Na semana passada começamos a expor as consequências do deslocamento de atividades e empregos para fora do território americano. Já faz uns dez anos que Alan S. Blinder, um economista de Princeton, publicou alguns artigos sobre o offshore de empregos desse nível. Eram textos bastante repetitivos e insistentes, de grande repercussão, talvez menos pela profundidade ou novidade e mais pelo tamanho de suas projeções. Para os interessados, indico no final deste artigo os links em que estão disponíveis.
Blinder busca estabelecer alguns padrões da “offshorabilidade” dos diversos tipos de trabalho, projetando seus percentuais. O potencial de empregos exportáveis é enorme – algo perto de 50 milhões, a maior parte no setor de serviços, não na manufatura (já amplamente afetada, aliás). Isso representa nada menos do que uns 40% do total de empregos dos EUA. Evidentemente, Blinder não estima que sejam todos esses empregos expelidos do território americano – é uma estimativa da possibilidade técnica. E, portanto, do impacto dessa possiblidade nas decisões internas (negociações, investimento em formação, etc.). Para o jogo das negociações e para o estabelecimento dos padrões de contrato, não é necessário que sejam exportados, é suficiente que sejam exportáveis.
Um elemento importante na sua análise dos padrões é que não vê necessária correlação entre a “exportabilidade” dos empregos e a densidade da educação ou treinamento desses profissionais. De fato, são exportáveis tanto os empregos que exigem muito treinamento (o White collar sofisficado) como aqueles que exigem quase nenhum (o blue collar elementar, fabril). O traço diferencial é outro: há serviços pessoais (personal delivery) e os impessoais. Suas frases conclusivas parecem desconcertantes, se pensamos no tipo de país que daí resultaria: "Os empregos consistentes em serviços impessoais vão migrar para fora, mas os serviços pessoais ficarão aqui”. Já imaginou o que ficaria dentro do país?
Se alguém levar isso às últimas consequências, veríamos os Estados Unidos como um aglomerado de trabalhadores de baixa qualificação (em sua maioria) em setores de personal delivery: manicures, auxiliares de enfermagem e cuidadoras, atendentes de portaria, zeladores e faxineiros, encanadores e carpinteiros, bombeiros e guardas de trânsito. Ao lado destes, um número pequeno, bem pequeno, de profissionais altamente educados, médicos, engenheiros e cientistas. E presidentes de fundos financeiros, claro...
Blinder avisa que não é essa a sua exata previsão, nem é essa a base de sua proposta de politica pública. Apenas alerta para o fato de que o país precisa de um sistema educacional que faça, nas novas condições, o papel que souber fazer quando da primeira revolução industrial. Lembra, contudo, que os investimentos e reformas na educação demoram a maturar, algo como uns 20 anos. Portanto é preciso começar imediatamente, para “educar a juventude americana para empregos que serão de fato disponíveis daqui a 20 ou 30 anos (...) desenvolver habilidades que um computador não pode replicar”
O alarme de Blinder foi visto por alguns críticos como exagerado nos números. Mas apontou para a necessidade de reconsiderar a combinação entre conhecimento tácito e codificado e das implicações para o sistema educativo. Mais exatamente, para definir melhor o conhecimento tácito (embutido nas pessoas) indispensável para o uso consistente do conhecimento codificado e rotinizável.
Alguns analistas têm mostrado que o neo-taylorismo digital tem implicações e pressupostos complexos. Fragmentar tarefas, à la Taylor, é essencial para permitir que sejam descentralizadas – assim podem ser deslocados para outras regiões segmentos de serviços como a venda varejista, a saúde, finanças, tipicamente focalizadas em processos comerciais, como receber ordens de compra, marketing, entrega, logística. O neo-taylorismo digital viabiliza a tradução dos atos produtivos em rotinas que podem exigir algum grau de educação, mas não, necessariamente, criatividade e independência de julgamento, habilidades usualmente associadas à ideia de “sociedade do conhecimento”. Volto ao livro de Phillipe Brown e seus colegas, centrado na análise do processo britânico. Eles atiram no alvo:
O trabalho criativo presente na produção de novos modelos, programas e plataformas tem sido separado do que se chama de analítica de rotina. A permissão para pensar é restrita a um grupo relativamente pequeno de trabalhadores do conhecimento (knowledge workers) atualmente ainda mantidos dentro da Grã-Bretanha; e o trabalho mais rotineiro (isto é, personalização de produtos para diferentes mercados e clientes), também visto como o trabalho pesado, é transferido para escritórios na Bulgária e na Índia, onde diplomados de graduação podem ser contratados por um terço do custo. [The global auction : the broken promises of education, jobs, and incomes - Phillip Brown, Hugh Lauder, and David Ashton, 2011, Oxford University Press]
A situação tem seu lado irônico, dizem esses autores: aqueles que aplicavam Taylor ao proletariado blue-collar são, agora, eles próprios, taylorizados.
Brown e colegas distinguem três tipos de “knowledge workers”: os developers, os demonstrators e os drones. E explicam:
Os developers incluem aqueles de alto potencial e desempenho (...). Eles representam não mais que 10 a 15 por cento da força de trabalho a quem se dá a "permissão para pensar" e incluem investigadores seniores, gerentes e profissionais. Demonstrators são designados para implementar ou executar o conhecimento existente, os procedimentos ou técnicas de gestão, muitas vezes com a ajuda de software. Muito do conhecimento utilizado por consultores, gestores, professores, enfermeiras, técnicos e assim por diante é padronizado ou pré-embalado. Com efeito, embora os “demonstrators” possam incluir pessoas de alta qualificação, o foco de sua atividade consiste em comunicação eficaz com colegas e clientes. Os drones são envolvidos no trabalho monótono, e deles não se espera que participem com o cérebro. Muitos dizem que o call center e os trabalhos de inserção de dados são exemplos clássicos, onde praticamente tudo o que se entrega aos clientes é prescrito em pacotes de software. Muitos desses empregos também são altamente móveis, já que podem ser padronizados e digitalizados. Eles estão cada vez mais preenchidos por trabalhadores bem-qualificados atraídos por salários relativamente elevados em emergentes economias emergentes ou, nas economias desenvolvidas, aqueles que são sobre-qualificados mas lutam para encontrar um trabalho que corresponda a sua formação ou expectativa” . [Global Auction, p. 81]
A tayilorização e mecanização do trabalho manual já eram conhecidas e estudadas. Já recebera muitas análises críticas, desde o famoso livro de Harry Braverman em 1974 (Labor and Monopoly Capital: The Degradation of Work in the Twentieth Century)
Mas o cenário, agora, é outro. Os personagens, também, Num certo momento alguns analistas tentaram recolocar a própria questão, perguntando se não havia uma polarização do trabalho, nas sociedades “avançadas” como a americana. Essa polarização teria como resultado um crescimento simultâneo de dois tipos opostos de trabalho – empregos de alta especialização e altos salários e ocupações de baixa qualificação e baixos salários.
O novo cenário é aquele em que a possibilidade de tayilorização atinge novos personagens . Para entender esse potencial, é preciso definir mais precisamente o que são as tarefas rotinizáveis, apropriáveis pelo programador e embutidos em processos ou dispositivos, liberando-os, por assim dizer, da dependência do julgamento e da flexibilidade do trabalhador direto. Ora, daí percebemos que tarefas rotinizadas e rotinizáveis são características de certas ocupações “médias”, não apenas manuais, mas aquelas dos contadores, funcionários de escritório, vendas e logística, etc. Essas rotinas podem e são embutidas em pacotes de software especialistas. E operadas à distancia.
E há aquelas operações menos rotinizáveis – não necessariamente aquelas que demandam muita educação ou treinamento. Há tarefas não rotineiras que requerem apenas “adaptabilidade” à situação, atenção visual, interação pessoal – dirigir automóveis, preparar refeições, instalar equipamentos, reparar um jardim, cuidar de velhos e doentes, e várias outras. Há outras ocupações (manuais ou não) que exigem pensamento abstrato, capacidade de equacionar e resolver problemas mais complexos, fazer julgamentos sobre as alternativas de ação, etc.
Assim, nos EUA, uma porção de analistas tem convergido para uma visão do trabalho em que certas estratificações se evidenciam: (1) oferta consistente de emprego em áreas que exigem “tarefas cognitivas não rotineiras”, aquelas da alta administração e da ciência e tecnologia, por exemplo; (2) emprego também crescente em ocupações com tarefas não rotineiras, mas manuais, como os serviços de cuidados pessoais; (3) emprego declinante em ocupações “médias” em que predominam tarefas rotineiras (funcionários de escritório, suporte administrativo, produção manufatureira, etc.).
Se essa evolução tiver mesmo esse desenho, um conjunto de desafios novos serão postos diante dos planejadores da educação do futuro, ou, pelo menos, do lado da educação que tem a ver com o trabalho e a remuneração.
Cabe, porém, uma nota de ceticismo preventivo. Educação não é apenas isso. Não é apenas uma preparação para operar no mundo, mas, também, quem sabe, para operar o mundo. O que é algo muito mais complexo e exigente. Salvo engano, ainda não transferimos tal reponsabilidade aos softwares. Salvo engano.
Artigos de Alan Blinder sobre o offshore de empregos:
- "Preparing America's Workforce: Are We Looking in the Rear-View Mirror? - Princeton University CEPS Working Paper No. 135 October 2006;
- "Offshoring: The Next Industrial Revolution?" Foreign Affairs, March/April 2006;
- "How Many U.S. Jobs Might Be Offshorable? - Princeton University CEPS Working Paper No. 142 March 2007;
- "Education for the Third Industrial Revolution - Princeton University CEPS Working Paper No. 163 May 2008.