Todos já ouviram falar nos átomos, assim pode parecer um pouco pedante lançar a hipótese de que, mesmo tendo ouvido algo sobre eles, as pessoas não saibam exatamente o que seriam. Mas existe uma imagem do átomo que todo mundo reconhece. É a imagem que aparece no logotipo da série “The Big Bang Theory”. O pingo no i do Big representa o núcleo atômico e seus “satélites cinzas”, com suas órbitas indicadas, são os elétrons correspondentes. Essa imagem não é só popular, mas oficial e institucional, exibidos nos logos de órgãos importantes em diferentes continentes.
Esse átomo das imagens abaixo é o átomo de Bohr [I], que todo mundo que prestou atenção às aulas de Física ou Química já esqueceu de ter visto. Mas o átomo que a ciência conhece hoje tem pouco a ver com o modelo proposto pelo eminente físico dinamarquês, Niels Henrick David Bohr (1885-1962). E apesar de termos descoberto que o átomo é diferente, continuamos a ensinar esse modelo mais de 90 anos após o decreto de sua obsolescência [II]. O debate sobre o tema está aberto, como o título de um artigo recente anuncia: “Porque devemos ensinar o modelo de Bohr e como fazê-lo de forma eficiente” [III]. O resumo desse artigo revela a proposta de seus autores: é muito mais difícil entender o desenvolvimento dos modelos do que os aspectos do modelo em si. Ensinar de forma efetiva se refere a discutir os processos na ciência e não apenas seus resultados. E nisso a acirrada batalha em torno do átomo é um belíssimo exemplo [IV].
Pelo que aprendi na escola, o assunto já havia se resolvido entre 1803 e 1805 com o desenvolvimento da teoria atômica de John Dalton para explicar a proporcionalidade dos elementos nas reações químicas. Só que a história é sempre mais complicada, tanto antes, quanto depois. Uma linha do tempo do que aconteceu antes, desde Demócrito (sim, esse também é lembrado nos textos mais simplificados), passando por São Tomás de Aquino, Galileu Galilei e Isaac Newton, aparece em blogs[v]. No entanto, não basta autoridades acreditarem em algo para que ele exista. Os experimentos durante o século XIX revelavam desvios nos balanceamentos das reações químicas, não é tão simples obter sistemas livres de contaminações para que os balanços sejam perfeitos. E assim, com evidências em contrário, os desafetos da ideia de átomos como tijolos fundamentais da matéria construíam seus argumentos contra.
Nesse time contrário teve destaque o influente físico e filósofo austríaco Ernst Mach (1838-1916), titular da cátedra de História e Teoria da Ciência Indutiva da Universidade de Viena entre 1895 e 1901. Para ele, os átomos não passaram nos seus critérios de verificabilidade empírica, por isso teriam que ser simplesmente descartados. Dito de outra forma, de acordo com seu modo de ver a ciência, átomos não podem ser sentidos e observados diretamente, portanto não teriam lugar na Física. Como eu comentei, sua influência era enorme e no começo do século XX a existência dos átomos ainda era debatida. Mach, porém, não prestara a devida atenção em uma evidência direta da ação dos átomos: o movimento Browniano (identificado por Robert Brown em 1828) e explicado por Albert Einstein em 1905 [VI]. Em poucas linhas: partículas bem pequenas apresentam um movimento de microscópicos passos errantes na água. A causa desse movimento é o choque desigual das moléculas de água, levando o grãozinho microscópico imerso no líquido a cambalear para lá e para cá. A explicação baseava-se na existência dos átomos (ou moléculas de água no caso) que provocariam a estranha dança: Einstein deduziu as fórmulas que descrevem (em média) esse movimento. Em 1909, Jean Perrin (1870-1942) mediu minuciosamente (com a ajuda de um microscópio, claro) esses movimentos e a teoria de Einstein se confirmava: observava-se diretamente um efeito dos átomos. Com isso, Mach pôs as barbas de molho e, mais de um século depois de Dalton, os últimos críticos da existência dos átomos se converteram ao indivisível.
O outro time, nessa mesma época, também já não acreditava nos átomos, no sentido da palavra (indivisível em grego): essas partículas não só existem, mas teriam estrutura, seriam compostas por entes mais fundamentais. A história dos modelos atômicos também é apenas pincelada em aulas, mas é emocionante.
Nos anos em que Einstein e Perrin pelejavam pela própria existência dos átomos, eles ainda eram maciços, o modelo em voga fora apelidado de pudim (esférico, nenhuma superfície plana) de ameixas, essas representando os elétrons (descobertos em 1895) e o pudim em si ninguém sabia exatamente qual seria a receita. É o que normalmente lemos nos manuais, onde, apenas como nota de rodapé (quando muito), aparece também o modelo saturniano: os átomos teriam um caroço central com a carga positiva e os elétrons formariam anéis em volta, como no planeta, cujo nome deu origem ao do modelo. Esse modelo foi proposto em 1904 pelo físico japonês Hantaro Nagaoka (1865-1950), mas teria sido antecipado pelo mesmo Jean Perrin de alguns parágrafos acima em 1901 [VII]. Ou seja, havia aqueles que não acreditavam em átomos e os que acreditavam se dividiam em dois partidos: átomos ainda seriam maciços, mas compostos, ou teriam espaços vazios entre suas partes.
Essa divisão entre os partidários dos átomos é importante, porque novamente nos resumos para o vestibular pula-se diretamente do pudim (também chamado de modelo de Thomson, o cientista que descobriu o elétron, que, diga-se de passagem, chegou a considerar por um tempo a possibilidade de que o átomo teria sua carga positiva concentrada em uma região central) ao modelo de Ernest Rutherford (1871-1937) de 1911. O Zeitgeist admitia diferentes possibilidades para a estrutura do átomo, mas como medi-la? A contribuição (fundamental) do físico neozelandês, que virou barão na Inglaterra, deu-se por meio de um boliche especial: as bolas eram as chamadas partículas alfa e os pinos eram átomos de ouro em uma fina folha desse material. Boliche estranho, pois as bolas no caso eram mais leves que os pinos, que ficam parados e a graça está em ver como as bolas se desviam deles. Ver e medir. Conclusão de Rutherford: a carga positiva se concentra toda em uma região central muito pequena dos átomos e os elétrons se espalham pela maior parte desse ente físico, que assim começava a se parecer com um sistema planetário.
E agora chega a vez de Niels Bohr. O problema do “modelo planetário” é que eletromagnetismo é diferente da gravitação. Cargas elétricas em órbita estão aceleradas e emitem radiação, perdem energia e colapsariam no diminuto núcleo positivo. A matéria simplesmente não existiria como nós a conhecemos. Esse era o problema que precisava ser resolvido, como podemos ler na figura abaixo, fac-símile do início do primeiro dos três artigos que o físico dinamarquês dedicou ao tema, num total de 67 páginas, que são reduzidas ao mínimo nos manuais de Física, não permitindo assim imaginar o esforço intelectual de Bohr. Logo na página seguinte à ilustrada aqui, a chave do problema:
“qualquer que seja a alteração nas leis de movimento do elétron, parece ser necessário introduzir nessas leis uma quantidade alheia à eletrodinâmica clássica, i.e. a constante de Planck, ou, como muitas vezes é chamada, o quantum elementar de ação.”
Ao mundo clássico Bohr impôs uma “trava quântica” às energias e às quantidades de movimento dos elétrons. Não fez isso para os átomos de ouro, muito complicados, mas para o mais simples, o hidrogênio, com apenas um elétron orbitando em torno de um único próton. E os átomos impossíveis no universo clássico tornaram-se estáveis no mundo quântico. Alguns diriam que isso não passa de metafísica, mas “isso” explicava também todas as observações experimentais das frequências de luz absorvidas ou emitidas pelos átomos de hidrogênio, que foram vistas quase trinta anos antes, e previu outras, vistas depois, que validaram então definitivamente esse modelo de átomo. Um sucesso retumbante, não havia como voltar atrás: a ciência passou a precisar de toda uma mecânica quântica, que em 13 anos tornou obsoleto esse modelo, mas para a qual Bohr faria outras contribuições talvez ainda mais importantes [VIII].
Dessa missa não contei a metade [IX]. Mas acredito que inclui um bom sermão: os caminhos e os embates na construção do conhecimento podem ser tão ou mais instigantes do que seus melhores resultados em si e, se quisermos entender a ciência, precisamos conhecer como é feita. Há tempo ainda para um pequeno ofertório que complementa esse sermão. A sétima referência citada por Bohr no primeiro dos seus artigos sobre o átomo é um trabalho de Arthur Erich Haas de 1910. E qual é a história de Haas? Esse físico austríaco (1884-1941) almejava a cátedra de História da Física da Universidade de Viena e para isso fez uma livre docência na área. Os catedráticos de física da universidade, no entanto, hesitaram, pois não sabiam muito de história e por isso exigiram uma livre docência em física, só para garantir. Haas então (era 1909) leu o que estava acontecendo na área e ficou intrigado com o nascente interesse pelos quanta de Planck. Concebeu um modelo atômico, que antecipa em muitos aspectos o de Bohr (por isso o dinamarquês cita o austríaco). Ao defender sua tese foi ridicularizado por Ernst Lecher: aquela tese seria uma piada carnavalesca! [X] Quem foi Ernst Lecher? Foi um físico importante, discípulo de Ernst Mach, que abominava os átomos (como já escrevi acima)! É no mínimo uma bela coincidência.
Haas acabou sendo reconhecido pelo seu trabalho, mas seu modelo não ia tão longe quanto o de Bohr, pois sua direção estava correta (ligar a constante de Planck à descrição dos átomos), mas o sentido não. Bohr achava que o fundamental era a constante e entender os átomos dependia dela. Haas achava que o átomo de hidrogênio (o mais simples e abundante do universo) era o fundamental e por isso seria legal dar sentido à constante de Planck com ele.
Mais de um século depois dessa história, a complexa relação entre ciência, seu ensino e o público ainda intriga. Por um lado, o átomo de Bohr está obsoleto e errado, mas, por outro, é alvo de discussão e paixão até hoje: “porque está certo ensinar ideias erradas em física” [XI] ou “não gozem do átomo de Bohr” [XII]. E o que diz o Google? Suas imagens não deixam dúvidas: o átomo para quase todo mundo continua a ser aquele pensado em 1913 por um ex-jogador do Akademisk Boldklub Gladsaxe, atualmente na segunda divisão do futebol dinamarquês. Provavelmente essa imagem perdurará: vida longa para o átomo de Bohr.
[I] Para dizer a verdade, as órbitas nessas imagens são elípticas, que corresponderiam ao átomo de Bohr-Sommerfeld, mas faço a licença poética, para não complicar demais o texto, sem perder muito de sua precisão.
[II] O modelo de Niels Bohr é de 1913, mas os trabalhos de Erwin Schroedinger (1926) passam a descrever os átomos como eles de fato sempre foram, mas a gente não sabia.
[III] S. B. McKagan, K. K. Perkins, and C. E. Wieman. PHYSICAL REVIEW SPECIAL TOPICS - PHYSICS EDUCATION RESEARCH 4, 010103 (2008).
[IV] Havia prometido essa história no final de outro texto: https://www.unicamp.br/unicamp/ju/artigos/peter-schulz/5145-autores-particulas-e-catedrais
[V] E depois também: https://www.encyclopedia.com/science/science-magazines/historic-dispute-are-atoms-real
[VI] O movimento Browniano também foi descrito independentemente por Marian Smoluchowski em 1906. É um dos exemplos do que o sociólogo da ciência Robert Merton, chamou de múltiplas descobertas, conceito que talvez não tenha recebido a atenção que talvez mereça.
[VII] Mais um caso de múltipla descoberta?
[VIII] Mais uma história que se engata. Ao leitor interessado recomendo o artigo de Cássio Vieira Leite e Antonio Augusto passos Videira
[IX] Quem quiser ler o resto da missa, recomendo TRÊS EPISÓDIOS DE DESCOBERTA CIENTÍFICA: DA CARICATURA EMPIRISTA A UMA OUTRA HISTÓRIA, de Fernando Lang da Silveira e Luiz Peduzzi
[X] https://www.encyclopedia.com/people/science-and-technology/physics-biographies/arthur-erich-haas
[XI] https://blogs.scientificamerican.com/guest-blog/why-it-s-okay-to-teach-wrong-ideas-in-physics/
[XII] https://blogs.scientificamerican.com/cocktail-party-physics/dont-be-dissin-the-bohr-model/