Por Rodrigo Ribeiro Sousa*
A proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 206/2019, de autoria do deputado General Peternelli (União-SP), atualmente em análise pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJC) da Câmara dos Deputados, apresenta flagrante inconstitucionalidade, merecendo ser categoricamente rejeitada pela CCJC.
A PEC em questão pretende alterar os artigos 206, inciso IV e 207, §3º, da Constituição da República, a fim de permitir que as instituições públicas de ensino possam cobrar mensalidades dos estudantes. Os recursos seriam destinados ao custeio das instituições de ensino superior e seria garantida a gratuidade aos alunos que são “economicamente desfavorecidos”. Ocorre, porém, que a Constituição veda expressamente, no art. 60, §4ª, inciso IV, a apresentação de emendas que visem a eliminar os direitos e garantias individuais. O direito à educação, como direito social constitucionalmente garantido, constitui-se em um direito subjetivo ao ensino gratuito em estabelecimentos oficiais de ensino, não podendo, portanto, ser suprimido ou restringido por lei e tampouco por emenda à Constituição, sob pena de violação de norma constitucional que configura “cláusula pétrea”.
A doutrina constitucionalista há muito elaborou a noção de “vedação ao retrocesso” no que tange aos direitos sociais, de modo que o núcleo essencial de tais direitos sociais deve ser considerado constitucionalmente cristalizado e assegurado, sendo inconstitucionais quaisquer medidas que venham a representar a sua supressão sempre que tais direitos já tenham sido efetivamente garantidos, como é o caso do direito social à educação.
Outro aspecto da proposta em que há clara inconstitucionalidade é a previsão de que as análises para a concessão da gratuidade aos alunos que “não tiverem recursos suficientes” deverão ser feitas por critérios “definidos pelo órgão ministerial do Poder Executivo”. Tal previsão, que viola a autonomia universitária, consagrada no art. 207 da Constituição, afronta até mesmo o princípio federativo, uma vez que critérios impostos pelo Poder Executivo federal seriam aplicados a instituições de ensino ligadas os demais entes federados (Estados, Distrito Federal e municípios).
Para além da flagrante inconstitucionalidade da PEC, vale destacar, quanto ao mérito, que a PEC alinha-se a um movimento que vem se articulando de forma cada vez mais sistemática no Brasil com o objetivo de efetivar um verdadeiro desmonte dos direitos sociais previstos na Constituição Federal de 1988. Tal movimento, que se explicita, por exemplo, em medidas como a Reforma da Previdência e a proposta de limitação da abrangência do SUS, tem por objetivo solapar os princípios de inclusão social, participação e cidadania que resultaram no pacto social estruturado pelo constituinte no contexto de redemocratização do país.
Parece não ser apenas circunstancial, nesse sentido, que a PEC, de autoria de um parlamentar que detém a patente de general, tenha voltado a tramitar na CCJC na mesma semana em que setores das Forças Armadas divulgaram o documento intitulado “Projeto de Nação”, em que defendem, por exemplo, a cobrança pelos serviços de saúde prestados pelo SUS.
Outro aspecto digno de nota é o desconhecimento, por parte do autor da proposta, da realidade das universidades públicas brasileiras, pois a PEC parte do pressuposto de que haveria uma maioria de ricos nas instituições de ensino superior do país. Dados de 2014 de uma pesquisa promovida pela Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) e pelo Fórum Nacional de Pró-Reitores de Assuntos Comunitários e Estudantis (Fonaprace) indicam, contudo, que 66,19% dos estudantes da rede federal de ensino superior vêm de famílias cuja renda mensal não ultrapassa 1,5 salário mínimo per capita, resultado de diferentes políticas de inclusão promovidas pelas universidades brasileiras, como as cotas raciais, sociais e os vestibulares indígenas.
Por fim, quanto à forma de se atingir os fins pretendidos pela PEC - que estaria sendo apresentada para que os alunos com recursos pudessem pagar as despesas com educação superior - vale destacar que já existem outros caminhos para que estudantes dotados de recursos possam contribuir para o custeio das universidades públicas, como é o caso dos fundos patrimoniais instituídos pela Lei Federal nº 13.800/19, por exemplo. A estruturação, pelas universidades, de programas para captação de recursos de alunos com perfil de alta renda já é plenamente apta a ser realizada por meio de tais fundos patrimoniais, sem que seja necessário violar o direito social à educação e promover um desmonte da Constituição da República.
Por todos esses aspectos, não há outra solução a ser dada a essa proposta pela CCJC da Câmara dos Deputados senão promover o seu imediato arquivamento.
Observação: Os artigos publicados não traduzem a opinião do Jornal da Unicamp. Sua publicação tem como objetivo estimular o debate de ideias no âmbito científico, cultural e social.
*Rodrigo Ribeiro de Sousa é advogado e professor nos cursos de Administração Pública e de Administração da FCA Unicamp.