Foto: Antoninho Perri

Peter Schulz foi professor do Instituto de Física "Gleb Wataghin" (IFGW) da Unicamp durante 20 anos. Atualmente é professor da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp, em Limeira. Além de artigos em periódicos especializados em Física e Cienciometria, dedica-se à divulgação científica e ao estudo de aspectos da interdisciplinaridade. Publicou o livro “A encruzilhada da nanotecnologia – inovação, tecnologia e riscos” (Vieira & Lent, 2009) e foi curador da exposição “Tão longe, tão perto – as telecomunicações e a sociedade”, no Museu de Arte Brasileira – FAAP, São Paulo (2010).

Tempo de Copa: cultura, ciência, tecnologia e...futebol

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“O futebol é uma caixinha de surpresas”
(?)

 


Ilustração: Luppa SilvaTenho a impressão de que os preparativos para essa Copa estão menos visíveis do que para as edições passadas, fenômeno que não sei avaliar, mas problemas não faltam para ocupar a nossa atenção neste ano de efemérides, incluindo a conquista da primeira Copa da nossa lista penta. Mas Copas não servem só para pensar em futebol e permitem outros nexos. Entre eles a memória afetiva de Copas vividas e as memórias construídas de outras não torcidas. A primeira vivida (sempre de longe, nunca vi um jogo em estádio) é a de 1970, mas me antecipo. A Copa mais antiga por memória construída é a de 1938, através do pano de fundo no livro O crime do restaurante chinês, de Boris Fausto: o suspeito do crime lembrava Leônidas da Silva. A Copa seguinte é de triste lembrança, seja afetiva ou construída: a imersão no “Maracanazo”, proporcionado pelo Museu do Futebol em sua sala “Rito de passagem”, dá uma bela ideia de como 2 pode ser pior do que 7, quando do outro lado do placar temos apenas um gol. A próxima aparece em filme em vez de livro: a Copa de 1954 é o pano de fundo de O casamento de Maria Braun, de Rainer Werner Fassbinder.


1954

No filme de Fassbinder, a Copa da Suíça se anuncia pelo som: o campo sonoro é invadido pelas transmissões radiofônicas dos jogos. Essa Copa, no entanto, foi a primeira a ser televisionada, pelo menos para parte da Europa. Outro detalhe tecnológico, porém, é que chama a atenção. São os singelos cravos das chuteiras dos campeões. A Alemanha havia levado um 3 a 8 dos húngaros na fase de grupos. Em defesa do país campeão, pode-se argumentar que jogaram com o time reserva. Na final o placar foi 3 a 2 para o time do lado de cá da cortina de ferro. O primeiro tempo terminou empatado em dois gols e começou a chover. No intervalo, trocaram-se os cravos da chuteira – a inovação (cravos intercambiáveis) era de Adi Dassler, cuja marca de material esportivo é famosa até hoje – para melhor desempenho em campo molhado [I]. O único gol do segundo tempo ajudou, portanto, a consagrar o slogan “made in Germany”.


1958

Esse ano é inesquecível para a nossa memória futebolística, superação do desastre de 1950 e da desorganização da Copa anterior. O que pouco se comenta é o papel do “Plano Paulo Machado de Carvalho” para a primeira estadia do caneco em nosso território: um planejamento “voltado para os aspectos técnicos, físicos, psíquicos, sociais e culturais dos jogadores” [II]. Assim, parece que foi pelo ludopédio, não na academia, que surge a interdisciplinaridade entre nós.

Sessenta anos depois, vivemos a era do “Big data”, portanto vale lembrar que a Copa de 1958 foi provavelmente a primeira a usar estatísticas na análise das pelejas, pois, aparentemente, a primeira aplicação de considerações estatísticas ao esporte Bretão foi um estudo de M. J. Moroney em 1956 [III]


1962

Essa Copa, embora realizada em fatia remota relativa ao centro geopolítico de então, foi a primeira a ser televisionada para todo o mundo, mas ainda não via satélite. O primeiro satélite de telecomunicações, o “Telstar 1” foi lançado ao espaço pouco menos de um mês após o jogo em que os gols de Amarildo, Zito e Vavá fizeram com que a taça permanecesse em nosso solo por mais quatro anos. Mesmo assim, foi pela primeira vez que foram vistos por aqui jogos de uma Copa por videoteipe: as fitas chegavam de avião e eram exibidas dias depois. No calor da hora, ao vivo, o velho e bom rádio com visualizações de jogadas em um tipo de futebol de botão gigante no lugar dos telões atuais, como na foto abaixo, que flagra a audiência em plena Praça da Sé em São Paulo.
 

Reprodução


1966

Uma coincidência, que ainda que se faça notar não tem a menor importância, é a de que o ano da Copa anterior foi também o da publicação de A Galáxia de Gutemberg de Herbert Marshall MacLuhan e a popularização de sua expressão “Aldeia Global”.  MacLuhan era canadense e, embora o Canadá nunca tenha dado grandes alegrias no futebol, deve ter ficado contente com a Copa realizada na Inglaterra. Segundo Fabio Chisari no ensaio Quando o futebol se tornou global: televisionando a Copa do Mundo de 1966[IV], foi esse evento que criou, se não a aldeia, pelo menos “o campo de futebol global”: as estimativas são de que 400 milhões de pessoas assistiram pelo menos algum pedaço de jogo daquela Copa. Foi nessa mesma Copa que apareceu a câmera lenta, recurso tecnológico de rica ambiguidade, pois, se dirimem algumas dúvidas de lances duvidosos, aumenta a polêmica de outros para as gerações seguintes de fãs do futebol.


1970

Essa foi a primeira Copa que acompanhei: ninguém esquece a primeira vez e lembro, por exemplo, que foi numa festa junina que assisti Brasil versus Peru, 4 para o primeiro, 2 para o segundo. Sempre é possível rever os jogos, provavelmente mais do que os de outras Copas. Merecidamente. E o melhor, embora haja controvérsias, foi aquela finta de Pelé, solista do corpo de baile [V] contra o Uruguai na semifinal. A Copa do México foi a primeira televisionada em cores, mas para o Brasil isso só foi possível a partir da de 1974 (em casa só a partir de 1978), que deveria ser a de Ademir da Guia, mas não foi.

Mas dedico o resto do texto a outra coisa que ficou eternizada, pelo menos por enquanto, daquela Copa (a de 1970, não a de 1974): a bola! Justifico, citando Neném Prancha: “o importante é o principal, o resto é secundário” e, além disso, “uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa.” As bolas de futebol mudam ao longo das Copas como podemos apreciar em vários sítios [VI], [VII], desde a forma (isso mesmo!) até a geometria dos gomos e os desenhos. Qual era a novidade da bola de 1970? Copio (mas comento entre parênteses) o texto no sítio da Wikipédia, devidamente referenciado acima:

“A Copa de 1970, no México, marcou a história das bolas de futebol. Escolhida pela FIFA como a fornecedora oficial de seus torneios oficiais, a empresa Adidas (sim, aquela das chuteiras de 1954) inspirou-se na estrutura das cúpulas geodésicas de Buckminster Fuller para obter a maior esfericidade (ou seja, nem sempre a bola foi bem redonda) possível, utilizando 32 gomos (12 pentágonos e 20 hexágonos) para formar um icosaedro truncado. Os pentágonos foram pintados na cor preta e os hexágonos na cor branca para facilitar a visualização da bola nas imagens de televisão, dado que a competição seria transmitida ao vivo em preto e branco. Esse design tornou-se o mais famoso de todos os tempos, sendo considerado o mais utilizado até os dias atuais.

O nome, Telstar, deve-se à sua semelhança com o satélite homônimo (aquele que apareceu logo depois da Copa de 1962), responsável pela transmissão dos jogos para a Europa. Foi também a primeira bola a receber um nome especialmente para a Copa do Mundo”.

Uma bola com nome próprio, feita para a televisão e com uma geometria dos gomos iguais à molécula de 60 átomos de Carbono, símbolo da nanociência, a “Buckyball” ou ”Buckminsterfulereno”, sintetizada pela primeira vez entre as Copas de 1982 e 1986. A Telstar da Copa de 1970 começou, portanto, a aparecer também nos textos de divulgação científica sobre nanotecnologia. Entre as Copas de 1990 (para esquecer) e a de 1994 (para lembrar com alguma reserva) descobriu-se que fulerenos (as moléculas) aparecem naturalmente na fuligem. Entre as Copas de 2010 (grande Espanha) e a de 2014 (para esquecer também) detectaram-se essas bolas de 60 átomos em poeira interestelar. Ou seja, a “a bola do tri” está em toda parte.


2018

A bola de 1970 foi tendo decorações diferentes, mas os gomos permaneceram os mesmos até a Copa de 2002. Descartados por outros formatos em 2006 (tetra da Itália), 2010 e 2014 (tetra da Alemanha), voltam fulerenizados  em 2018. Nome da bola? Telstar 18! Agora não em homenagem ao satélite, mas à bola de 1970, sempre ela. A nota triste é que, infelizmente, nesse meio tempo, Neném Prancha perdeu parte de sua imortalidade: "bola tem que ser rasteira, porque o couro vem da vaca e a vaca gosta de grama." Desde a Copa de 1986, as bolas utilizadas não são mais de couro e sim de material sintético.

 


[I] https://www.dmu.ac.uk/documents/world-cup-2014/world-cup-24-objects.pdf

[II] https://revistas.ufrj.br/index.php/Recorde/article/view/1241/1172

[III] http://statwww.epfl.ch/projects/emonet/main.pdf

[IV] https://www.ssoar.info/ssoar/handle/document/3014

[V] https://www.youtube.com/watch?v=dhz6gAbiYrU

[VI] https://pt.wikipedia.org/wiki/Lista_de_bolas_oficiais_da_Copa_do_Mundo_FIFA

[VII] https://www.nytimes.com/interactive/2014/06/13/sports/worldcup/world-cup-balls.html

 

 

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