 anos depois.
[VII]https://www.thelancet.com/journals/lanmic/article/PIIS2666-5247(20)30002-1/fulltext