Foto: ScarpaReginaldo Carmello Corrêa de Moraes é professor aposentado, colaborador na pós-graduação em Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. É também coordenador de Difusão do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre Estados Unidos (INCT-Ineu). Seus livros mais recentes são: “O Peso do Estado na Pátria do Mercado – Estados Unidos como país em desenvolvimento” (2014) e “Educação Superior nos Estados Unidos – História e Estrutura” (2015), ambos pela Editora da Unesp.

Deus e o diabo na terra do pré-sal

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Ilustra: Luppa SilvaO Brasil é um país cristão. É o que dizem. Quando eu nasci determinaram que eu era católico. Um padre jogou aquela água benta, disse umas coisas em latim, a cerimônia toda. Não me recusei e isso pode ter sido meu primeiro grande erro. No máximo teria engatado algum choro. Dizem que foi curto.

A marcha da fé teria outras etapas. Para completar a educação cristã, todo domingo tinha missa. O que era quase um inferno (Deus me perdoe!). Afinal, exigia que uma criança ficasse pregada naqueles bancos quase uma hora, naquele ambiente lúgubre da igreja, com perfume enjoativo de velas e incenso.  Era um tal de senta, levanta, ajoelha. E repetir umas frases sem significado, respondendo a um cara que fala umas coisas em língua que ninguém entende.  Que sufoco! O truque era atrasar e chegar apenas um minuto antes da tal da sagração da hóstia. A missa ficava “valendo” e se ganhava uns quinze a vinte minutos de tortura a menos.

Mas aí vem a escola e as aulas de catecismo. Na escola pública, sim, o que era quase um monopólio dos católicos. Até que havia coisas interessantes, umas estórias da vida de Jesus eram mesmo divertidas. Mas decorar as quatro orações era um porre. Salve Rainha. Padre Nosso. Ave Maria. Credo. Tudo para preparar a “primeira comunhão”, o rito em que o católico imposto confirma “voluntariamente” sua adesão ao plano de saúde vitalício. Aliás, mais do que vitalício, valia por duas vidas, a passageira, do vale de lágrimas, e aquela, mais duradora, do suposto vale das delícias. Do pó vieste, ao pó voltarás, porque este mundo não é teu lar.

Primeira comunhão parece meio que uma versão espiritual do exame de colonoscopia. Dois dias terríveis para um momento que é quase nada. Na minha época, que já vai longe, a gente fazia a confissão no sábado, começo da tarde. Era o procedimento da limpeza geral. Confessa os pecados, zera o taxímetro, paga as penitências rezando umas trinta orações. Aí começava o drama. Contavam às crianças, com requintes de maldade, que era preciso ficar limpo até a hora da hóstia, caso contrário ela iria verter sangue – ou você iria engasgar com tal força que alguém tinha que dar um chute no seu traseiro. Esta última versão parece que era uma corruptela da primeira, mais adequada ao espirito sombrio da igreja.

Ficar limpo. Eis a questão. Feita a confissão, você não pode mais pecar até a hora da comunhão. Beleza, só que nos martelavam que se peca por pensamentos, palavras e obras. Nada escapa da vigilância do Big Father. Palavras e obras até que se consegue segurar. Por umas vinte e quatro horas dá para aguentar. Mas... pensamentos? Se você bota na cabeça que não pode pensar naquilo é justamente naquilo que vai pensar. Até para lembrar que não deve pensar naquilo. Daí, na hora de engolir a pastilha é fatal: você tem certeza de que vai engasgar.  Quando não acontece nada você começa a perder a fé: consegui passar pela vigilância divina, então ela não é grande coisa.

Superado o obstáculo, quando você pensa que está livre, alguém mais sádico, com ou sem batina, vai lhe avisar que tem mais pela frente. Os sacramentos são sete e você passou por dois. Bom, nesta altura do campeonato não me restou alternativa senão dizer que estava em outra e que Ogum havia feito contato. Não era verdade, mas servia como desculpa. Afinal, melhor dizer que tem outro deus do que dizer que não tem nenhum. Porque hoje, como na era de John Locke, a tolerância se aplica a todas as religiões, mas não àqueles que não querem ter uma. Esses não pertencem à comunidade.

Ogum serviu para me livrar das chamas do inferno ou, pelo menos, do olhar desconfiado dos meus semelhantes tementes a Deus. Mas eu sabia que era falso. E que, portanto, eu estaria, sem dúvida, nos braços de Belzebu. Este, felizmente, reduziu os sacramentos a um único procedimento purificador: girar como salsicha no braseiro.

Fazendo as contas, talvez os sete sacramentos valham a pena. Vai que é assim mesmo. Anos mais tarde li a tal aposta de Blaise Pascal. A conversa do filósofo era malandra. O que você tem a perder? Diga que acredita na existência de Deus e nas consequências desse fato primordial. Se for mentira, você não perde nada. Se for verdade, você ganha um paraíso. Só que... tem um truque na conversa mole. Aceitar a chantagem de Pascal significa abrir mão de umas vodcas e baseados, entre outros refrescos do vale de lágrimas. Recusar significa aceitar a possibilidade de um fogaréu assando as partes.

Entendi então como aquele Jesus simpático que protagonizava velhas histórias, tinha sido transformado em um promotor de vendas. Um gênio do marketing. Com apenas doze vendedores-pracistas, conseguiu construir um império transnacional. Vendendo esse bem (ou serviço?) que ninguém manuseia e, se não receber, sequer pode reclamar ao Procon.

Feito o balanço, fico pensando se não é preciso ser um pouco ateu para não embarcar nesse cristianismo cínico. Jesus, como eu disse, me parecia um cara boa-gente. Excelente professor, explicava de modo simples ideias bastante complexas. Corajoso, expulsava os vendilhões do tempo. Hoje, os donos de templos preferem estórias vingativas do Velho Testamento. E quando falam de Jesus é para transformá-lo em uma caderneta de poupança ou fundo de investimento. Fico sem essa.
 

Um negócio em expansão

Em março de 2017, o repórter Marco GrilIo publicou interessante reportagem no jornal O Globo, do Rio de Janeiro. As informações são ricas. Resumo algumas delas.

Entre janeiro de 2010 e fevereiro de 2017 (7 anos) 67.951 entidades se registraram na Receita Federal sob a rubrica de "organizações religiosas ou filosóficas", urna média de 25 por dia. São Paulo encabeça a lista, com 17 mil desses registros.

O processo é simples: 1. registro em cartório, com a ata de fundação, o estatuto social e a composição da diretoria. Não há necessidade de qualquer comprovação teológica, doutrinária ou coisa do tipo. 2. os dados são apresentados à Receita, para que o órgão conceda o Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ), 3. Com o CNPJ em mãos, procurar a prefeitura e o governo estadual para solicitar, caso necessário, o alvará de funcionamento e garantir também a imunidade tributária.

A Constituição proíbe que sejam cobrados impostos desses templos, IPTU, Imposto de Renda (IR) sobre as doações recebidas, ISS, nem mesmo IPVA sobre os veículos. Alguns estados concedem isenção de ICMS. Mais ainda: se a igreja. pessoa jurídica, faz aplicações financeiras, não paga IR sobre elas. O ramo de 'serviços religiosos" progride e se diversifica. Já existem igrejas voltadas para ''públicos segmentados. Uma para surfistas, outra para homens que se sentem ofendidos pela existência de feministas. Não duvide, elas existem. Ainda ontem, jornais noticiaram algo a respeito do bispo de unia certa Igreja da Maconha. Como diria Wittaenstein: tudo é possível no mundo dessa lógica.

 

 

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