Foto: ScarpaReginaldo Carmello Corrêa de Moraes é professor aposentado, colaborador na pós-graduação em Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. É também coordenador de Difusão do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre Estados Unidos (INCT-Ineu). Seus livros mais recentes são: “O Peso do Estado na Pátria do Mercado – Estados Unidos como país em desenvolvimento” (2014) e “Educação Superior nos Estados Unidos – História e Estrutura” (2015), ambos pela Editora da Unesp.

E quando o Messias pisa na bola?

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Ilustra: Luppa SilvaO samba é conhecido: Anunciaram e garantiram que o mundo ia se acabar... 

Há muitas teorias do fim do mundo. E muitas teorias da salvação do mundo e instauração do paraíso na terra. Várias delas estimam um momento, data determinada, forma de execução. Quando arriscam esse nível de detalhe, encaram o risco da “desconfirmação”. E o que acontece depois, quando o mundo não acaba, os marcianos não chegam?

Você já ouviu discursos desesperados desse tipo:  “O mundo está em ruínas. Tudo apodrece, tudo desaba. Sodoma, Gomorra, esculhambação. Está um inferno. E isso é apenas um sinal. Vai piorar, vem aí o apocalipse”.  

Ora, esse discurso não é nada cômodo. Não parece agradável acreditar em novas tragédias, maiores do que as presentes . Afinal, o presente já é intragável. Em geral, a visão de fim de mundo é coisa que tentamos evitar, não é? Nem sempre. Talvez ela não provoque medo ou ansiedade. Talvez ela sirva como justificativa para o medo, uma razão “real” para o medo. E isso, paradoxalmente, é um modo de conviver com o medo e a ansiedade. Torná-lo compreensível e, quem sabe, suportável. De certo modo, dói menos.

Também há um tipo diferente de crença frustrada. Aquela que aposta nos feitos milagrosos de um messias, redimindo a humanidade e transformando o mundo em paraíso. Quando a coisa não corre deste modo, alguém é apontado como bode expiatório. O mundo ou o messias. Um deles falhou, mas a profecia era correta. E, sobretudo, era correto nela apostar todas as fichas. Fanáticos em geral casam com o erro, a desconfirmação de suas crenças. Não se divorciam.

Em 1957, o psicólogo Leon Festinger publicou livro que criaria todo um campo de estudos. A Teoria da Dissonância Cognitiva.

O núcleo da teoria de Festinger era algo assim:  As pessoas buscam uma consistência interna, consistência entre aquilo que sabem ou acreditam e aquilo que fazem. Por exemplo, pessoas que fumam e sabem que o fumo é nocivo tratam de arrumar modos de conviver com a prática de seguir fumando. Uma dessas táticas de adaptação é “arrumar” novos “conhecimentos” ou crenças que sirvam para isso. Por exemplo:  “tenho ansiedade, que pode me matar, fumar reduz esse mal, é um ‘remédio’, ainda que tenha certos efeitos colaterais...”

Ocasionalmente, claro, terceiros, caridosos, tratam de fornecer gentilmente tais “conhecimentos” ou, pelo menos, de solapar aqueles outros conhecimentos contrários. A indústria do tabaco fez isso ao longo do século. Deliberadamente, como um programa político claramente delineado por cientistas , comunicadores e especialistas em marketing politico. É uma estória conhecida e documentada, com vários livros a respeito. Mas esse é apenas um detalhe na trajetória das crenças bem firmadas apesar de desconfirmadas.

O mesmo Festinger, com outros companheiros, estudou um episódio desse tipo. Está neste livro:  Leon Festinger, Henry W. Riecken e Stanley Schachter.  When Prophecy Fails: A Social and Psychological Study of a Modern Group that Predicted the Destruction of the World. University of Minnesota Press 1956.

O que acontecia com as pessoas pertencentes a um grupo de crentes quando sua profecia de juízo final era contrariada pelos fatos? A estória era simples. O grupo estudado por Festinger acreditava que no dia X o mundo iria acabar e que, antes disso, objetos voadores dirigidos por extra-terrestres recolheriam os crentes em determinada montanha. O grupo se preparou para isso, mas, no dia X, não rolou a captura. Nem o juízo final. Daí os cientistas observaram os diferentes modos pelos quais os indivíduos se acomodaram à negação da profecia. 

Uma das reações, muito forte, diz Festinger, é explicada pelo esforço do crente na geração da fé: “Um homem convicto é alguém difícil de mudar. Diga a ele que você discorda e ele vira a cara. Mostre fatos ou números e ele questiona suas fontes. Apele à lógica e ele não consegue entender o argumento”.  A pessoa convicta fez um certo investimento em sua crença – ela virou sua identidade. “O indivíduo frequentemente se tornará não apenas inabalável, mas até mesmo convencido da verdade de suas crenças, mais do que antes”.

As teses de Festinger passaram por diferentes críticas e revisões. Estudos sobre outras comunidades de crentes, com profecias não realizadas, mostraram resultados diferentes, diferentes modos de acomodação ao insucesso. De qualquer modo, a tese da dissonância cognitiva tem elementos valiosos demais para serem descartados. Sobretudo a ideia  de “levar a sério” as crenças. Reconhecer a racionalidade essencial de pessoas que frequentemente são rotuladas como simplesmente irracionais.  O desafio é entender o tipo de racionalidade aí existente.

As observações de Festinger mostravam que  as formas de reação, diante da “falha da crença”, não são necessariamente o reconhecimento do “erro” ou da invalidação da profecia. Alias, em geral, não passam perto dessa saída.

O que nos deve levar a pensar se tem sentido lembrar aos crentes fervorosos que suas expectativas não foram cumpridas e que, aliás,  “eu bem que avisei”. É possível que ouçamos: tinha tudo para dar certo, mas você torceu contra.

 

 

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