Foto: Antoninho Perri

Peter Schulz foi professor do Instituto de Física "Gleb Wataghin" (IFGW) da Unicamp durante 20 anos. Atualmente é professor da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp, em Limeira. Além de artigos em periódicos especializados em Física e Cienciometria, dedica-se à divulgação científica e ao estudo de aspectos da interdisciplinaridade. Publicou o livro “A encruzilhada da nanotecnologia – inovação, tecnologia e riscos” (Vieira & Lent, 2009) e foi curador da exposição “Tão longe, tão perto – as telecomunicações e a sociedade”, no Museu de Arte Brasileira – FAAP, São Paulo (2010).

Sobre projetos e previsões

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Foto de capa (Ruínas de São Francisco, terremoto de 1906, domínio público)
Foto de capa (Ruínas de São Francisco, terremoto de 1906, domínio público)

No avanço assustador da pandemia de Covid-19 na Europa há um ano, veio-me à mente outra classe de fenômenos que resultam em tragédias: terremotos. Lembrei-me mais especificamente da espera pelo “the big one”: o mega terremoto que devastaria o oeste americano por causa da falha de San Andres. Geólogos não concordariam com o tempo verbal que eu empreguei, pois, segundo eles, não se trata se vai ocorrer, mas sim, quando. No que se refere a pandemias, a Covid-19 revelou-se the big one: passado pouco mais de um ano são 120 milhões de infectados e mais de 2,5 milhões de mortos até agora, espalhados por todos os países do mundo. Apesar dos avanços em geofísica e sismologia, ainda não é possível prever a ocorrência de terremotos, mas no que se refere a pandemias o cenário parecia promissor há uma década.

Os primeiros 20 anos do século já apresentam uma lista enorme de doenças epidêmicas ou pandêmicas[I]. Relacionadas à família de coronavírus temos a SARS (Síndrome respiratória aguda grave) no começo do século e a MERS (Síndrome respiratória do Oriente Médio), que surgiu em 2012. Entre essas duas epidemias, o mundo parecia ter ficado mais atento, contando com o auxílio da internet para monitorar novos surtos. É o que anunciava Elisa Barday em um informe publicado na revista The Lancet em 2008: “Predizendo a próxima pandemia”[II].

O cabeçalho da publicação resume o que se pensava então:

“Gigantes da internet (Google) e especialistas em doenças infecciosas estão tentando aproveitar as novas tecnologias para prever quando e onde a próxima pandemia vai atacar. Com sistemas de monitoramento locais apropriados, disseminação de doenças e numerosas mortes podem ser prevenidas, dizem os especialistas”.

As informações sobre a iminência e a gravidade eram conhecidas. Segundo um estudo publicado no mesmo ano, 335 doenças infecciosas emergentes ocorreram entre 1940 e 2004, 60% das quais eram zoonoses[III]. Esse estudo citado por Barday em seu relato também afirmava que a ameaça dessas doenças à saúde global aumentara com o tempo. O parágrafo seguinte dizia o que todos (?) aprendemos no ano passado:

“Com a proliferação de viagens e o comércio internacional, agentes causadores de doenças agora têm a possibilidade de se mover ao redor do globo mais rapidamente. Seres humanos e animais também se encontram em contato cada vez mais próximo, devido ao desflorestamento e aumento da demanda por produtos animais em mercados locais e internacionais.”

A iniciativa de construção de uma rede global de monitoramento resultou, de fato, na criação de vários projetos a partir de 2009 nos Estados Unidos, mas que não se desenvolveram conforme a promessa anunciada. O último deles teve seu financiamento fortemente cortado pouco antes da eclosão da pandemia de Covid-19. Era a segunda parte do PREDICT, um programa que financiava projetos interdisciplinares (virologia, epidemiologia e ecologia) envolvendo mais de 60 países e que em dez anos identificou 931 novos vírus. O corte de financiamento que o programa sofreu no final de 2019, deixando à mingua o Global Virome Project[IV], não tem relação causal com a pandemia que se instalou poucos meses depois, mas simboliza a complexidade do problema. Colin Carlson comenta em março de 2020, na mesma The Lancet, que publicou a promessa em 2008, as razões do insucesso dessa ideia até aqui. A proposta de identificar novos vírus deve ser prioritária, mas para Carlson “não é [ainda]o começo do fim da era das pandemias”, um fim ensejado em um artigo otimista de 2016[V]. Carlson lembra que a identificação de vírus não é suficiente[VI]. Outra lição – não basta conhecer o vírus - que todos(?) sabemos também em relação ao novo coronavírus e, mais recentemente, suas variantes.

Carlson discute os sucessos (inegáveis na identificação de novos vírus) e os fracassos (no monitoramento e prevenção de pandemias) desse programa, vale a leitura[VII]. Em resumo; precisamos avançar muito ainda na avaliação de riscos zoonóticos, fazendo equipes multidisciplinares trabalharem juntas por todo o globo terrestre.

A ciência tem ainda, portanto, um longo caminho pela frente, tanto para prever terremotos, quanto para anunciar o “fim da era das pandemias”. No entanto, previu a catástrofe que vivemos no momento e sabe como podíamos tê-la evitado. Há pouco mais de um ano, um importante relatório científico convenceu governos (não todos, como também bem sabemos) a organizarem distanciamentos sociais e confinamentos para deter a infecção pelo novo coronavírus. Era o então famoso, hoje esquecido, “relatório Ferguson”, também conhecido como “relatório do Imperial College”, de 16 de março de 2020[VIII]. Esse relatório avaliava o impacto de medidas não farmacológicas para reduzir a mortalidade e a demanda do sistema de saúde em face da Covid-19.

Dados e modelos epidemiológicos permitiram prever o que era preciso fazer para não sobrecarregar o sistema de saúde[IX] e mitigar os efeitos da pandemia até que tivéssemos vacinas. O relatório previa que as vacinas demorariam de 12 a 18 meses para estarem disponíveis. Erraram por pouco, pois as vacinas chegaram antes (nove meses depois da publicação do relatório), mas a aplicação delas em toda população demorará mais do que os 18 meses contados a partir de março do ano passado. Deixando esse comentário de lado, a mensagem central do relatório está em sua figura 3, reproduzida abaixo.

Figura reproduzida do artigo de Neil Ferguson e colaboradores, referência nos links abaixo ( a parte B é uma ampliação da parte A)
Figura reproduzida do artigo de Neil Ferguson e colaboradores, referência nos links abaixo ( a parte B é uma ampliação da parte A)

Lembremos que o objetivo então era o que ficou conhecido como “achatar a curva”, para não sobrecarregar a capacidade do sistema de saúde, essa indicada na figura pela linha vermelha horizontal. O que significam todas essas curvas? A de cor preta indica o que aconteceria se nada fosse feito. Seria um colapso total com um número inimaginável de casos acima da capacidade de atendimento e de mortos, mas os sobreviventes teriam a tal imunidade coletiva. As outras curvas representam o que se passaria com a adoção de diferentes graus de distanciamento social. A laranja, por exemplo, prevê o isolamento de infectados, quarentena em casa e distanciamento social geral. A curva verde assinala a evolução dos casos para, além do isolamento de infectados e distanciamento social, fechamento de escolas e universidades. Vejam na parte (B) da figura o quanto essas medidas foram previstas como importantes para que o sistema de saúde não colapsasse. Nesse sentido, fechar as escolas e universidades, era de fato essencial para que a curva pudesse ter a chance de ser achatada debaixo da linha vermelha. Isso todo mundo se lembra, pois foi o que, qualitativamente, aconteceu em quase todo mundo (aqui não, como bem sofremos). Mas atenção, parece que quase todos esqueceram da segunda onda, vejam os picos posteriores (altíssimos) das curvas verde e laranja. Essa segunda onda foi prevista para o final do ano passado e começo de 2021, caso as medidas não farmacológicas fossem suspensas em setembro de 2020. A área azul representa o intervalo de tempo de adoção dessas medidas. A segunda onda era inevitável, segundo o modelo, pois não haveria a imunidade coletiva. E a segunda onda veio, até mais intensa que a primeira, como previa essa simulação, em quase todos os países, que relaxaram as medidas de isolamento, distanciamento social e uso de máscaras. (no Brasil, como se sabe, sequer saímos da primeira onda e estamos tomando o caldo da segunda).

Mas então para que serviram todas essas medidas? Primeiro para não colapsar o sistema de saúde (como está ocorrendo novamente e de forma mais intensa no Brasil). E, em segundo lugar, prever por quanto tempo as tais medidas de distanciamento precisariam ser mantidas até a chegada das vacinas. Até meados de setembro não seria suficiente e é o que se viu, as vacinas chegaram apenas no meio da segunda onda na Europa. E na conclusão do relatório, a dica cristalinamente clara para quem quisesse entender e não esquecer: “para evitar o repique [depois chamado de segunda onda], essas medidas precisam ser mantidas até que um estoque suficiente de vacinas esteja disponível”. Os autores estavam cientes das consequências sociais e econômicas, das dificuldades de implantação, testagem e de como relaxar as medidas, mas precisam informar sobre o iminente colapso da saúde. A ciência cumpriu o se papel, alguns seguiram, outros não, e quase todo mundo esqueceu o que ela (a ciência) sugeriu nos idos de março do ano passado para o início do ano seguinte. O resultado aqui no Brasil é o que todos(?) estamos vendo: até o aniversário do relatório do Imperial College, na semana que vem, tomaremos o segundo lugar da Índia na lista de número de infectados pelo novo coronavírus e suas variantes e nos aproximaremos de 300 mil mortes. And counting, como diriam os ingleses.

 

Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.


[I]https://www.who.int/emergencies/diseases/en/

[II]https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0140673608614257

[III] “Doenças infecciosas emergentes são um fardo significativo sobre economias globais e a saúde pública”, ver https://www.nature.com/articles/nature06536

[IV]http://www.globalviromeproject.org/

[V]http://worldaffairs.nonprofitsoapbox.com/blog/765-guest-post-the-global-virome-project-the-beginning-of-the-end-of-the-pandemic-era

[VI] Por exemplo: o Zika foi isolado em 1947 e o Chikungunya em 1952, as respectivas epidemias vieram mais 50 anos depois.

[VII]https://www.thelancet.com/journals/lanmic/article/PIIS2666-5247(20)30002-1/fulltext

[VIII]https://www.imperial.ac.uk/media/imperial-college/medicine/sph/ide/gida-fellowships/Imperial-College-COVID19-NPI-modelling-16-03-2020.pdf

[IX]https://www.unicamp.br/unicamp/ju/artigos/peter-schulz/por-que-e-imprescindivel-suspender-aulas-precaucao-sim-panico-nao

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