Alguns livros somem do radar, mesmo dos estudiosos especializados. Mas, de repente, quase por acaso, olhamos para eles, folheamos o que rabiscamos nas suas margens e lembramos do que diziam e do que faziam lembrar. É o caso de um livrinho de Barrington Moore Jr: Reflexões sobre as causas da miséria humana e sobre certos propósitos para eliminá-las (livro de1972, publicado no Brasil em 1974).
Um dos enigmas enfrentados pelo livro tem notável atualidade: afinal, por que os norte-americanos, pioneiros na universalização da escola primária e na escola média, vanguardistas na massificação do ensino superior, detentores da maior máquina de ciência, tecnologia e cultura do mundo, convivem com o fato de elegerem primatas inferiores para a presidência da república? Afinal, isso não seria mais próprio de repúblicas bananeiras?
Existe algo mais fundo a determinar tal maldição? Quando ainda candidato, Barak Obama disse uma frase aguda, mais ou menos assim: o problema não é apenas sair do Iraque, é sair de uma mentalidade que nos enfia em seguidos Iraques. Terminou seu governo celebrando e confirmando a força desses limites. Será esse elemento um fator explicativo para as perguntas acima?
BM diz que no desenvolvimento norte-americano, em especial na segunda metade do século XX, há “consideráveis elementos de uma prosperidade guerreira”. Não acredita que isso tenha qualquer traço de “destino”. Pelo contrário, vê possibilidade de mudança, mas...
O seu argumento é complexo: a guerra e o desperdício suavizam as crises e minimizam, por exemplo, as demandas por redistribuição de renda, poder e prestígio. O capitalismo americano é popular e engendra o que Paul Baran e Oskar Lange chamavam de ‘imperialismo do povo’. Porém, o que se verifica, diz BM, é “ausência de uma demanda de mudança – não a impossibilidade de mudança”.
A chave para explicar a permanência ou a mudança é a “incoerência, apatia e confusão daqueles que se beneficiariam com políticas diferentes” e que assim podem permanecer porque “os outros pagam os custos”. Em suma, o “imperialismo do povo” tem como empurrar as coisas com a barriga enquanto alguém – fora do jogo - pague o pato.
A argumentação pode ser questionada em seus fundamentos, mas não é o que pretendo fazer aqui. Apenas chamo a atenção para um ponto inquietante da cadeia lógica de BM. Dado o enquadramento que descrevemos acima, seria difícil esperar transformações profundas que se produzam dentro do sistema político, com apoio de massas a reestruturações da desigualdade, por exemplo. Mesmo as mudanças incrementais, nesse quadro, seriam aquelas do famoso lema do Gattopardo: mudar algo para que tudo continue na mesma.
A crer na análise de BM, o sistema social parece quase completamente imune a esse tipo de sacolejo. A possibilidade da ruptura parece quase que totalmente atrelada a acasos, atos inusitados ou a causalidades que não controlamos. E aí vem uma passagem luminosa do livro, justamente aquela que me fez escrever esta crônica.
No final do livro, BM pergunta se poderia haver “uma quebra ou colapso importante do aparelho político sem prévio apoio de massa para sérias mudanças sociais”. E menciona uma possibilidade muito sugestiva:
“Há ainda algumas boas razões históricas e sociológicas para sustentar que tal colapso poderia ocorrer e permitir uma sucessão revolucionária. (...) num ambiente urbano a criação de uma massa revolucionária é uma transformação muito rápida. Fundamentalmente, ocorre através da quebra do fornecimento de bens e serviços de que uma cidade depende. Nos anos recentes têm ocorrido numerosas paralisações parciais por uma variedade de causas que nada têm a ver com a revolução em sua concepção comum, tais como greves ou quase greves de empregados-chave: polícia, bombeiros, lixeiros, professores e empregados dos correios. Elas mostraram a vulnerabilidade da cidade à interrupção dos serviços. Uma das possibilidades mais ameaçadoras e sociologicamente interessantes é uma repetição de interrupção do fornecimento de energia elétrica que afetou grande parte do Nordeste não há muito tempo [BM refere-se ao apagão de 1965]. Sob a capa de bom humor do último corte de luz havia uma preocupação, não necessariamente apaziguada pelas frequentes emissões assegurando a população de que o Pentágono estava funcionando normalmente e tinha certeza de que não se tratava de caso de emergência. Energia elétrica é muito mais importante para uma cidade moderna do que o fornecimento de trigo para a cidade de Paris no século XVIII.”
Isso foi publicado em 1972. Um outro grande blecaute aconteceria em 1977. Mas o mais inquietante ocorreu em agosto de 2003. Afinal, atingia em cheio uma cidade traumatizada pelo famoso evento das Torres Gêmeas, ocorrido dois anos antes. Um apagão monstro paralisou e assombrou cidadãos e autoridades de boa parte do nordeste americano, incluindo a cidade de Nova Iorque. O noticiário registrou múltiplos aspectos do evento – um choque na vida das pessoas, nos seus sentimentos e ansiedades. Boatos, improvisações, percepção de vulnerabilidades desconhecidas - essa era a crônica daquelas 24 horas dos nova-iorquinos. Para outras cidades, o apagão durou até 90 horas.
Metrô, iluminação das ruas, casas e lojas, tudo no escuro. Evidentemente, comunicações prejudicadas. A rigor, o único sistema estável era o rádio – e quem tinha um aparelho a baterias ou pilha ouvia as insistentes mensagens das autoridades policiais, tentando acalmar ou advertir, a depender do cliente.
Assim, naquele dia e nos dias seguintes, um simples passeio pelo noticiário internacional pertinente mostrava o quão instável, efêmera e pouco confiável é a ordem das coisas, no coração do globo. E quão dependente ele é - nas menores e mais cotidianas realidades -- daquilo que aquele coração suga do resto do mundo. Por exemplo, em usinas de energia termoelétricas movidas a carvão e petróleo.
Hegel dizia que o mocho de Minerva, a sabedoria, levanta voo ao anoitecer. Pelo jeito, esqueceu de mencionar a necessidade do fornecimento de energia... não foi o mocho que alçou voo. Durante o eclipse das usinas, os fantasmas, temores e sentimentos baixos afloravam.
O livro de Barrington Moore talvez exibisse uma premonição. Por vezes, o terremoto vem de onde menos se espera. Será que isso se deve a uma falha no subsolo ou nas nossas percepções, que não registram o que deviam registrar?