Idos de 1980, início da minha graduação em Física. Meu colega de turma e xará (Peter Haagensen, que largou a Física e virou diretor do Deutsche Bank em Londres) soube que um prêmio Nobel daria uma palestra naquele dia na USP. Perguntando aqui e acolá em tempos sem internet, descobrimos que uma Kombi levaria os interessados da Unicamp à São Paulo. A decisão foi simples: matamos a aula da tarde e incluímo-nos na pequena excursão. O prêmio Nobel era Hans Bethe (1906-2005), um palestrante fascinante e extremamente simpático, embora pouco tenha entendido da palestra em si. Era algo sobre astrofísica, tema que lhe deu o famoso prêmio na modalidade Física em 1967, mas depois descobri que ele "fez de tudo um muito", batizando uma coleção de fórmulas e modelos, incluindo a rede de Bethe, que foi a base do meu projeto de mestrado. No entanto, não vou falar do seu trabalho científico e sim de passagens de sua vida e de seus colegas e amigos. Em vez de ciência, contar um pouco sobre os cientistas. Às vezes a divulgação científica parece texto de agência de notícias, como se não houvesse um jornalista por traz das matérias realmente saborosas. Perdemos a noção de que não basta apresentar os resultados da ciência, como observou Bruno de Pierro recentemente[i]. Relembremos, então, o quanto faz falta o bom (bem como o mau) humor para a ciência[ii].
Bethe, físico alemão, que fugiu da Alemanha nazista, participou da construção da bomba atômica, etc, etc, foi pesquisador ativo até depois de completar 90 anos: aos 92 publicou um artigo no Astrophysical Journal[iii]. Não era um daqueles artigos com 10 ou 15 autores, apenas assinado pelo emérito, como ficou comum hoje em dia: eram só Hans Bethe e Gerald Brown, que, aliás, ganhou um prêmio que também leva o nome do alemão. Pois bem, quando mais jovem, um dos artigos mais famosos de Bethe ele não escreveu e nem contribuiu de alguma forma, o que revela seu humor e a de um colega, George Gamov. O artigo é o famoso "Alpher, Bethe e Gamov paper"[iv], baseado no trabalho de doutorado do primeiro autor sobre a origem do universo (Na verdade sobre a origem dos elementos químicos). Gamov, orientador de Alpher, queria incluir Bethe, para que a lista de autores se parecesse com alfa, beta e gama. Bethe foi incluído (com a observação "in absentia") para que o nome do artigo ficasse assim bonito. Bethe, como um dos revisores da revista em que foi publicado, gostou da ideia e tirou o "in absentia". [v]. Aliás, Gamov visitou o Brasil e trabalhou com o grande físico pernambucano Mário Schenberg (1914-1990), concebendo juntos o "processo Urca", que é uma reação nuclear então desconhecida e que explicava coisas que acontecem em algumas estrelas. Sim, o nome da descoberta é porque foi concebida no famoso cassino carioca.
Bethe tem outras histórias pitorescas, a primeira delas eu reservo para mais tarde. Por enquanto, acrescento aqui um de seus amigos, também físico de origem alemã, Rudolf Peierls[vi] (1907-1995), autor da "substituição" que leva seu nome, base de uns quantos trabalhos meus. Antecipo esse personagem para mostrar que lugar de ciência não é só na universidade ou nos cassinos. Bethe e Peierls trabalharam juntos na Universidade Manchester, era começo dos anos 1930. Numa visita à Cambridge foram desafiados a resolver um problema em aberto na época e mordidos, como se poderia dizer, aproveitaram bem as quatro horas de viagem de trem de volta a Manchester para resolvê-lo. Lugar de ciência é, portanto, na universidade, cassino e trem. Ah sim, Peierls foi orientador de Gerald Brown, aquele que colaborou no "paper" com o Bethe nonagenário mencionado acima. A estadia de Peierls na Inglaterra em 1932 foi financiada por uma bolsa da Fundação Rockfeller. No seu relatório de atividades, o físico incluiu a concepção de uma criança. Li essa história em um livro de John Ziman (físico e historiador da ciência inglês), acho, mas não consegui recuperar a fonte. De qualquer forma, sua filha Gaby Ellen nasceu em 1933. As datas pelo menos conferem. Fico imaginando acrescentar algo assim em um relatório para uma agência financiadora hoje em dia...
Deixando o bom humor de lado é hora de um pouco de mau humor, embora genial no caso. O mal-humorado é o físico austríaco Wolfganf Pauli (1900-1958) com quem Rudolf fez o seu doutorado. Baita trabalho, mas o orientador fazia de tudo para mostrar que não gostava muito do orientando (ou para fingir que não gostava). Certa vez convidou-o para tomar cerveja. Lá pelas tantas o estudante perguntou ao mestre: afinal, por que você me convidou? A resposta foi algo como: “Para verificar se pelo menos bêbado você era uma pessoa interessante, só que não é o caso”. Pauli era também o terror dos seminários: interrompia vários dizendo: "isso nem ao menos está errado!" Sua posição era de que algo errado pelo menos mostrava um caminho que não deveria ser seguido. O errado era ao menos útil. Fico imaginando se Pauli estivesse vivo, com a crescente profusão de artigos que estão apenas certos por aí.
Voltando a Hans Bethe, bem no início de sua carreira, durante seu pós-doutorado, publicou um artigo-farsa (na verdade uma pequena nota, que ilustra a coluna: é hilária para quem sabe alemão e um pouco de Física). O título era "Sobre a teoria quântica do zero absoluto" e apresentava um cálculo fajuto do que se chama constante de estrutura fina. Essa constante era uma obsessão na época com vários trabalhos publicados meramente especulativos e baseados em argumentos numéricos espúrios. Ou seja, físicos criticando a própria física com bom humor e gozação. Funcionou, mas os autores tiveram que pedir desculpas em nota publicada na mesma revista posteriormente. Até aqui eu só mencionei Bethe: seus colegas de embuste foram W. Riezler e Guido Beck (1903-1988). Esse último, físico nascido no ainda império Austro-Húngaro, merece também todo o nosso carinho. Preso na França no início da Segunda Guerra Mundial, conseguiu fugir para a Argentina, exercendo papel fundamental no desenvolvimento da Física, não só por lá, mas também aqui no Brasil durante duas longas estadas no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (uma parte da primeira na USP). Tive também a oportunidade de assistir a uma palestra de Beck no Instituto de Física da Unicamp, mas ainda ignorante para aprecia-la devidamente. Aliás, os verbetes em português e espanhol sobre ele são vergonhosamente curtos. Felizmente deu uma longa entrevista a John Heilbron no projeto de história oral do American Institute of Physics[vii]. A entrevista é de 1967 e a transcrição começa assim, fugindo um pouco da ideia desta coluna:
“O problema é mais geral, pois se você pensa em países como os da Europa ou Estados Unidos, nos quais as pessoas estão convencidas que precisam fazer ciência, é uma coisa. Mas se você for para países em desenvolvimento, ainda existe resistência. Assim a coisa toda precisa de outra base, porque não basta ter o conhecimento do que o cientista faz, mas também de como reage o ambiente em volta”.
Bela história a de Guido Beck, que, por sua vez, se entrelaça com as de tantos outros por aqui e poderíamos seguir numa espécie de longa "Quadrilha" de Carlos Drummond de Andrade. Lembrando dessas histórias, percebo o quanto se perdeu de uma certa espontaneidade e irreverência, que são necessárias para o bem da própria ciência e para a sua percepção no ambiente em volta.
[i]https://medium.com/@brunopierro/resultados-n%C3%A3o-bastam-58660fa98eef
[ii] Sobre Hans Bethe o verbete em inglês da Wikipedia é bem completo com referências, mas a página sobre ele na Universidade Cornell é interessante, como vídeos de palestras em que Bethe conta algumas passagens pitorescas sobre o nascimento da mecânica Quântica: https://bethe.cornell.edu/video2.html
[iii] https://arxiv.org/pdf/astro-ph/9802084.pdf
[iv] R. A. Alpher, H. Bethe, and G. Gamow, Physical Review 73, 803 (1948)
[v] É bom lembrar que atualmente há denúncias de sites de venda de coautorias em artigos científicos.
[vi] Uma boa fonte é a biografia por ocasião do centenário de nascimento de Peierls: https://royalsocietypublishing.org/doi/pdf/10.1098/rsbm.2007.0003
[vii] https://www.aip.org/history-programs/niels-bohr-library/oral-histories/450