Foto: ScarpaReginaldo Carmello Corrêa de Moraes é professor aposentado, colaborador na pós-graduação em Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. É também coordenador de Difusão do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre Estados Unidos (INCT-Ineu). Seus livros mais recentes são: “O Peso do Estado na Pátria do Mercado – Estados Unidos como país em desenvolvimento” (2014) e “Educação Superior nos Estados Unidos – História e Estrutura” (2015), ambos pela Editora da Unesp.

Menos democracia para salvar a democracia

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Ilustra: Luppa SilvaLi apenas agora um artigo que Peter Orszag publicou em 2011. Mas, descontadas as referências factuais, não faria diferença. Poderia ter lido aquilo nos anos 40, como uma das sabedorias difundidas pela Sociedade Mont-Pelérin, ou nos anos 70, pelos sulistas ultraconservadores como James Buchanan e George Tuloch, a escola da Public Choice de Virginia. Todos escreveram coisas semelhantes, requentadas. Bom, poderia ter lido coisa bem parecida, também, nos liberais anti-sufrágio do século XIX. Vem de longe o sonho de blindar as decisões políticas – rotuladas convenientemente de “administrativas” –  frente ao furor reformista da plebe, indevidamente “armada” do voto.

Quem quiser apreciar a prosa de Orszag, aqui vai o link: Too Much of a Good Thing - Why we need less democracy, The New Republic, September 14, 2011.

O bom do texto de Orszag é que a franqueza transborda e a biografia do autor sugere as razões. Salvo engano, na ocasião do artigo ele acabara de deixar o cargo de diretor do Escritório de Gestão e Orçamento do governo Obama. Mas a sua identidade real – aquela que faz mais diferença - está no rodapé do artigo: vice chairman do Citigroup. E o primeiro diretor do Hamilton Project, o thinktank da nova direita do partido Democrata, financiada pela Goldman Sachs. Enfim, mais um dos tantos sábios de Wall Street com os quais Obama povoava a Casa Branca, talvez substituindo as estagiárias de Clinton.

No livro Wall Street Capitalism – the Theory of the Bondholding Class (World Scientific, 2000), o prof. Ray Canterbery recupera um comentário certeiro de Alan Sloan, editor da Newsweek (1998):
 

“Hoje em dia, os mercados não olham para o presidente, mas para Greenspan [presidente do Conselho do Federal Reserve], para o Secretário do Tesouro, Robert Rubin, e para o número 2 de Rubin, Larry Summers [que sucederia a Rubin]. (...). Se Greenspan, Rubin e Summers deixassem os cargos ao mesmo tempo, isso, sim, os mercados considerariam uma verdadeira crise de estado."


Não sei por que, fiquei com uma estranha sensação de dejá-vu em 2016.

Canterbery explora o mundo desses super-astros e lá pelo fim do livro comenta a moral da fábula:
 

 “Terminamos como começamos. Wall Street sabia que o impeachment e o julgamento de Clinton não prejudicariam os mercados financeiros. Apesar de tudo que a Casa Branca fizera por Wall Street, o que mais WS apreciava era aquilo que a Time, uma revista cada vez mais conservadora, chamava de “O Comitê para Salvar o Mundo”. A Time tinha três “mercadistas” na sua capa (14/2/1999) – Alan Greenspan, em primeiro plano e parecendo tão arrogante quanto estava na primeira vez que Clinton fez o discurso sobre o State of Union, o então secretário do Tesouro, Robert Rubin, sorrindo acima do ombro de Greenspan, e Lawrence Summers, o sucessor cuidadosamente preparado de Rubin, aparentando seriedade, sobre o ombro esquerdo. Para aquele momento histórico, era o insulto final de Wall Street.”


Essa prévia me parece adequada para enquadrar o artigo do chairman do City. Talvez para acentuar ainda uma vez suas raízes, além daquelas referências aos liberais anti-voto.

O artigo de Orszag atualiza essa visão conservadora, aplicando-a a um tópico do momento, o cerco do governo Obama pelos republicanos, embargando a votação do orçamento e condenando a administração a uma situação peculiarmente constrangedora.

Pois bem, o sr. Orszag, como disse, comandara o escritório do orçamento e o episódio deve tê-lo animado a expor suas taras no artigo. Mas elas certamente estavam guardadas no seu mais íntimo depósito de desejos. Coisas como essas não se improvisam nem surgem de um rompante. O tema deveria ser o tema permanente e predileto do happy-hour com os colegas de Wall Street.

As ideias desse príncipe são claras como a neve. E têm a mesma solidez e consistência.

O nervo do artigo é o diagnóstico que traça dos males da república americana, ou da sua “(in)governabilidade”: a polarização política, maior do que nunca e dificilmente corrigível. Isto, diz ele, impede o governo federal do “trabalho básico, necessário, de governar”.

Foto: ReproduçãoDaí vem a sua solução, dita com voz embargada, uma vez que reconhece seus “riscos”. Qual é essa receita milagrosa, ainda que arriscada? Um governo meio robótico (regulado por políticas automáticas, como válvulas de contenção) e “comissões despolitizadas para tomar certas decisões políticas”. Despolitizadas para tomar decisões políticas. Ok, acho que entendemos. Ou não.

O risco, diz ele, é que isso mancharia as instituições políticas do país, tornando-as “um pouco menos democráticas”.

Quais as questões que devemos proteger das pragas da modernidade, isto é, do voto e do confronto político? Coisas tão “automáticas”, como a política fiscal, a tributária, a política de infraestrutura”. Felizmente a lista para por aí, porque prometia ir longe...

O chairman do City lembra uma velha sugestão do economista de Harvard, Alan Blinder, nos anos 90: colocar a política tributária sob o comando de experts como os dirigentes do Fed. Aliás, Blinder também fora um dos vice-governadores do Fed e membro do Conselho de Assessores Econômicos de Clinton. Ninguém neste cenário é apenas “um economista”. Eu disse que Orszag interrompera a lista das políticas a blindar. Mas não é bem assim. Lá pelas tantas vem outra pedrada: a política de saúde seria comandada por um painel de médicos especialistas.

Ora, à primeira vista, quem tem algo contra comissões de especialistas? Bem, o risco, diz Orszag, é que seria bem mais do que isso. Tais comissões “reduzem o poder de funcionários eleitos e portanto tornam nosso governo um pouco menos controlável pelos eleitores”.

Bom, argumenta ele, não toleramos coisa similar a essa com os nove deuses da Suprema Corte, que fazem gato e sapato da lei e ninguém lhes cobra coisa alguma, nem mesmo o respeito às intimidades de companheiras de trabalho? Por que não um clube de mini-cortes especializadas?

Afinal, diz ele, “poderíamos ser uma democracia mais saudável se fôssemos uma democracia um pouquinho menos democrática”.  

Enfim, tudo resolvido. Só falta definir quem seleciona os juízes supremos que comporão cada uma dessas comissões de experts. Mas, de fato, isso não é problema para ele. Orszag está chovendo no molhado e tornando mais claro algo que Wall Street já faz sem trepidações, como indicou o professor Canterbery. Ninguém vai prestar muita atenção em Obama – a não ser pela sua reconhecida habilidade de entreter o público. O essencial está em Greenspan, Robert Rubin, Lawrence Summers e seus parceiros de orquestra. Enquanto Obama requebra para distrair o auditório, os Greenspans batem as carteiras.

 

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